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terça-feira, junho 27, 2017

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA, AS VISÕES DE KIESLOWSKI, A MÚSICA DE MARCUS VIANA, TARSILA DO AMARAL & O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE

O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE – Era só o ameríndio pra quem chegou. Depois, o mameluco com olhos pro pai forasteiro, esqueceu o índio-índio, mais nada. Aí veio o preto-preto, virou festa, carnaval. Tudo misturado, santa mestiçagem. O que era um virou três, muitos, todos. Mesmo assim dividiram o de todos para poucos escolhidos, bolo em fatias para achegados e privilegiados. Haja farelo pros expulsos que estavam dentro, donos despejados e, do terreiro, ficaram brechando pendurados na janela com outros deserdados, o que faziam da casa dele: a festa dos de dentro jogando esmolas, o descarte da fartura aos pingos, às colherzinhas, conta-gotas. E o sangue era vermelho pra qualquer um, até pros que se achavam azul. E a terra era de todos, passou a ter cercas, arames farpados, muros e fronteiras com seguranças e capatazes. Para quem só tinha o chão por acolhida, não me valia de sobrenome abastado ou qualquer, ou marca, brasão, insígnia, ou se pardo é nojento, moreno é charmoso, ou se o amarelo é oriental ou subnutrido, o preço do preconceito: só há um ser humano e eu sou como a roupa no varal que seca à espera de vestir, ou a que na vitrine não foi comprada, um dia será dada, todas servirão para quem queira ou não tenha. Hoje sou feliz e nada tenho, iconoclasta de totens e tabus, e mato e morro ao perder o que era uma parte de mim que ficou para trás e só possuo a vontade do trabalho, minhas mãos pras lutas, a coragem pra romper redomas e limites, o ânimo de viver, mais nada, atrepado nas casas de pombos pra gente – o horizontal sempre coibido, tudo pra vertical: a hierarquia, uns sobre os outros, amontoados, e a vida é outra coisa além de quem mora na cobertura dos arranha-céus ou embaixo da ponte. Não preciso de mais, me basta o que sou de nada desvalido entre as ruínas que valem os impérios dos seres anestesiados que expiram com os suspiros dos vazios, narizes na vitrina esfregada entre a fortuna e a sarjeta com todas as indecisões. Vencer ou perder, tanto faz, as duas faces da mesma moeda, como ir ou voltar, subir ou descer, vale a preparação. Há quem chore de felicidade, ou ria na desgraça. Cada qual o seu tanto de experiências, a erosão, a ferrugem, ventos que vão e fica a quentura, telhados pro céu. Coisas que valem ontem, ou feitas amanhã: ouro que não tem mais, só o que se quer, o desejo, nada mais. Entre um e outro, cada um. As malas prontas – pra onde? -, o uso e o usado, ali no canto esquecido repousam como se fossem pedaços de todo universo num cubículo e a solidão. Tudo desarrumado entre mofo e poeira de sonhos e o que foi feito serve pra lata de lixo. Um dia, quem sabe, uma serventia qualquer, coisa de não se lembrar na gaveta ou nas caixas, se um dia servir, como lápis de cor feito luz, senão escuridão e pra noite tudo é escuro, como o sol é para todos. Tudo existe de dia; de noite, se inventa. Sou grato pela incompreensão, nela eu aprendi. Assim não fosse, nada saberia: um catatônico com uma glória de areia. Meu corpo é da terra e nela vivo. E se me atrevo diante da faca afiada da vida que corta e retalha em postas cada ser vivo, é porque sou o desperdício como o meu povo subestimado foi estornado desde sempre pra dizer o que pensa e quer entre a fome e o prato de comida pra quem tem fome e pra quem só se abastece, vício do hábito. Mas a vida não é faca, é graça! É graça que vira faca e torna a ser graça, pra venturosos ou desgraçados. Só tenho o chão de qualquer lugar, de onde nasci só terei cinzas pra ser-me de volta, o amanhã que se edifica de ontem pra hoje. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA
[...] Num campo de muitas águas. Os buritis faziam alterza, com suas vassouras de flores. Só um capim de vereda, que doidava de ser verde – verde, verde, verdeal. Sob oculto, nesses verdes, um riachinho se explicava: com a água ciririca – “Sou riacho que nunca seca...” – de verdade, não secava. Aquele riachinho residia tudo. Lugar aquele não tinha pedacinhos. A lá era a casa do Boi. O Boi, que vinha choutando. Antão o Boi esbarrou. Se virou, raspou, raspou, raspou,. O Boi se fazia, muitas vezes; mandava nos olhos da gente suas seguidas figuras. O Vaqueiro mandou o medo embora. Num à-direita se desapeou, e pulou pra o lado dele. Lhe furtou a volta. Pôs a vara-de-ferrão na forma, pra esperar ou pra derrubar. Mas o Boi deitou no chão – tinha destiado na cama. Sarajava. O campo resplandecia. Para meljhor não se ter medo, só essas belezas a gente olhava. Não se ouvia o bem-te-vi: se via o que ele não via. Se escutava o riachinho. Nem boi tem tanta lindeza, com cheiro de mulher solta, carneiro de lã branquinha. Mas o Boi se transformoseava: aos brancos de aço de lua. Foi nas fornalhas de um instante – o meio-tempo daquilo durado. O Vaqueiro falou o Boi. “-Levanta-te, Boi Bonito, ô meu mano, deste pasto acostumado! – Um vaqueiro, como você, ô meu mão, no carrasco eu tenho deixado!” O de ver que tinha o Boi: nem ferido no rabicho, nem pego na maçaroca, nem risco de aguilhada. O Vaqueiro que citou. O Cavalo não falava. [...].
Trechos da obra Manuelzão e Miguilim (José Olympio, 1977), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Veja mais sobre:
Tudo em mim mestiço sou, O povo brasileiro de Darcy Ribeiro, o anarquismo de Emma Goldman, A história da vida de Helen Keller, a música de Haydn & Guilhermina Suggia, A escultura de Luiz Morrone, a pintura de Pisco Del Gaiso & Martin Eder, Os Fofos Encenam & Viviane Madu aqui.

