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terça-feira, setembro 01, 2020

TARSILA DO AMARAL, MILLÔR, PINKER, SERRES, CENDRARS, ROSEMBERG CARIRY, SONIA EBLING & LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA



DIÁRIO DO GENOCÍDIO NO FECAMEPA – UMA: SABE AQUELA... DECÁLOGO DO IMBROCHÁVEL COISONÁRIO – Nas últimas horas foram anunciadas as últimas medidas do governo em cadeia nacional e que ninguém viu! Lá vai para ciência de todos. Primeiro: Todo problema será resolvido por bem ou por mau! Não teve acordo, já era, pro saco! Essa a solução socioeconômica para tudo e todos, viva o consumo! Segundo: Todo concurso público só terá provas que avaliem a fé em Deus e o patriotismo. Entre os escolhidos, só os medíocres e chatos (do lado da gente, né?). Esta a nossa e verdadeira meritocracia. Às mulheres acrescente-se prova de remexido dos quadris e nenhum conhecimento, tenho dito! Afora isso, é fundamental que todos façam silêncio, vamos organizar esta porra de zona. Terceiro: Todos terão que trabalhar até os 100 anos ou mais! Aposentados e vagabundos serão metralhados em praça pública! Quarto: A moeda corrente nacional será o jeitinho: uma mão lava a outra e todo mundo resolve as coisas. Quem quiser estudar que pague! Será lançado um Guia Educacional só com uma regra: é pau pra lamber sabão e pau pra saber que sabão não se lambe, assim! Livro é um bocado de letras só pra fazer confusão e os dicionários não mais terão palavras difíceis que serão erradicadas para descomplicar as coisas. Quinto: A história terá apenas feitos militares e todo o resto queimado e esquecido para sempre. Todas as ruas, avenidas e logradouros voltarão a ter apenas nomes de heróis soldados e santos, chega de lugar disso ou daquilo, pronto, assim todo mundo saberá a quem obedecer e apelar. Sexto: Todos terão uma renda básica de 200 coisonários para morrer aos pouquinhos e ninguém ficará pra semente (e que morra logo, de preferência). Além do mais, viver é caro pra dedéu, só pros ricos. Sétimo: Não haverá mais fábricas brasileiras, todas serão americanas pra gente usufruir tudo do bom e do melhor dos United States. E só. Oitavo: Revoguem-se as disposições em contrário e fim de papo! (Ei, mas são dez, tem que ser dez! Por que? Porque é um decálogo. Por que? Como os 10 mandamentos, ora! Ah, é. Então bota aí...) Nono: A democracia será como as lições práticas do quartel, escreveu e não leu, o pau comeu. Pronto. (Falta uma! Taoquei, porra! Bota aí...) Décimo: Assino e determino, assim será a minha democracia de hoje em diante. (Ah, mas é a mesma coisa do nono! É isso mesmo, fechaí. Ponto final e vá pra porra!). Aí com essa, até Millôr ressuscitou: Conseguiram o que queriam: transformar o povo num cão que não morde. (Mas também não abana o rabo.) Ser brasileiro me deixa muito subdesenvolvido. Agora, pausa para o intervalo comercial! Click.

DUAS DEDADAS NO ESCURINHO DO CINEMA – Naquela noite eu caminhava à toa quando ela passou por mim. Ôpa, para quem já vinha ponteando a trilha dela, não poderia jamais deixar passar. Ela se virou e sorriu a mais linda noite enluarada. Era como se a Lua em forma de mulher me fizesse enamorado Selenito, enfeitiçado por seus encantos. Vai pra onde? Passeando. Papo vai, papo vem. Estávamos próximo do cinema. Que tal? Vamos! Nem sei que filme passava, comprei os ingressos. Já começou a sessão? Já. O porteiro cochilava, entrei no meio da escuridão medonha, um zoadeiro incrível na tela. Aboletados, logo me acheguei cochichando ao seu ouvido, até ousei o braço por cima dela para facilitar a conversa, ela aquiescente, atenta. Não prestávamos atenção no filme, só um ao outro. Ao gesticular na conversa íntima, inadvertidamente rocei a mão ao seio, a outra em sua nuca, ela envolvida, achegada, virou-me a face e não pestanejei: um beijo demorado, mãos buliçosas percorrendo toda sua geografia. Foi, fomos fundo, quase às vias de fato, não fosse acenderem as luzes e me flagrarem com a mão e tudo mais na botija dela, era o fim da sessão. Não havia outra, era a última. Buscamos outra guarida, lavamos a égua. O filme? Só anos depois soube: Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), do Rosemberg Cariry, só revisto um dia quando resolvi ver Corisco & Dadá (1996), Pedro Oliveira, o cego que viu o mar (1999), Lua cambará, nas escadarias do palácio (2003), Patativa ave oupoesia (2007) e Os pobres diabos (2013), entre outros que vi dele e não lembro. Não sei qual a razão, mas toda vez que os filmes dele passavam, me vinha a imagem de Tarsila do Amaral me dizendo: Minha força vem da lembrança da infância na fazenda, de correr e subir em árvores. E das histórias fantásticas que as empregadas negras me contavam. Não sei, coisas muito próximas da minha existência, revejo em cada uma de suas cenas.