E mais:
Os tantos e muitos Brasis aqui.
Tudo é Brasil aqui.
Água morro acima, fogo queda abaixo, isto é Brasil aqui.
Preconceito, ó, xô prá lá aqui.
Ih, esqueci!, A natureza de Anaximandro de Mileto, Tutameia de Guimarães Rosa, a poesia reunida de Lelia Coelho Frota, a música de Ida Presti, Geração Trianon & Anamaria Nunes, o cinema de Krzystof Kieslowski & Irène Marie Jacob, a pintura de Lavinia Fontana & a arte de Márcio Baraldi aqui.
Zezé Mota, O grande serão de Guimarães Rosa, a música de Milton Nascimento & Caetano Veloso, a entrevista de Rejane Souza, Rafael Nolli, a arte de Isabelle Adjani, Sóstenes Lima & Vestindo a Carapuça aqui.
A psicanálise de Karen Horney & Homofobia é crime aqui.
Cantador & Cantarau Tataritaritatá aqui.
Fecamepa: Quando o estreitamento do compadrio está acima da lei, aí, meu, as panelinhas mandam ver e só os privilegiados se banqueteiam aqui.
Brincarte do Nitolino, Menino de engenho de José Lins do Rego, A canção de Allen Ginsberg, a música de Charles Lecocq, O signo teatral de Ingarden & Cia., O choque das civilizações de Samuel Huntington, Noite & neblina de Alain Resnais, a pintura de Raoul Dufy & a arte de Catherine Deneuve aqui.
A vida se desvela nos meus olhos fechados, Outras mentes de John Langshaw Austin, Humilhados e ofendidos de Fiodor Dostoiévski, Daniel Deronda de Georg Eliot, a pintura de Top Thumvanit & Rico Lins, a música de Mísia, a fotografia de Edward Weston, a arte de Stephanie Sarley & Krzyzanowski aqui.
Carta de amor, Espécies naturais de Willard Van Orman Quine, Mulher da cor do tango de Alicia Dujovne Ortiz, a música de Dori Caymmi, Memórias de Prudhome de Henry Monnier, a fotografia de João Roberto Riper, Poema da paz de Madre Teresa de Calcutá, a arte de Tanja Ostojić & Luciah Lopez aqui.
A fome e a laranjeira, Princípios da filosofia do direito de Hegel, Declaração da Independência do Espírito de Romain Rolland, O diário de Frida Kahlo, a música de Bach & Janine Jansen, a fotografia de Sebastião Salgado, a xilogravura de Fernando Saiki, a arte de David Padworny & Tempo de amar de Genésio Cavalcanti aqui.
Livros Infantis do Nitolino aqui.
&
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AS VISÕES DE KIESLOWSKI
Entre os muitos e belos filmes que vi do premiadíssimo cineasta polonês Krzysztof Kieslowski (1941-1996), dois curtas-metragens documentários muito interessantes. O primeiro, Sete mulheres de diferentes idades (Siedem kobiet w róznym wieku, 1978), composto por uma série de sequências atribuidas aos dias da semana, começando na quinta-feira com a bailarina do dia por heroína, registrando naturalmente as ações e reações das personagens e reações, os muitos anos de trabalho meticuloso das bailarinas, seleção de elenco, experimentações e o triunfo no palco. O segundo, o premiado Cabeças que falam (Gadajace glowy, 1980), no qual acontecem entrevistas com centenas de poloneses, ordenado cronologicamente do bebê à mulher centenária, questionando o ano de nascimento, quem é a pessoa, o que é mais importante para ela, o que ela pensa do futuro. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ: MARCUS VIANA
Pantanal, a suíte orquestral Olga, A música dos 4 elementos, Sete Vidas amores & guerras, Raio & Trovão, entre outras, do violinista, tecladista e compositor Marcus Viana. Ligue o som e confira. Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE TARSILA DO AMARAL
A arte da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

terça-feira, maio 03, 2016

OSWALD, HANNAH ARENDT, GUIMARÃES ROSA, ELOMAR, PATATIVA DE ASSARÉ, SHERE CROSSMAN, KHNOPFF & NELSON BARBALHO


A VIDA, A TERRA, O HOMEM & A BIOÉTICA – As sucessivas crises por que tem passado a humanidade, tem levado a um momento decisório e dicotômico por parte de cada um de nós: ou a manutenção da dominação da natureza e do homem pela acumulação vinculada ao processo de produção capitalista, em que a natureza é objeto eterno e inesgotável da exploração humana, ou a constatação do desafio de se chegar a uma situação insustentável da autodestruição da espécie pela destruição da natureza, buscando uma relação mais harmônica com o planeta por meio da eleição de novos valores e paradigmas. Ou uma, ou outra. É chegada a horagá. Isso porque a crise ambiental tem levado toda humanidade a um processo de reorganização diante da ameaça de esgotamento dos recursos naturais com a explosão demográfica e consumo, os elevados níveis de poluição da atmosfera envenenando o ar e contaminando as águas, os riscos de alterações climáticas, o desmatamento, a desertificação, a perda da biodiversidade, entre outros tantos problemas que têm trazido uma série de outros tantos danos problemáticos quase insuperáveis. Diante desse fato, alguns posicionamentos têm se identificado por parte da sociedade, sejam por meio de atitudes naturalistas que consideram que a natureza é ordem e critério de bondade, como as emotivistas que defendem os direitos dos animais, as utilitaristas que apregoam que só sendo útil é que se proporciona o maior bem ao maior número de pessoas, as racionalistas que advogam que só o homem detém a razão e as ecologistas dando maior importância ao mundo. No meio disso tem-se revisitado os princípios kantianos da razão prática e a ética da convicção e da responsabilidade de Max Weber, defendida pelo filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), levando em conta que os efeitos da ação humana devem ser compatíveis com a vida, não destruindo a futura vida humana e não comprometendo as condições de continuação da humanidade sobre a Terra, além de exigirem, portanto, que cada um deve se colocar no lugar do outro, incluindo as futuras gerações. Tal condução tem levado muitos pensadores, filósofos e estudiosos a sugerirem um novo paradigma que passe a tratar a natureza de forma complexiva, global e holística, com a convicção da profunda interconexão existente entre os processos naturais, saindo da visão antropocêntrica do mundo para uma dimensão biocêntrica, adotando a referência evolutiva como principio cosmovisional, considerando a espiritualidade humana e a questão global ecológica como um supraconceito. E isso se deu por conta do surgimento da Bioética que, segundo o cientista espanhol Javier Gafo Fernandes (1936-2001), trata dos problemas morais relacionados com a vida. Ah, tá. Pois bem. Diante de tudo isso, faz-se necessário indagar: afinal, de que lado a gente está? A gente está na maior correria devorando tudo e nem aí pra quem pintou a zebra e pro que está ocorrendo com o planeta, nem com o aparecimento de doenças cada vez mais desafiadoras da nossa resistência, nos autoenvenenando e, ao mesmo tempo, amontoando o lixo por nós fabricado no dia a dia a ponto de tornar o nosso ambiente impróprio para a nossa própria vida? Ou estamos de forma harmônica garantindo a nossa existência e das futuras gerações por meio de ações conscientes, solidárias e pró-vida? A resposta é sua. Vamos aprumar a conversa & tataritaritatá! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