TRÊS ESTALOS & A EXTINÇÃO DE TUDO - (Imagem: arte da escultora Sonia Ebling Kermoal) - Apesar da pandemia e dos reiterados alertas dos cientistas sobre a proximidade da extinção humana, nem só indiferentes desfilam, como os que jogam contra contribuindo para o desaparecimento definitivo de mamíferos, inclusive humanos, pelo desmatamento, poluição e aquecimento global, conforme aquela Torre de Babel de Steven Pinker, desde os de antes dele e até agora. Como parece que o Brasil e o planeta entraram num apagão sem fim, na verdade esgotamos o planeta. E a nós apenas cabe assistirmos a tudo isso de forma passiva e conivente, enquanto poderosos estúpidos mandam e desmandam passando boiadas e tocando fogo para a ganância deles e desertificação de tudo. O que nos resta fazer senão a nossa própria parte. Resta-nos a utopia da transformação, ou como diz Michel Serres: Não há progresso sem utopia. A maioria das grandes descobertas ou a maioria dos progressos locais que fazemos vem, sem dúvida, do sonho de alguém que nos precedeu, como uma espécie de utopia. E a minha é escrever, quem sabe, alguém leia e comigo possamos fazer alguma coisa juntos. Afinal, como bem diz Blaise Cendrars: Escrever é uma percepção do espírito. É um trabalho ingrato que leva à solidão. Sim, à solidão criativa, capaz de mudar em mim e em todos nós. Até mais ver.

A GARÇA MAL FERIDA
[...] - Anna, chamava Gisbert. Anna, bem te acostar. – Logo vou. Mas só dali a muito minutos chegava e se aprestava para o sono, para o amor. Naquela noite eles se haviam amado muito. Nos gestos, nas palavras, na entrega que se escapava e se dava; Gisbert reconhecia a sua Anna, acrescida de uma doçura nova, mesclada a uma tristeza que ele nunca vira nela. As mãos de Anna, o rosto de Anna, o corpo de Anna, falavam, falavam. – Te amo, diziam os lábios. – Te amo, diziam as mãos. Quando se esgotara o desejo, os dois estendidos lado a lado, os olhos no teto de treliças, Anna lhe havia tomado a mão. E após um longo silêncio falara: - Eu te amei muito, Gisbert. [...]
A obra A garça mal ferida: a história de Anna Paes D’Altro no Brasil Holandês (Lê, 1995), da escritora, professora, feminista e pesquisadora Luzilá Gonçalves Ferreira, trata de uma brasileira do século XVII, cuja vida era dividida entre o sentimento da terra e suas ligações de amor com os cavalheiros flamengos, trazendo o incêndio de Olinda e a criação de Recife, a administração de Nassau com sua grande tolerância religiosa frente a um catolicismo marcado pela inquisição que fazem o pano de fundo ao exercício de amor da heroína, o qual se dá em outro plano, diferente do mundo dissoluto da colônia, que libera todo pecado ao sul do equador. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.


terça-feira, junho 27, 2017

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA, AS VISÕES DE KIESLOWSKI, A MÚSICA DE MARCUS VIANA, TARSILA DO AMARAL & O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE

O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE – Era só o ameríndio pra quem chegou. Depois, o mameluco com olhos pro pai forasteiro, esqueceu o índio-índio, mais nada. Aí veio o preto-preto, virou festa, carnaval. Tudo misturado, santa mestiçagem. O que era um virou três, muitos, todos. Mesmo assim dividiram o de todos para poucos escolhidos, bolo em fatias para achegados e privilegiados. Haja farelo pros expulsos que estavam dentro, donos despejados e, do terreiro, ficaram brechando pendurados na janela com outros deserdados, o que faziam da casa dele: a festa dos de dentro jogando esmolas, o descarte da fartura aos pingos, às colherzinhas, conta-gotas. E o sangue era vermelho pra qualquer um, até pros que se achavam azul. E a terra era de todos, passou a ter cercas, arames farpados, muros e fronteiras com seguranças e capatazes. Para quem só tinha o chão por acolhida, não me valia de sobrenome abastado ou qualquer, ou marca, brasão, insígnia, ou se pardo é nojento, moreno é charmoso, ou se o amarelo é oriental ou subnutrido, o preço do preconceito: só há um ser humano e eu sou como a roupa no varal que seca à espera de vestir, ou a que na vitrine não foi comprada, um dia será dada, todas servirão para quem queira ou não tenha. Hoje sou feliz e nada tenho, iconoclasta de totens e tabus, e mato e morro ao perder o que era uma parte de mim que ficou para trás e só possuo a vontade do trabalho, minhas mãos pras lutas, a coragem pra romper redomas e limites, o ânimo de viver, mais nada, atrepado nas casas de pombos pra gente – o horizontal sempre coibido, tudo pra vertical: a hierarquia, uns sobre os outros, amontoados, e a vida é outra coisa além de quem mora na cobertura dos arranha-céus ou embaixo da ponte. Não preciso de mais, me basta o que sou de nada desvalido entre as ruínas que valem os impérios dos seres anestesiados que expiram com os suspiros dos vazios, narizes na vitrina esfregada entre a fortuna e a sarjeta com todas as indecisões. Vencer ou perder, tanto faz, as duas faces da mesma moeda, como ir ou voltar, subir ou descer, vale a preparação. Há quem chore de felicidade, ou ria na desgraça. Cada qual o seu tanto de experiências, a erosão, a ferrugem, ventos que vão e fica a quentura, telhados pro céu. Coisas que valem ontem, ou feitas amanhã: ouro que não tem mais, só o que se quer, o desejo, nada mais. Entre um e outro, cada um. As malas prontas – pra onde? -, o uso e o usado, ali no canto esquecido repousam como se fossem pedaços de todo universo num cubículo e a solidão. Tudo desarrumado entre mofo e poeira de sonhos e o que foi feito serve pra lata de lixo. Um dia, quem sabe, uma serventia qualquer, coisa de não se lembrar na gaveta ou nas caixas, se um dia servir, como lápis de cor feito luz, senão escuridão e pra noite tudo é escuro, como o sol é para todos. Tudo existe de dia; de noite, se inventa. Sou grato pela incompreensão, nela eu aprendi. Assim não fosse, nada saberia: um catatônico com uma glória de areia. Meu corpo é da terra e nela vivo. E se me atrevo diante da faca afiada da vida que corta e retalha em postas cada ser vivo, é porque sou o desperdício como o meu povo subestimado foi estornado desde sempre pra dizer o que pensa e quer entre a fome e o prato de comida pra quem tem fome e pra quem só se abastece, vício do hábito. Mas a vida não é faca, é graça! É graça que vira faca e torna a ser graça, pra venturosos ou desgraçados. Só tenho o chão de qualquer lugar, de onde nasci só terei cinzas pra ser-me de volta, o amanhã que se edifica de ontem pra hoje. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA
[...] Num campo de muitas águas. Os buritis faziam alterza, com suas vassouras de flores. Só um capim de vereda, que doidava de ser verde – verde, verde, verdeal. Sob oculto, nesses verdes, um riachinho se explicava: com a água ciririca – “Sou riacho que nunca seca...” – de verdade, não secava. Aquele riachinho residia tudo. Lugar aquele não tinha pedacinhos. A lá era a casa do Boi. O Boi, que vinha choutando. Antão o Boi esbarrou. Se virou, raspou, raspou, raspou,. O Boi se fazia, muitas vezes; mandava nos olhos da gente suas seguidas figuras. O Vaqueiro mandou o medo embora. Num à-direita se desapeou, e pulou pra o lado dele. Lhe furtou a volta. Pôs a vara-de-ferrão na forma, pra esperar ou pra derrubar. Mas o Boi deitou no chão – tinha destiado na cama. Sarajava. O campo resplandecia. Para meljhor não se ter medo, só essas belezas a gente olhava. Não se ouvia o bem-te-vi: se via o que ele não via. Se escutava o riachinho. Nem boi tem tanta lindeza, com cheiro de mulher solta, carneiro de lã branquinha. Mas o Boi se transformoseava: aos brancos de aço de lua. Foi nas fornalhas de um instante – o meio-tempo daquilo durado. O Vaqueiro falou o Boi. “-Levanta-te, Boi Bonito, ô meu mano, deste pasto acostumado! – Um vaqueiro, como você, ô meu mão, no carrasco eu tenho deixado!” O de ver que tinha o Boi: nem ferido no rabicho, nem pego na maçaroca, nem risco de aguilhada. O Vaqueiro que citou. O Cavalo não falava. [...].
Trechos da obra Manuelzão e Miguilim (José Olympio, 1977), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Veja mais sobre:
Tudo em mim mestiço sou, O povo brasileiro de Darcy Ribeiro, o anarquismo de Emma Goldman, A história da vida de Helen Keller, a música de Haydn & Guilhermina Suggia, A escultura de Luiz Morrone, a pintura de Pisco Del Gaiso & Martin Eder, Os Fofos Encenam & Viviane Madu aqui.

E mais:
Os tantos e muitos Brasis aqui.
Tudo é Brasil aqui.
Água morro acima, fogo queda abaixo, isto é Brasil aqui.
Preconceito, ó, xô prá lá aqui.
Ih, esqueci!, A natureza de Anaximandro de Mileto, Tutameia de Guimarães Rosa, a poesia reunida de Lelia Coelho Frota, a música de Ida Presti, Geração Trianon & Anamaria Nunes, o cinema de Krzystof Kieslowski & Irène Marie Jacob, a pintura de Lavinia Fontana & a arte de Márcio Baraldi aqui.
Zezé Mota, O grande serão de Guimarães Rosa, a música de Milton Nascimento & Caetano Veloso, a entrevista de Rejane Souza, Rafael Nolli, a arte de Isabelle Adjani, Sóstenes Lima & Vestindo a Carapuça aqui.
A psicanálise de Karen Horney & Homofobia é crime aqui.
Cantador & Cantarau Tataritaritatá aqui.
Fecamepa: Quando o estreitamento do compadrio está acima da lei, aí, meu, as panelinhas mandam ver e só os privilegiados se banqueteiam aqui.
Brincarte do Nitolino, Menino de engenho de José Lins do Rego, A canção de Allen Ginsberg, a música de Charles Lecocq, O signo teatral de Ingarden & Cia., O choque das civilizações de Samuel Huntington, Noite & neblina de Alain Resnais, a pintura de Raoul Dufy & a arte de Catherine Deneuve aqui.
A vida se desvela nos meus olhos fechados, Outras mentes de John Langshaw Austin, Humilhados e ofendidos de Fiodor Dostoiévski, Daniel Deronda de Georg Eliot, a pintura de Top Thumvanit & Rico Lins, a música de Mísia, a fotografia de Edward Weston, a arte de Stephanie Sarley & Krzyzanowski aqui.
Carta de amor, Espécies naturais de Willard Van Orman Quine, Mulher da cor do tango de Alicia Dujovne Ortiz, a música de Dori Caymmi, Memórias de Prudhome de Henry Monnier, a fotografia de João Roberto Riper, Poema da paz de Madre Teresa de Calcutá, a arte de Tanja Ostojić & Luciah Lopez aqui.
A fome e a laranjeira, Princípios da filosofia do direito de Hegel, Declaração da Independência do Espírito de Romain Rolland, O diário de Frida Kahlo, a música de Bach & Janine Jansen, a fotografia de Sebastião Salgado, a xilogravura de Fernando Saiki, a arte de David Padworny & Tempo de amar de Genésio Cavalcanti aqui.
Livros Infantis do Nitolino aqui.
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AS VISÕES DE KIESLOWSKI
Entre os muitos e belos filmes que vi do premiadíssimo cineasta polonês Krzysztof Kieslowski (1941-1996), dois curtas-metragens documentários muito interessantes. O primeiro, Sete mulheres de diferentes idades (Siedem kobiet w róznym wieku, 1978), composto por uma série de sequências atribuidas aos dias da semana, começando na quinta-feira com a bailarina do dia por heroína, registrando naturalmente as ações e reações das personagens e reações, os muitos anos de trabalho meticuloso das bailarinas, seleção de elenco, experimentações e o triunfo no palco. O segundo, o premiado Cabeças que falam (Gadajace glowy, 1980), no qual acontecem entrevistas com centenas de poloneses, ordenado cronologicamente do bebê à mulher centenária, questionando o ano de nascimento, quem é a pessoa, o que é mais importante para ela, o que ela pensa do futuro. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ: MARCUS VIANA
Pantanal, a suíte orquestral Olga, A música dos 4 elementos, Sete Vidas amores & guerras, Raio & Trovão, entre outras, do violinista, tecladista e compositor Marcus Viana. Ligue o som e confira. Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE TARSILA DO AMARAL
A arte da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