EPÍGRAFE 
[...] a economia se caracteriza pelo desperdício, onde todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas tão rapidamente como surgem, em que as coisas surgem e desaparecem sem jamais durarem o tempo suficiente para conter em seu meio o processo vital [...], trecho extraído da obra A condição humana (Forense Universitária, 1997), da filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975), Veja mais aqui.


Imagem: Earth Mother, da artista plástica Shere Crossman.


Curtindo o álbum Dos confins do sertão (1987), cantor e compositor Elomar Figueira de Mello. Veja mais aqui.

PESQUISA
Cronologia pernambucana: subsídios para a História do Agreste e do Sertão (CEHM/FIAM, 1982), do historiador, jornalista, lexicógrafo, pesquisador e compositor Nelson Barbalho (1918-1993). Veja mais aqui e aqui.

EPIGRAFE
[...] Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. [...] No centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! [...] Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera. [...] Sertão é o sozinho. Sertão: é dentro da gente. O sertão é sem lugar.
Trechos extradídos da obra Grande sertão: veredas (José Olympio, 1982), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui e aqui.

LEITURA 
AS MENINAS DA GARE
Era três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.
Pau-Brasil (1925), do escritor, ensaísta e dramaturgo do Modernismo brasileiro, Oswald de Andrade (1890-1954). Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA 
Imagem: Sertanejo, um poema à Terra (2011), do artista plástico Antonio Cláudio Massa.
A TERRA É NATURA
(fragmento, de Patativa de Assaré)
 [...] Esta terra é como o Só / Que nasce todos os dia / Briando o grande o menó / E tudo que a terra cria. / O só quilarêa os monte, / Tombém as água das fonte, / Com sua luz amiga, / Potrege, no mesmo instante / Do grandião elefante / A pequenina formiga.
Esta terra é como a chuva, / que vai da praia a campina, / móia a casada, a viúva, / a véia, a moça, a menina. / Quando sangra o nevuêro, / pra conquista o aguacêro / ninguem vai fazê fuxico, / pois a chuva tudo cobre, / móia a tapera do pobre / e a grande casa do rico.
Esta terra é como a lua, / este foco prateado / que é do campo até a rua, / a lampa dos namorado; / mas, mesmo ao véio cacundo, / já com ar de moribundo / sem amô, sem vaidade, / esta lua cô de prata / não dêxa de sê grata; lhe manda quilaridade.
Esta terra é como o vento, / o vento que, por capricho / assopra, as vez, um momento, / brando, fazendo cuchicho, / ôtras vez, vira o capeta, / vai fazendo pirueta, / levando tudo de móio / jogando arquêro nos óio / do grande e do pequenino [...]
Veja mais aqui.

Veja mais Brincarte do Nitolino, Nélida Piñon, Akhenaton, Kitaro, Oswald de Andrade, Eurípedes, Percy Bysse Shelley, François Truffaut, Medeia, Nicolau Maquiavel, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Otto Lingner & Nina Kozoriz aqui.

CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Brutishness, do pintor simbolista belga Fernand Khnopff (1858-1921).
Veja aqui e aqui.

CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital Musical Tataritaritatá
Veja aqui.

terça-feira, dezembro 22, 2015

GUIMARÃES ROSA, MARINETTI, RACINE, REXROTH, IAMAMOTO, BARDOT, ABEL, ÍSIS NEFELIBATA & MUITO MAIS!!!


VAMOS APRUMAR A CONVERSA? QUANDO ENTÃO, É NATAL... - É Natal, a festa da cristandade e da satisfação – como um maçarico doido com os fogos de artifício do consumo – do capitalismo. É tudo lindo nas vitrines, luzes, sinos tocando, promoções e presentes a mancheia. Os olhos chegam enchem d’água com a trilha sonora dos corais de jingle bell e afins. É a hora da felicidade, fartura, do esbanjamento das emoções mais íntimas de prazer e gozo, de chega dá um nó na garganta poder torrar o décimo terceiro naquilo que foi sempre a necessidade de realização e de afirmação. Comprar e ter aquela última novidade que será daqui mais um mês totalmente obsoleta pela barbárie eletrônica; e ter a última edição do mais estrondoso vídeo game pras horas de lazer; e fazer listas de compras para a ceia e de presentes pros mais achegados; e receitas de bolos e pratos sofisticados; e as confraternizações nos bares e hotéis; e um professor de Bioética compra uma metralhadora de brinquedo pro filho; e Papai Noel tira uma dedada numa bunduda que não consegue segurar seu filho capetinha que quer porque quer, todo pirracento, dar um murro no bucho do bom velhinho; e tudo não passa de passatempo nas voláteis e volúveis relações que depois do ano novo volta em pé de guerra para a concorrência e sobrevivência. Mas é Natal, ora. O Brasil para e só volta a funcionar depois do carnaval. Sempre foi assim – e enquanto todo mundo festeja, os sabidos grandões armam nesse período suas estratégias e colocam em prática as suas mais nefastas táticas. E isso me dá a impressão de que verdadeiramente não existe crise – ou não?! -, ou ninguém está nem aí pra quem pintou a zebra. Desde que nasci que ouço falar em crise, sempre a sua presença no dia a dia. Será que essa crise existe realmente ou é um artifício pra dar uma movimentada mais no mercado quando ele sente falta de demanda? É como se o vuque vuque do quero agora fazer feliz meu coração, fosse comparável a uma anestesia inoculando as broncas e óbices do cotidiano: uma panaceia. E isso porque é Natal, hora de fazer bem, se reconciliar, apagar os infortúnios e apostar que, a partir de agora, tudo será diferente e melhor. Em última instância, o culto do descartável, do inócuo ou do inútil reinstaurando escrúpulos anacrônicos na reprise anual, como um remédio eficaz praquilo que se possa chamar de preenchimento do vazio e da solidão de todos os meses anteriores. É Natal, ora. E em último caso, a dissolução das relações e todas as suas implicações, no fazer o bem e a fraternidade agora para resolver todas as pendências que ficaram marcadas nas culpas e decepções. É Natal e todos embriagados de felicidade – afinal, todo mundo merece ser feliz! Ou não? Ora, ora. Então, vamos nessa aprumando a conversa aqui.