domingo, maio 01, 2016

GANDHI, HESÍODO, TARSILA, MILTON & CHICO, TRABALHO & PRIMEIRO DE MAIO


PRIMEIRO DE MAIO - O melhor dia de trabalho é o primeiro de maio porque é feriado, isso quando não cai num dia de domingo, senão é mesmo que nada, ora. Afora esse dia, só os finais de semana que são denominados de repouso remunerado, ou as férias remuneradas. Tá bom. O resto é tudo dia de branco: maior trampo. Posso estar redondamente enganado, mas isso não faz a menor diferença. Isso é só pra dar um pontapé nesse papo, manifestando minha insatisfação com a usual conceituação do labor humano numa ótica convencional do processo industrial e capitalista. Fugindo do reducionismo de que o trabalho é apenas uma atividade que produz algo para outras pessoas, e de que é a atividade que dignifica ou de que Deus ajuda a quem madruga trabalhando, há também quem diga que ele serve para aquisição do domínio sobre si mesmo e adquirir sentimento de valor pessoal mediante a avaliação dos outros sobre os seus resultados, o que dá no mesmo. O que quero ressaltar é que o homem começou a trabalhar pela primeira vez quando lhe deu fome: ou caçava, ou morria. Precisando sobreviver, saiu explorando o espaço ao seu redor, a natureza. Depois de encher a pança, a sesta. Cansado de coçar o saco, investiu na desbravação do ambiente, foi aí que aprendeu a usar de madeiras e ossos, a lascar a pedra, a dominar o fogo e a cerâmica, a criar animais, a cultivar plantas, a inventar a roda e a fundir os metais na criação de armas rudimentares pra caça. Com isso, foram se sobrassaindo os mais sabidos e os mais fortes: uns sabidos passaram a governar, outros a filosofar, enquanto os que não eram lá tão bem providos das ideias, usavam da força. Apareceram, então, os dois lados da moeda: as histórias dos gloriosos trabalhos de Hércules e os inglórios de Sísifo, contadas por Homero e Hesíodo. E assim foi desde então, nascendo o primeiro ditado de que trabalha o feio pro bonito comer e que, depois, virou o da faina de mouro quem desfruta é o esperto, estes os manhosos que se prestam a dar continuidade ao trabalho das parcas: Cloto segurava a roca, Láquesis virava o fuso e Átropos em seguida cortava o fio, tudo isso porque as deusas infernais viviam de tecer a trama humana. Huuummmmm. Entendeu? No meio disso, dizem, havia também os que trabalhavam pro bispo: sem lucro, sem glória ou proveito. Eita! Tudo isso dando conta de como a evolução do trabalho foi da escravidão até os dias de hoje, nos quais quem gosta de trabalho é workaholic – ou melhor, quem é viciado em trabalho, trabalhador compulsivo e dependente do trabalho. Alguns poucos deles são multimilionários: estão a serviço de quem? Outros, uns tantos como eu, trabalham porque fazem o que gostam e só por isso. Outros muitos tantos possuem emprego: gozam das benesses da boa vida no reino da incompetência e ganham sem fazer nada, só ocupando os outros e dando trabalho à humanidade com a disfuncionalidade da burocracia, pois adoram dar nó cego e ver os outros pra lá e pra cá fazendo papel de bestas. Mais outros tantos trabalham apenas para ter o seu sustento, andar na moda e usufruir do status de estar empregado, exercendo o “estar” na profissão sem ter a menor vocação e não ter nada a ver com a mesma. Outrantos vivem pendurados nas circunstâncias: não levam desaforo pra casa, não se submetem à hierarquia e pintam o sete pro que der e vier, lícita ou ilicitamente se virando como podem pra defender as gambiarras do seu sustento e o que é seu. Muitoutrantos fazem o que podem com o que tiveram de oportunidades de qualificação ou semiqualificação ou mesmo diplomação que esconde a desqualificação, para serem digeridos pela meritocracia da colocação no cumprimento rígido de procedimentos e dos manuais internos, evitando-se o batalhão de reserva dos excluídos: outros fabos incompetentes. E por aí lá vai teibei. Pelo que posso ter de ideia, dos que possuem empregos majestosos aos que exercem suas profissões, sejam elas das mais humildes às mais chiques, ninguém está feliz com o que faz e com o quanto que ganha, excetuando-se, evidemente, aqueles que fazem o que gostam, reitero. Injustiças sempre vigoram e não é difícil encontrar um médico choramingando, ou um advogado se lamentando ou um engenheiro apertado: todos falam que trabalham demais para ter o que possuem ou para adquirir o que precisam. E que tudo tem o preço da impossibilidade de compra, exigindo-se aquela valsa de meses na aquição. O que quero mesmo levar em conta é que na vida, ou a gente está dormindo, ou trabalhando – óbvio que tem gente que faz outras tantas coisas, mas que aqui não vem ao caso. Ou seja, no dia a dia de uma penca de anos ou a vida toda, a gente está correndo atrás, se cansa e vai dormir; quando acorda, pé na bunda pra labuta, uns feito cantiga de grilo de domingo a domingo, a maioria de segunda a sexta, outros que vão até depois do meio dia de sábado, afora outro bocado de finórios que nem sabe o que é isso e que só dão o ar da graça um dia, dois ou mais por semana. Em suma: a gente vive pra trabalhar e vice-versa. Há o ditado de quem trabalha enrica - isso num país sério, até pode ser; porque aqui, só se amonta no bufunfa quem tem atributos corporais de chamar atenção, ou o sabido que sabe levar o que é dos outros, ou quem vive com dedo pronto pra rapar no gatilho e tomar o que é alheio. Pronto. Eu mesmo trabalho desde os dez anos de idade e nunca saí do lugar, pudera, nunca fiz nada que prestasse mesmo. Taí outro ditado: a ocupação laboral traz recompensas econômicas que determinam o padrão de vida e status social de cada um. Tradução: é mesmo? Parece. Mas quem trabalha de mesmo, veste a camisa na maior pilha, dá o sangue a ponto de se lascar todo, acabar com a saúde e findar da caridade alheia: inútil e chacoalhado de não valer um tostão furado. E quem comeu o vigor da gente, como é que fica? Eu hem!?! Como não estou dizendo coisa coisa, nem sou de reclamar, vou na do Hino Nacional “deitado eternamente em berço esplêndido”, entoando a Filosofia do Ascenso: Hora de comer, comer; hora de dormir, dormir; hora de vadiar, vadiar. Hora de trabalhar: pernas pro ar que ninguém é de ferro! Principalmente porque é Dia do Trabalho e, ainda por cima, é domingo, ora. E vamos aprumar a conversa & tataritaritatá! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui

 Imagem: Segunda classe (1933), da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui.

PRIMEIRO DE MAIO 
(Milton Nascimento & Chico Buarque)

Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali
E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si
Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas

Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é o seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
E é bendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar
O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão
Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhas do seu ventre
O homem de amanhã.

PESQUISA
 Adam Smith (1723-1790), fudador da escola liberal clássica: O trabalho é a verdadeira e única fonte da riqueza das nações, pois os produtos, industriais ou agrícolas, são obtidos pelo esforço humano, que se torna sempre mais eficiente pela especialização. Agindo de acordo com seus interesses, o homem é conduzido, por mão invisível, ao desenvolvimento do bem comum.
David Ricardo (1772-1823), economista e político britânico: A base de todo o valor econômico é o trabalho-valor. O valor de troca de uma mercadoria é calculado pela quantidade de trabalho empregado na fabricação do produto. As máquinas têm como objetivo diminuir o valor de troca do produto. As máquinas também são trabalho humano acumulado.
Kark Marx (1818-1883), filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista: Não é o trabalho em si que interessa ao capitalista, mas a mercadoria, não por seu valor de uso, mas por seu valor de troca. Se o capital conseguir produzir, em certo período de tempo, com duas máquinas o equivalente em produtos ao que cinquenta operários conseguiriam, ele ficará com as duas máquinas. Ao capitalista interessa baixar os preços de custo do produto, para acumular mais capital. Para isso, só lhe resta uma saída: diminuir o custo do trabalho. Isso pode ser conseguido diminuindo os salários, ou, ainda, substituindo o trabalho humano pela máquina, cada vez mais aperfeiçoada. O fruto do lucro no capital é um trabalho humano não pago: se o trabalhador consegue o que precisa em seis das oito horas que trabalha, as duas horas restantes ele trabalha para manter o capital e garantir que se reproduza, o capital assim obtido é a mais-valia.
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

EPÍGRAFE
Os sete pecados sociais, do advogado, idealizador e fundador do moderno Estado indiano, Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), o grande Mahatma Gandhi. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

LEITURA
Os trabalhos e os dias (Hedra, 2013), poema épico do poeta oral grego Hesíodo (cerca de 750-650aC). Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA
Para quem tá naquela da fábula de Esopo - de que a formiga só trabalha porque não sabe cantar -, no dia mundial do trabalhador, como toda formiga que se preze, ela comemora o Dia da Literatura Brasileira. Cuma? Eita! E quem quer saber disso? Pois é, uma data dessa só prova que a literatura do Brasil só serve pra estrangeiro ver.

Veja mais Salmo da Cana, o Projeto de Extensão Infância, Imagem e Literatura: uma experiência psicossocial na comunidade do Jacaré – AL, Auguste Rodin, Chico Buarque, Peisândro de Rodes, Monteiro Lobato, Hércules, Hesíodo, Émile Zola, Vinicius de Moraes, Cândido Portinari, Jorge Luis Borges, Nelson Rodrigues, Charlie Chaplin, Magda Mraz & Darlene Glória aqui.

CRÔNICA DE AMOR POR ELA
1º de Maio, Dia do Trabalhador: comemoração da secretária do Tataritaritatá!
Veja aqui e aqui.

CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital Musical Tataritaritatá
Veja aqui.



domingo, março 06, 2016

A MORTE E A MORTA



A MORTE E A MORTA

Luiz Alberto Machado

As mãos trêmulas de João Albano seguravam a xícara de café. Juliana, gasguita e inexcrupulosamente ensaiava severa reclamação pela procedência dele de haver chegado alta hora da noite. As mãos nos quartos e a cara de poucos amigos dela, ingresiava inexorável pelando a alma e a vergonha do sujeito mole. E estava tudo certo, no pensar dele, e conferindo direitinho ela tinha lá suas razões. Afinal, dera motivos para tanto vez que chegara exatamente às duas e meia da manhã, oriundo de duvidosa noite. Por isso ela ampliava aquela lamurienta situação vexatória com alguns dos seus prediletos palavrões, daqueles capazes de destronar Deus e o diabo num tom bastante provocador. Eram xingamentos, ameaças, lamúrias, gastando saliva sob a honrosa justificativa de desprotegida na situação, decepcionada com o comportamento dele agora, depois de tantos anos casados. Aquilo tudo remoía por dentro como uma cólica aguda extirpando as intimidades. A voz dela batia fundo nas suas entranhas, assanhando os nervos, alfinetando a pleura, furando os tímpanos, revirando seu íntimo metabolismo. E quando ela pegava forte arrepiava até na lua. Mais fosse e mais teria o que desonrar.

João mesmo assim ficava impassível, ressacado, absôrto, nada ouvia; ele até já sabia que não adiantaria nada revidar aqueles impropérios. Assim era, assim tinha de ser: - eu hem?

Em seu sermão Juliana justificava o quiprocó em que se metera, em confiar naquele homem, antes tão solícito, tão compreensivo, tão caseiro, tão merecedor do casamento e naquele bolo lindo na cerimônia, na igreja, nos aparatos, grinaldas, nas porta-alianças, os padrinhos, o festival de arroz, jurando amor e fidelidade para todo o sempre, amém, revelando ali que um nascera para o outro, representados pelas duas imagens, a de São Lúcio e Santa Bona, os bem casados, ela tal qual a santa com o queijo na mão direita e ele o santo com uma faca para partirem no céu o queijo da castidade. Ela reivindicava hoje o João Albano de ontem, um homem diferente, igual aquele romântico de antes, enamorado, atencioso. Mas não, hoje era outro metido com as de saias soltas, perdidas nos antros da safadeza, não ligando mais para ela, cadê aquele homem tão sonhado dos anos de namoro? Cadê-lo? Evanesceu-se. Verdade, ele era um outro, não mais aquele de antes. Ela, também, descabelada, subtraída, faltando um pedaço de tudo, posses tivesse estava nas mãos de um analista, se culpando, gorducha, desperançada, destrambelhada.

Terminada a ceia matinal, João levantara-se até a porta para espreitar o panorama ali fora, acendendo um cigarro, dando-lhe umas baforadas espertas, construindo suas ilusões na fumaça, se perdendo no tempo e no espaço, desintonizado dali, de férias das chateações.

Os resmungos continuavam da parte de Juliana, que de lá para cá, no interior do quarto, da cozinha, do banheiro, sempre renovando seu repertório de pacutia. Ele, ao contrário, continuava fumando em silêncio absoluto, ouvido para nada. 


Afastando-se da porta, ele arrastou os chinelos até o banheiro onde depositou no amaro bocão uma baita diarréia, fruto da cachaçada noturna no bar do Dudé com porrinha, mão-de-vaca, caldinho, dominó, baralho e regados a uma boa dosagem de aguardente da mais original da redondeza, divertindo a ideia. Estava desaranjado, o corpo e o destino, tudo desapontado. E não havia fio de prumo que endireitasse aquela desavença. Tudo troncho, desinretado, torto. Nem ânimo possuía para recolocar as coisas em seu devido lugar. Deixa estar, tudo, com o tempo, se acomoda. Vamos ver no que dá, pensava.

Agora o momento era outro, ressacado, se acabando pelo fundo feito panela, pensando sugerir à mulher que lhe fizesse um chazinho de boldo, tencionando sanear os intestinos e o fígado, pois que de instante em instante era cada cólica de arrepiar qualquer seboso já vestindo casaca de infiel. Pensou mais uma vez e sequer ousou a solicitação uma vez que os disparates prosseguiam agora do fundo do quintal. Um verdadeiro boi de fogo.

- Aquela quenga! –, repudiou implacavelmente Juliana – tenho certeza que ele tava com aquela safada, mas destá, destá.

Juliana já desconfiava da safadeza dele em conluio com Marildita, uma cabocla tesuda das terras da vizinha cidade Água Barrenta, tirando-lhe o sossego do lar.