PICADINHO
 Imagem: Nu, do artista plástico inglês William Etty (1787-1849), Veja mais aqui.

 Curtindo Allegro in D Minor WKO 208, do compositor alemão Carl Friedrich Abel (1723-1787), com a viola da gamba de Shirley Edith Hunt.

EPÍGRAFE – No livro Grande serão: veredas (José Olympio, 1982), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967): No real da vida as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso. Veja mais aqui e aqui

UM ALERTA PRA AGORA – No livro Serviço Social em tempo de capital e fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social (Cortez, 2008), da socióloga e assistente social de renome, Marilda Villela Imamoto, encontro o trecho seguinte: [...] É, hoje, fundamental contribuir para a análise das classes na história brasileira, densa de determinações étnico-raciais, regionais e cultural, rurais e urbanas, que resguarde a efetiva reciprocidade entre o conhecimento científico e as configurações da vida social ao longo dessa era de extremos, nos termos de Hobsbawm. Em outros termos, somos desafiados a integrar pensamento teórico e as condições de existência social captadas a partir da diversidade das posições que os homens ocupam nos quadros da estrutura social, o que implica o reconhecimento das diferentes visões de mundo daí derivadas, às quais não é imune o pensamento científico. Isso envolve a afirmação das condições de totalidade e do devir histórico que norteie tanto os estudos monográficos quanto as interpretações globalizadoras, inter-relacionados e complementares. Em outras palavras, impulsionar o “ato científico como um ato de imaginação criadora”, cuja decadência encontra-se na raiz da crise do conhecimento científico com as invasões positivistas e empiristas, a-históricas, que estimulam a expansão irracional das especializações. Estas se desdobram na transformação do cientista em técnico, adstrito às tarefas que lhe são impostas com alvos não-científicos, em que os procedimentos e a teoria são reduzidos a instrumento de ações, orientadas segundo os interesses daqueles que financiam o seu labor. [...] Veja mais aqui e aqui.

MANIFESTO FUTURISTA – Oportuno trazer aqui o Manifesto futurista (Le Figaro, 1909), do escritor, editor, ideólogo, jornalista e ativista político italiano Filippo Marinetti (1876-1944), estabelecendo que: 1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito à energia e à temeridade. 2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro. 4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. 5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita. 6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. 7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem. 8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade omnipresente. 9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher. 10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. 11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aviões, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta. Veja mais aqui e aqui.

DOIS POEMAS – Os poemas de amor de Marichiko inseridos na obra Selected poems (1967), do poeta, tradutor e ensaísta crítico estadunidense Kenneth Rexroth (1905-1982), destaco dois traduzidos por Adrian’dos Delima: XVI - Calcinada pelo amor, a cigarra / Grita em surto. Em silêncio como o vaga-lume, / Minha carne toda incendeia do amor. LVII - Noite sem fim. Solidão. / O vento traz uma folha de bordo / Contra a porta de papel translúcido. / Eu espero, como nos velhos dias, / No nosso lugar secreto, sob a lua cheia. / Os últimos grilos-de-sininhos cantam. / Eu achei tuas antigas cartas de amor, / Repletas de poemas que nunca tornaste públicos. / E importaria a alguém? / Eles foram somente para mim. Veja mais aqui.

OS PERSONAGENS TRÁGICOS – No prefácio de peça teatral Berenice (1670), o poeta trágico, dramaturgo, matemático e historiador francês Jean Racine (1639-1699), assim se expressa: [...] A regra principal é agradar e comover; todas as outras foram feitas para servir esta. [...] Os personagens trágicos devem ser vistos noutro ângulo, diferente daquele no qual vemos, regra geral, as personagens que vemos mais próximas. Pode-se dizer que o respeito que se tem pelos heróis aumenta à medida que se afastam de nós: major e longínquo reverentia. O afastamento dos locais repara, de certa forma, a demasiada proximidade dos tempos: porque o povo não encontra diferenças entre o que está, se assim posso falar, a mil anos de distancia dele, e o que está a mil léguas. É isto que faz com que, por exemplo, os personagens turcos, por mais modernos que sejam, tenham dignidade no nosso teatro. olham-nos como se fossem antigos. Veja mais aqui e aqui.

EN EFFEUILLANT LA MARGUERITE – O filme En Effeuillant la Marguerite (Desfolhando a Margarida, 1956), do cineasta e roteirista francês Marc Allégret (1900-1973), conta a odisseia parisiense de uma jovem filha de um general que irritou o pai com a publicação do seu livro que empresta título ao filme, tudo se desenrolando com muito bom humor e destacando a graça e beleza da atriz, modelo, ativista e cantora francesa Brigitte Bardot. Veja mais  aqui.

AS PREVISÕES DO DORO PRO ANO TODO – As previsões pro ano todo do mestre Dorus está bombando na rede. Além de trazer as orientações de procedimentos quanto ao amor, saúde e dia a dia de cada signo, o cara-de-pau ainda dá de troco duas simpatias: a da virada do ano e a Tiro e Queda. Quer enriquecer da noite pro dia? Siga o mestre e aproveite para conferir e dar boas risadas aqui.

IMAGEM DO DIA
 A arte do acervo de Ísis Nefelibata. Veja aqui, aqui e aqui.

DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada à eterna musa do cinema Brigitte Bardot. Veja aqui e aqui.

LEITORA TATARITARITATÁ
 


sábado, junho 27, 2015

GUIMARÃES ROSA, ANAXIMANDRO, IDA PRESTI, KIESLOWSKI, LELIA, BARALDI, LAVINIA, ANAMARIA & SCHWITTERS.

VAMOS APRUMAR A CONVERSA? IH, ESQUECI! - Imagem: Anna Blossom, do pintor, escultor e poeta alemão Kurt Schwitters (1887-1948) - Quem ainda não passou pelo vexame de querer se lembrar de algo e, mesmo na ponta da língua, a lembrança se escondia nos cafundós do esquecimento? Nossa! Deu branco. Já paguei trocentos micos nessa saia-ajusta. Principalmente agora, cinquentão, estudante de Psicologia. Por exemplo: lembrar dos nomes da tuia de hormônios ou dos neurotransmissores na prova oral, nossa! A professora perguntava e na hora agá eu respondia: Carolina, gasolina, Severina, estricnina e por aí vai. Nada a ver. Mesmo fazendo associação das ideias, a coisa não vingava, fugiu. Vexame costumeiro que vem desde que passei pelo curso de Direito com as expressões latinas, tão comuns nos dizeres professorais. E olhe que eu já havia estudado Latim no curso de Letras. Mas, nada. Quando ouvia Nemo condemnatus nisi auditus vel advocatus, eu na hora ficava: - Hem? Saber, sabia; cadê eu soltar a resposta certa? Ah, passei muito aperto por causa dessa minha até então fortuita amnésia. O pior mesmo era na hora de lançamento dos meus livros: a pessoa na minha frente, anos de conhecida e cadê o nome do distinto no quengo? Puxava conversa, desconversava; contava risíveis situações vividas com ele ou familiares, perguntando por um e por outro – e nada do nome para eu autografar -, enrolando como podia e a fila lá esperando que eu despachasse. Nessa hora não aparecia ninguém para saudá-lo. Fazia de tudo para trazer à tona pelo menos o sobrenome e nada. E a bomba? Lá vai eu perguntar pela mãe dele e peitar tragédia de vê-lo lacrimejar e com a voz embargada: - Você não soube? Cadê buraco no chão preu me socar? Ela havia recentemente falecido e eu não sabia ou não me lembrava. Pode? Pois é. Já pelejei muito na ideia para sapecar com categoria algo que insistia em não ser pronunciado na hora que eu precisava mencioná-lo. Cheguei a ponto de não saber se o defeito estava na minha memória de curto prazo ou se eu havia me divorciado da de longo prazo – êta vida besta essa minha de nem sequer conseguir guardar nada de seguro pra rememorar. Alguns já mangam: - É a idade, mô fio! Realmente, agora, mais do que nunca, é que é difícil de decorar as coisas. Poemas e músicas que componho hoje são sacrifícios para recitá-los de cabeça ao pé da letra: ou falta um verso, ou esqueço tudo. Isso devia acontecer também com as coisas ruins que vira e mexe rondam na recordação das voltas do cérebro, não era não? Isso a gente não esquece nunca, pelo menos eu. Agora, na hora da precisão, vixe! Sim, mas eu estava falando mesmo do quê? Ih, esqueci! Vôte! Vamos aprumar a conversa & tataritaritatá. Veja mais aqui e aqui.

Imagem: Minerva Dressing (1613), Oil on canvas, Galleria Borghese, Rome, da pintora italiana Lavinia Fontana (1552-1614).

Curtindo The Art of Ida Presti (2012), da violonista clássica francesa Ida Presti (1924-1967), compilation includes the Villa-Lobos , Visée, Bach, Albeniz, Malats, Fortea, Moreno-Torroba, Sor, Pujol & Lagoya.

SOBRE A NATUREZA – A obra Sobre a natureza, do matemático, astrônomo, geógrafo e filósofo grego Anaximandro de Mileto (610-547aC), é considerada a primeira obra filosófica, dela restando apenas alguns fragmentos e noticias de filósofos posteriores. Atribui-se a ele a confecção de um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon e a medição das distancias entre as estrelas e o calculo de sua magnitude (é o iniciador da astronomia grega). Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o processo cósmico total. Acreditava o filósofo que o princípio de tudo - o arché das coisas - era o apéiron, isto é, uma matéria infinita da qual todas as outras se cindem., sendo algo insurgido e imortal, preocupando-se inclusive com as coisas todas que saem do princípio. Ele diz que o mundo é constituído de contrários, que se autoexcluem o tempo todo. Para ele o mundo surge de duas grandes injustiças: primeiro, da cisão dos opostos que "fere" a unidade do princípio; segundo, da luta entre os princípios onde sempre um deles quer tomar o lugar do outro para poder existir. De sua obra destaca-se os trechos traduzidos pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche: [...] De onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar penitencia e de ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do tempo. [...] O verdadeiro critério para o julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Penitenciamo-nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo lugar, pelo morrer. [...] O que vale vosso existir? E, se nada vale, para que estais aí? Por vossa culpa, observo eu, demorai-vos nessa existência. Com a morte teris de expiá-la. Vede como murcha vossa Terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a montanha vos mostra o quanto já secaram; o fogo, desde já destrói vosso mundo, que, no fim, se esvairá em vapor e fumo. Mas sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal mundo de inconstância: quem seria capaz de livrar-vos da maldição do vir-a-ser? [...] De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também deve afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo. Veja mais aqui e aqui.