- Só pode ter mulher nesse meio, só pode ser isso! Não acredito que um homem passe a tarde inteira entrando pela noite, madrugada adentro, fora de casa, sem nada fazer, inda mais dizendo que tava trabalhando, ora, só pode ser mulher balançando saia por perto! Tem rabo de saia nessa história! -, reclamava ela enquanto espatifava os bisquís no chão, não se cansando da injúria que crescia em denúncias avassaladoras e João mantendo-se impassível, pensando apenas nas vendas, nas trocas pelos  engenhos oficializando seu sustento e a sua profissão de prestamista, um ambulante que oferecia e comprava de tudo. Quando não dava expediente na feira, era pelos engenhos oferecendo brebotes, bugigangas e utensílios por preços razoáveis e condições elásticas de pagamentos; trocando tudo, comprando o impossível e vendendo o inexplicável. O seu caderninho registrava toda transação e, vez por outra, conferia as anotações totalizando créditos e lucros. Empertigava-se toda vez que concluídas as contas observava que o lucro previsto já se havia consumido. Quanto mais trabalhava mais ficava devendo e o preço de uma compra hoje, corrigida em cem ou duzentos por cento, não dava para adquirir a mesma mercadoria amanhã pois que já se reajustara de acordo com a sua impossibilidade. Injuriado alegava sustentar os comerciantes com o seu próprio suor; aborrecera-se com esta conclusão. Irado, contou um molho de dinheiro, depositando o correspondente à feira da semana num jarro, separando umas notas para o bolso e destinando outras tantas para um presente para Juliana, atitude que não tomava ao longo de anos, aliás, desde que se casara que nunca presentiara nada além de si próprio, assim se julgara. Presenteá-la agora, claro, com o objetivo de lhe diminuir a fúria e conseguir a anuência para dar uma saidinha, escapulida até os braços da Marildita. Então, chamou Juliana a um canto, contou as cédulas e fez-lhe o tencionado. No inicio ela fitou o dinheiro com asco, não dizendo nada. Depois, pensando melhor, deu-lhe um bote, escondendo-o no porta-seio com um meio sorriso e um silêncio consagrador. Suborno praticado, João se passou por incólume na situação, ligou o rádio sentando-se na cadeira de balanço da sala e danou-se a pensar. Viajava nas cantigas do tempo do ronca nas ondas radiofônicas. Nostalgia, um ôco no peito. Um afã de aprumar apesar dos revezes. Nada. Juliana por sua vez estava entre aborrecida e feliz, arrependida pelas palavras ásperas que havia dirigido ao seu marido, mas ele só fazia a vez de presenteador quando havia despeita entre ambos e sabia que ele só tinha feito aquilo para enganá-la, para acalmá-la, enrolá-la na maior das arteirices de um condenado seboso filho de uma égua. João conseguia sempre encetar esse tipo de malabarismo, confiante de que assim nunca sentiria o assalto de qualquer embaraço e, para tanto, armava-se de todas as cautelas e precauções possíveis e imagináveis, salvando-se das suspeitas, desconfianças e maledicências para o seu lado. Àquela hora pensava em Marildita, jeitosa e cobiçada, tinha que levar a obrigação da semana para que outro não lhe assaltasse em surpresa e, ao mesmo tempo, fazer uma sacanagenzinha embaixo do lençol saciando sua sede. Isto ocupava seu pensamento por horas em coloridas imagens que fabricava na sua indisposição de pensar em algo mais sério de maior proveito para a sua vida.

Bastaram duas dúzias de palavras mais alguns motivos esdrúxulos para convencer a mulher de que precisava sair para realizar um negócio qualquer na cidade. A abestalhada engolia a conversa mole. Assim dito, assim feito.

Já estava ele embarcando de cara lisa rumo a Água Barrenta e lá se encontrando com a desejada dos seus sonhos, repleta de luxúria e concupiscência. Marildita estava como nunca, decotada, arrumada, vitaminada e apetitosa. Nem pensou duas vezes e o saculejo já estava solto no quarto rangendo cama, gemendo corpos; era remexido agoniado, impado sôfrego, buliçoso. Serviço feito, desleixe. Um beijinho na testa, apalpadela na bundinha dela e uma derramada de dinheiro no porta-jóias da pitisqueira, além da certeza de um retorno daqui alguns dias. Mandou-se probo.

Regressando de sua missão, chegou em Alagoinhanduba, uma passadela no bar do Dudé, referencial inesquecível de seus dias para alinhar os planetas, onde ali estavam proseando, jogando ou negaceando em qualquer pedra ou carta, saboreando comidas típicas ou mesmo ingerindo petiscos, tira-gostos e bebidas.

Juliana em casa pensava nos dezenove anos de casados, no exemplo de marido que era João, no primeiro filho, sonho dele, hoje um desmantelo, o menino copiando suas mandingas. Lembrou, certa vez, antes de parir ele trouxe para ela uma raiz de mandrágora e colocou no pescoço da parturiente num colar com um saquinho cheio de pedras de aras dentro para quando a dor do parto chegasse, ensinando a ela segurar numa das mãos o cordão de São Francisco, as orações para Nossa Senhora do Bom Parto, do Bom Sucesso, do Ó, da Conceição, das Dores, dos Anjos, de Lourdes, e das Graças; deixando o cabelo dela crescer, em longos cachos, ofertados à imagem do senhor Bom Jesus dos Passos. Dezenove anos de casados, pensava ele, quinze de putaria e de bar com os mesmos amigos, afora os tres últimos que se ajeitava com Marildita, a mancebia que lhe corría nas vísceras.

Nesses últimos anos conseguira amoldar seus negócios e intenções de forma adequada, obtendo sempre êxito nas investidas, conseguindo se safar da vexatória situação precária sem o menor drama de consciência. Porém, nesses casos, há sempre um dia de urucubaca nas costelas do distinto que desmantela toda engrenagem, deixando-o abilolado, nu com a mão no bolso, assim se dera.

Sob aconselhamento de más línguas e botadores de gosto ruim na comida dos outros, Juliana, conduzida pelo inesperado e sob a ira de todas as traições, pegou em flagrante delito o desejo de João com a mão na botija de Marildita – olha a volta do enterro! – zoada das grandes devido recalcitrância dele, às falações gasguitas da esposa traída, sem acordo, sem lero-lero, na maior pauleira da paróquia e mais o testemunho miúdo de duas centenas de gente curiosa, fuxiqueira, ávida por escândalos, reprovando tudo e empenando a situação pra banda dele. Deu-se de fato. Um rebuliço dos grandes. Desmantelo armado, um seu parente conduziu a chorosa Juliana para casa, enquanto dispersava os interrogadores vizinhos prontos para bisbilhotar o acontecido perguntando de tudo. Até que a situação fora se normalizando e João chegando à sua residência fora assaltado pela surpresa, fugiu-lhe o sangue do corpo, lívido, exangue, não acreditou e, lá estava, em letras garrafais um bilhete: “Fui com meus filhos para longe da sua sujeira. Vou para nunca mais voltar, para nunca mais ter que passar por vergonha tão violenta e para dar paz ao meu coração e a dos meus filhos”.