JOÃO PORÉM, O CRIADOR DE PERUS – O livro Tutameia: terceiras estórias (José Olympio, 1976), reúne quarenta contos dispostos em ordem alfabética do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967), com histórias extremamente curtas que rompem com o estilo até então cultivado pelo escritor. Entre os escolhidos destaco João Porém, o criador de perus: Agora o caso não cabendo em nossa cabeça. O pai teimava que ele não fosse João, nem não. A mãe, sim. Daí o engano e o nome, no assento de batismo. Indistinguível disso, ele viçara, sensato, vesgo, não feio, algo gago, saudoso, semi-surdo; moço. Pai e mãe passaram, pondo-o sozinho. A aventura é obrigatória. Deixavam ao Porém o terreno e, ainda mais, um peru pastor e três ou duas suas peruas. E tanto; aquilo tudo e egiptos. Desprendado quanto ao resto, João Porém votou-se às aves – vocação e meio de ganho. De dele rir-se? A de criar perus, os peruzinhos mofinos, foi sempre matéria atribulativa, que malpaga, às poucas estimas. Não para o João. Qual o homem e tal a tarefa: congruíam-se, como um tom de vida, com riqueza de fundo e deveres muito recortados. Avante, até, próspero. Tomara a gosto. O pão é que faz o cada dia. Já o invejavam os do lugar – o céu aberto ao público – aldeiazinha indiscreta, mal saída da paisagem. Ali qualquer certeza seria imprudência. Vexavam-no a vender o pequeno terreiro, próprio aos perus vingados gordos. Porém tardava-os, com a indecisão falsa do zarolho e o pigarro inconcusso da prudência. Tornaram; e Porém punha convicção no tossir, prático de economias quiméricas, tomadas as coisas em seu meio. Desistiram então de insistir, ou de esperar que, mais-menos dia, surgida alguma peste, ele desse para trás. Mas lesavam-no, medianeiros, no negócio dos perus, produzidos já aos bandos; abusavam de seu horror a qualquer espécie de surpresas. Porém perseverava, considerando o tempo e a arte, tão clara e constantemente o sol não cai do céu. No fundo, coqueirais. Mas inventaram, a despautação, de espevitar o espírito. Incutiram-lhe, notícia oral: que, de além-cercanias, em desfechada distância, uma ignorada moça gostava dele. A qual sacudida e vistosa – olhos azuis, liso o cabelo – Lindalice, no fino chamar-se. João Porém ouviu, de sus brusco, firmes vezes; miúdo meditou. Precisava daquilo, para sua saudade sem saber de quê, causa para ternura intacta. Amara-a por fé – diziam, lá eles. Ou o que mais, porque amar não é verbo; é luz lembrada. Se assim com aquela como o tivessem cerrado noutro ar, espaço, ponto. Sonha-se é rabiscos. Segredou seu nome à memória, acima de mil perus extremadamente. Embora de lá não quisesse sair, em busca, deixando o que de lei, o remédio de vida. – Não ia ver o amor? – instavam-no, de graça e com cobiça. Arrendar-lhe-iam o sítio, arranjavam-lhe cavalo e viático… Se bem pensou, melhor adiou: aficado, com recopiada paciência, de entre os perus, como um tutor de órfãos. Sustentava-se nisso, sem mecanismos no conformar-se, feito uma porção de não-relógios. A moça, o amor? A esperança, talvez, sempre cabedora. A vida é nunca e onde. E vem que o tiveram de louvar – sob pressão de desenvolvimento histórico: um, dos de caminhão, da cidade, fechara com o Porém dos perus tráfico ajuste perfeito; e a bela vez é quando a fortuna ajuda os fracos. Nem se dava disso, inepto exato, cuidando e ganhando, só em acrescentamentos, homem efetivo, já admirado, tido na conta de outro. Pasmavam, os outros. Pudera crer na inventada moça, tendo-a a peito? Ágil, atentivo, sempre queria antigas novidades dela. De dó ou cansaço, ou por medo de absurdos, acharam já de retroceder, desdizendo-a. porém prestou-lhe a metade surda de seus ouvidos. Sabia ter conta e juíxo, no furtivar-se; e, o que não quer ver, é o melhor lince. Aceitara-a, indestruía-a. Requieto, contudo, na quietude, na inquietude. O contrário da idéia-fixa não é a idéia solta. – “Aconteceu que a moça morreu…” – arrependidos tiveram então de propor-lhe, ajuntados para o dissuadir, quase com provas. Porém gaguejou bem – o pensamento para ele mesmo de difícil tradução: – Esta não é minha vez de viver… – quem sabe. Maior entortou o olhar, sinceramente evasivo, enquanto coléricos perus sacudiam grugulentos. Tanto acreditara? Segurava-se à falecida – pré-anteperdida. E fechou-se-lhe a estrada em círculo. Porém, sem se impedir com isso, fiel à forte estreiteza, não desandava. Infelicidade é questão de prefixo. Manejava a tristeza animal, provisória, perturbável. Se falava, era com seus perus, e que . Era só um homem debaixo de um coqueiro. Vem que viam que ele não a esquecia, viúvo como o vento. Andava o rumo da vida e suas aumentadas substituições. Ela não estava para trás de suas costas. Porém, Lindalice, ele a persentia. Tratava centena de peruzinhos em gaiolas, e outros tantos soltos, já com os pescoços vermelhos. Bem que bem – e porque houvesse justo o coincidir fortuito – moveram de o fazer avistar-se com uma mocinha, de lá, também olhos azuis, lisos cabelos, bonita e esperta, igual à outra, a urdida e consumida. Talvez desse certo. Pois, por sombras! Porém aqui suspendeu suma a cabeça, só zarolhaz, guapamente – vez tudo, vez nada – a mais não ver. Deixaram-no, portanto, dado às aranhas dos dias, anos, mundo passável, tempo sem assunto. E Porém morreu; nem estudou a quem largar o terreno e a criação. Assustou-os. Tinham de o rever inteiro, do curso ordinário da vida, em todas as partes da figura – do dobrado ao singelo. João Porém, ramerrameiro, dia-a-diário – seu nariz sem ponta, o necessário siso, a força dos olhos caolhos – imóvel apaixonado: como a água, incolormente obediente. Ele fora ali a mente mestra. Mas, com ele não aprendiam, nada. Ainda repetiam só: –  “Porém! Porém…” Os perus, também. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

HIPÓTESE DE MAIO, AMOR TIRANO & REFLEXO – No livro Poesia Reunida (1956-2006 / Bem-te-vi, 2012), da premiada escritora, antropóloga e crítica de arte Lelia Coelho Frota (1938-2010), reúne os poemas do período de 1956/2006, entre os quais destaco Reflexo: Neste balão de vidro discorria / em breve imagem, o nosso eu-vermelho; / e inscrustava no fundo de si mesmo / a paragem oclusa, sem relógios, / onde (não mais miragens) nos riremos / de fluido riso igual todo setembro: / um riso fotográfico, fixado / A íntimos corredores do cristal / que a ninguém iludirá – cristal, / cristal será – estilhaçado em mil / cristais, il risos mudos teceriam / o escarlate de nosso ser-espelhos: / aprisionado em cor. E mesmo ausentes / e outros, não nos desvencilhamos, vasta / é a planicia sanguínea deste escrínio / dócil, sem violência. Entre poentes / permanentes se multiplica em prisma / esta contemplação despreocupada. / Vidro, som vazado em vermelho, vidro / contra as garras mais finas de teu gelo / se arremessa a nossa forma disforme, / inconformada. E vidro em ser vibrante / clausura musical que recaptura / para a retina pobre o antigo encanto / e o reflete em presente, sob meu canto. Também o seu Amor tirano: Invejável clausura / Tem o fauno da fonte / da Avenida da Liberdade. / Não sabe o que é saudade: / ele dura. Por fim, o seu magistral poema Hipótese de maio: Sobre a mesa o relógio /anuncia meu tempo / que se desfaz em crivo / de aflito pensamento. / De que jardins me evado / de que amores provenho / de que enredo impreciso / se armara o que estou sendo / entre meus dicionários / fragmentos de retratos / os rútilos canários / enfunadas cortinas. / Os amigos inquietos / o silêncio a aumentar / concêntrico, severo / em torno das conversas / além da ausência, / além dos constantes afetos. / Resíduos de passeios / em paisagens alheias / empinham-se em gavetas —/ cartas de amor nos seus / macios envelopes / risadas e conchinhas / a voz que fala sempre / no fundo da sonata / diletantes poemas / todos concordemente / citando o Coração / ladeado de flores / zéfiros sorridentes / (e os sabia chorosos). / As gavetas estufam / o que nelas se havia / adquire vida própria / um sitiado encanto / e expulsa da memória / de que participava / com escassa competência / eu, que leve o lembrava. / O conteúdo humano / desse ditoso espólio palpita, e entretanto /— semicerrados olhos / agitar de cambraia — / invencível o sono / se engolfa na dolência. / Sono maior que o escuro / a corromper a luz / diuturna nostalgia / de um sonho, não sei mais / ao certo o que seria. / Coágulo sombrio / adensando-se em zona / fechada, onde me perco / neste mês-de-maria / pensando o que seria / de mim, no dissolvido / rumor que me povoa / sem conduzir à fala / da sempre poesia / sem revelar o muito / de amar que pretendia / antes de antes, não sei / ao certo o que seria. / Mas bem que perfazia / um circuito profundo / onde a primeira imagem / (início e ata finda) / que ainda se reflete / é a da jovem correndo / pela campina, soltos / cabelos, e as glicínias / a descer pelos ombros / prendendo-se na boca / primavera garrida / pelo azul florentino. / Na mão direita tinha / uma roseira viva / juritis entoavam / campestres ladainhas / pela transparência / de sua carnação / via-se-lhe o coração / com um só nome gravado / a rubro, fulcro infenso. / Corria na campina / fantástica, e ainda / posso lembrar que em fuga / amava sempre, e ria. Veja mais aqui.

GERAÇÃO TRIANON – A premiada peça teatral Geração Trianon - Texto elaborado a partir de frases, expressões, citações e situações da nossa História Teatral nas décadas de 10, 20 e 30, da dramaturga, diretora de teatro, autora de telenovelas e roteirista Anamaria Nunes, foi contemplada com o Prêmio Shell de melhor autora (1988), entre outras premiações, contando a história do teatro Trianon do Rio de Janeiro, no qual ocorreram espetáculos com os grandes nomes da época, quando a companhia discute a ausência do público. Da obra destaco a Cena VIII: [...] Cena VIII – MARCONDES — Que é isso? O senhor aqui outra vez? EULAMBIA — Fui eu. MARCONDES — Foste tu? EULAMBIA (à parte) Terá desconfiado? MARCONDES — O senhor está cá em cima quando devia estar lá embaixo. Ponho-o no olho da rua, seu vadio. ROSINHA (para Eulambia) Defenda-o. EULAMBIA — Fui quem o chamou, meu amor. MARCONDES (à parte) Meu amor? EULAMBIA — Para me trazer sabão... MARCONDES — Sabão? Pois se pegaste ontem... EULAMBIA — Já se acabou. MARCONDES — Aqui há cousa! ANTONICO (saindo) Já trago o sabão, dona Eulambia. ROSINHA — Quer que ensaboe a roupa agora? EULAMBIA — Eu mesma ensaboo. Arruma a sala, é mais leve. ROSINHA — Sim, senhora. EULAMBIA — Precisas de alguma cousa, meu amor? Estou às tuas ordens. MARCONDES — Meu amor? Eu? Sei. (Eulambia sai) Então é ela que ensaboa a roupa? E eu já sou meu amor! E tu, Rosinha, sem mais pra que, passas a ser tratada como uma filha... ROSINHA — É pra ver. Depois de apanhar até! MARCONDES — Que transformação súbita é esta? ROSINHA — Parece milagre. MARCONDES — Milagre? É, é um milagre. Não, aqui há manobra, oh se há... ROSINHA — Deve ser remorso. Judiou tanto de mim. MARCONDES — E de mim então? Mas vamos deixar disso e voltar aquela nossa palestrinha... ROSINHA — Já vem o senhor outra vez. MARCONDES — Não sejas tolinha. Dou-te toda a garantia. ROSINHA — E a patroa? MARCONDES — Nunca saberá Tu vais contar? Eu vou contar? Está visto que não. ROSINHA — Não é isso. O que 44 o senhor vai fazer dela? MARCONDES — Fica por aí, como um traste imprestável. É um estafermo. ROSINHA — Dona Eulambia não vai se conformar. Ela ainda está conservada. MARCONDES — Conservada? Já tem até gogó como galinha velha! (Atirando-se) Tu sim, tetéia, minha candonga, tu é que és da gente arregalar o olho! ROSINHA — Sai daqui, seu Marcondes. MARCONDES — Malvada! Mas se quiseres a casinha. Tu lá dentro. E eu, de vez em quando também. Sempre não, que eu sou um negociante conhecido na praça e faço parte da União dos Varejistas. ROSINHA — Não sei... MARCONDES — Aceita, pombinha! ROSINHA — Se falhar uma outra cousa que tenho em vista, aceito. MARCONDES — Que outra cousa? ROSINHA — Quero tudo que o senhor me promete, mas casando. MARCONDES — Casando? Na Igreja? ROSINHA — Contento-me com a Pretoria. MARCONDES — Ainda assim é difícil. Não complica as cousas. Aceita a casinha e o meu amor... Anda cá, senta-te aqui, ao meu colo, vamos conversar! ROSINHA — Pode vir alguém... MARCONDES — Não virá. Senta-te, meu bijuzinho! ROSINHA — Mas dona Eulambia... MARCONDES — Chama-me de meu amor. Está mansa. Não há perigo. Deixa-te de luxo e senta-te. É só um minuto, tetéia. Dou-te um beijinho e está tudo combinado, ROSINHA — Não. (Ouve passos fora) Então vá lá. (Senta-se) MARCONDES — Vem gente! [...] Veja mais aqui.