Assaltado pelo inopinado, os neurônios se escapuliram diante da maior sem saída, o raciocínio de férias e o juízo se escondendo por trás da maior loucura, estarrecido ele instou os vizinhos que não sabiam de nada nem para que lado da venta tenha ela havia tomado e se perdido nas tantas veredas do mundo para que pudesse envidar qualquer perseguição e consequente captura dos seus e dela, ao seu lar sagrado. Inquiriu familiares e nenhuma informação recebera que subsidiasse sua busca. Nada feito. E agora? Que revestrés mais sem propósito, Deus meu? Até das fotos do álbum de família era sumira.

Tres meses passados, cansado de tanto rebuscar cada centímetro do continente como um cão farejador, depois de interrogar os ventos, a chuva e o destino, ficara numa espera ansiosa a qualquer baque de coisa se julgava encontrá-la, desapontado com a certificação de que não seria nada, era a sua imaginação exagerada. E só.

Ao cabo de uns meses depois mudara definitivamente para o convívio estreito com Marildita, esta também não estava para boas recepções, desgostosa ao tomar ciência de que aquele homem a quem dedicara seu amor era comprometido com outra mulher, sem ter a consideração de pelo menos revelar-lhe essa oculta situação civil; e o que é pior: aguçou ciumeira braba nela, aprisionando-o em casa, cheirando sua roupa, fiscalizando sua cueca, procurando marca de batom na gola da camisa ou no lenço, perseguindo perfumes, hálitos e até intenções. Colada que só zagueiro na cacunda de atacante goleador. Marcação cerrada, laço justo.


Passaram-se anos e devido essa ciumeira dizem que ela foi acometida de uma doença que não teve jeito e aos poucos sucumbira de morte instantânea. Desta vez ficara sozinho o nosso João Albano, sem ter a quem recorrer nas noites de frio, nas horas de silêncio, nos cômodos da casa. Na solidão pensava na vida e se condenando pela revolta da mulher de ir-se embora com seus filhos; a outra inventou logo de morrer justo numa hora daquelas sem o menor propósito, merda de vida, tanto trabalhei para ter conforto que na hora agá fico sozinho com a vela na mão sem mar para navegar. - secou tudo! Restava apenas a posse de algumas coisas como duas casas, uma mercearia arrendada e uma bodega num engenho, fruto de vários anos de trabalho e agiotagem. Pensou muito e um estalo veio na ideia: foi ter com o cartório oficializar o falecimento da dita cuja, providenciando o óbito e o sepultamento com todas as honras funerais. Sob tramóia engenhosa, ninguém sabe como, conseguiu que o obituário registrasse o nome da falecida como sendo o de Juliana Pereira de Antão, a esposa legítima que fugira com os filhos. Ocultou sua sujeira num caixão hermeticamente fechado alegando razão de doença contagiosa, organizou tudo direitinho, sem testemunhas, acumulando para si só os bens do casal e procedeu com os últimos rituais do enterro. Foi um plano bastante audaz, o suficiente para usufruir sozinho no inventário, negando a existência de filhos uma vez que eles ainda não haviam sido registrados civilmente, arquitetando subornar todos e conseguir seu intento. Agora viúvo não almejava mais uma vida regular com qualquer inhazinha da beira do rio sem sequer demorar mais de duas semanas esquentando os pés e procurando nova guarida. Virou de uma hora para outra um bom partido para as moças casadouras, virgens encardidas, viúvas ardentes, senhoras adúlteras e meretrizes sonhadoras, além do centro das atenções de debutantes, dondocas, casadas, desquitadas e até beatas que sonhavam com o seu príncipe encantado, nele encarnado pelas posses, jeitão másculo e idade quase já passando no ponto, pois que a nenhuma delas dava trela, seduzindo-as e depois se desfazendo arguto de qualquer compromisso.

Ao longo de dez anos vividos e passados do acontecido, dividiu emoções com putas desbocadas, coroas enxutas, esponsais assanhadas, anciãs depravadas, potrancas e descabeladas, até que uma tuberculose crônica suspendeu sua devassidão, jogando-o nos confins de uma enfermaria hospitalar. Tratara-se e depois perdera um rim, um baço, o apêndice e nunca mais conseguira ser o mesmo. Caducara antes do tempo até que numa tarde de janeiro agonizou sem mais nem menos, de um minuto pro outro, pronto, juntou os pés e nunca mais respirara seus devaneios. Nem parentes ou amigos para prestar-lhe exéquias.

A notícia andou por longe e aguçou a piedade de Juliana que tencionando ainda encontrá-lo com vida, estava disposta a perdoar o passado e cuidar do seu velho como uma mulher solidária. Ela não pensara encontrá-lo com a outra, longe disso, mas sozinho e indefeso, sem ter a quem recorrer e estaria ali, como uma vingança tácita, a dar-lhe uma verdadeira tapa de luva, provando a estirpe de mulher que era. Qual não fora o seu pranto ao encontrá-lo sepultado, condenando-se a si própria a responsabilidade pela vida breve que teve. Suspendendo o choro voltou ao local de origem para satisfazer as exigências da lei, na qualidade de viúva e, para seus filhos, se apossar dos bens materiais deixados pelo defunto. Teve, portanto, com um rábula da província, com o intuito de regularizar aquela situação, deixando tudo preto no branco, legalizando os papéis requerendo seus direitos à justiça quando foi surpreendida pela notícia de que estaria mortinha da silva, vítima de enfermidade incurável há mais de dez anos atrás. Por conta disso, deu-se uma correria no ambiente causando nela um profundo estranhamento.

- Oxente! Que correria mais besta desse povo! Tá tudo doido, tá? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui

 Imagem: arte da pintora do Modernismo brasileiro Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui, aqui e aqui.

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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Omphale, do pintor indiano Byam Shaw (1872-1919)
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NOÉMIA DE SOUSA, PAMELA DES BARRES, URSULA KARVEN, SETÍGONO & MARCONDES BATISTA

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