LA DOUBLE VIE DE VÉRONIQUE – O filme La double vie de Véronique (A dupla vida de Véronique, 1991), do cineasta polonês Krzystof Kieslowski (1941-1996) e com trilha sonora de Zbigniew Preisner, conta duas histórias paralelas sobre duas mulheres idênticas: uma que vive na Polônia – Weronika que estuda numa escola de música, trabalha duro, leva uma queda e morre em sua primeira performance; a outra que vive na França – Véronique, que numa reviravolta resolver não ser cantora. Elas não sed conhecem e suas vidas são profundamente ligadas. O filme arrebatou diversos prêmios no Festival de Cannes (1991), Cesar Awards (1992), Sindicato dos Críticos de Cinema da França (1992), Globo de Ouro, Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles, Premio Sant Jordi Barcelona (1993), Festival Internacional de Cinema de Varsóvia, entre outros. O destaque do filme é para a lindíssima atriz franco-suíça Irène Marie Jacob. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

IMAGEM DO DIA
 Charges do livro Moro num país tropicaos (Publisher, 2002), do cartunista e criador da logomarca Tataritaritatá Márcio Baraldi. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Veja mais sobre:
Ah, se estou vivo, tenho mais o que fazer, a literatura de Liev Tolstói, Funil do ser de Nauro Machado, Teatro & a cena dividida de Gerd Bornheim, a pintura de Lasar Segall, a música de Joyce, a arte de Patrick Conklin & Luciah Lopez aqui.

E mais:
Lagoa Manguaba, Teoria do vínculo de Pichon Rivière, História do Brasil de Laurentino Gomes, a música de Gustav Mahler, Amor por anexins de Artur Azevedo, a pintura de Lasar Segall, o cinema de Vittorio De Sica & Sophia Loren, a arte de Ekaterina Mortensen & Kiki Rainha de Montparnasse, Pavios curtos de José Aloise Bahia & Programa Tataritaritatá aqui.
Lampião & Ascenso Ferreira, A música de Gustav Mahler, a pintura de Marc Chagall, Teatro a vapor de Artur Azevedo, a arte de Bee Scott & muito mais aqui.
As trelas do Doro & o escambau aqui.
Fecamepa: Quando um país vive só de nhenhenhém, não dá outra: o pencó engancha na cornice e nada vai pra frente aqui.
A lenda do Curare aqui.
Brincarte do Nitolino, Questão de método de Jean-Paul Sartre, A cartomante de Machado de Assis, Bagagem de Adélia Prado, o teatro de William Shakespeare, a música de Eumir Deodato, o cinema de Jean-Luc Godard, a arte de Carlos Scliar, Decio Otero & Ballet Stagium aqui.
Princípios de uma nova ciência de Giambattista Vico, a poesia de Anna Akhmátova, Hora e vez de Augusto Matraga de João Guimarães Rosa, O cravo brasileiro de Rozana Lanzelotte, Devassos no paraíso de João Silvério Trevisan, a pintura de Eliseo d'Angelo Visconti & Moacir, a arte de Dercy Gonçalves & Programa Tataritaritatá aqui.
Viva São João, a música de Luiz Gonzaga, a poesia de Ascenso Ferreira, Terra de Caruaru de José Condé, Tratado da lavação da burra de Ângelo Monteiro, o teatro de Artur Azevedo, o cinema de Sérgio Silva & Dira Paz, Brincarte do Nitolino, a xilogravura de José Barbosa & Severino Borges, a pintura de Rosangela Borges & Valquíria Barros aqui.
O amor de Naipi & Tarobá, Arte e percepção visual de Rudolf Arnheim, Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato, a pintura de Fernand Léger, a música de Vivaldi & Max Richter, Improvisação para teatro de Viola Spolin, a fotografia de Fernand Fonssagrives, a arte de Regina Kotaka & Eugénia Silva aqui.
Penedo, às margens do São Francisco, História social do Brasil de Manoel Maurício de Albuquerque, Asvelhas de Adonias Filho, a música de Bach & Rachel Podger, A arte maldita de Georges Bataille, a pintura de Jaroslav Zamazal, a arte de Marcel Duchamp, a fotografia de Karin van der Broocke, Vanguard & Kéfera Buchmann aqui.
Ela, marés de sizígia, Mulher de Yone Giannetti Fonseca, Tratado de argumentação de Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca, a música de Guilherme Arantes, Pensamento crítico, Vaudezilla & Urban Jungle, a pintura de Tom Pks Malucelli & Time Honored Desins, a arte de James Halperin & Luciah Lopez aqui.
As olimpíadas do Big Shit Bôbras, Os dragões do éden de Carl Sagan, O discurso da difamação de Affonso Ávila, a música de Peter Machajdik, a pintura de Brian Keeler & Gray Artus, Microbiologia dos alimentos & Casa do Contador de Histórias aqui.
Só a poesia torna a vida suportável, Vanguarda nordestina de Anchieta Fernandes, Estado de choque de Walmir Ayala, Vanguarda & subdesenvolvimento de Ferreira Gullar, o cinema de Anna Muylaert, a pintura de Károly Lotz, a música de Ira Losco, a arte de Jean Dubuffet & Michael Mapes aqui.
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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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NOÉMIA DE SOUSA, PAMELA DES BARRES, URSULA KARVEN, SETÍGONO & MARCONDES BATISTA

  Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Sempre Libera (Deutsche Grammophon , 2004), Violetta - Arias and Duets from Verdi's La Tra...