terça-feira, junho 27, 2017

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA, AS VISÕES DE KIESLOWSKI, A MÚSICA DE MARCUS VIANA, TARSILA DO AMARAL & O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE

O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE – Era só o ameríndio pra quem chegou. Depois, o mameluco com olhos pro pai forasteiro, esqueceu o índio-índio, mais nada. Aí veio o preto-preto, virou festa, carnaval. Tudo misturado, santa mestiçagem. O que era um virou três, muitos, todos. Mesmo assim dividiram o de todos para poucos escolhidos, bolo em fatias para achegados e privilegiados. Haja farelo pros expulsos que estavam dentro, donos despejados e, do terreiro, ficaram brechando pendurados na janela com outros deserdados, o que faziam da casa dele: a festa dos de dentro jogando esmolas, o descarte da fartura aos pingos, às colherzinhas, conta-gotas. E o sangue era vermelho pra qualquer um, até pros que se achavam azul. E a terra era de todos, passou a ter cercas, arames farpados, muros e fronteiras com seguranças e capatazes. Para quem só tinha o chão por acolhida, não me valia de sobrenome abastado ou qualquer, ou marca, brasão, insígnia, ou se pardo é nojento, moreno é charmoso, ou se o amarelo é oriental ou subnutrido, o preço do preconceito: só há um ser humano e eu sou como a roupa no varal que seca à espera de vestir, ou a que na vitrine não foi comprada, um dia será dada, todas servirão para quem queira ou não tenha. Hoje sou feliz e nada tenho, iconoclasta de totens e tabus, e mato e morro ao perder o que era uma parte de mim que ficou para trás e só possuo a vontade do trabalho, minhas mãos pras lutas, a coragem pra romper redomas e limites, o ânimo de viver, mais nada, atrepado nas casas de pombos pra gente – o horizontal sempre coibido, tudo pra vertical: a hierarquia, uns sobre os outros, amontoados, e a vida é outra coisa além de quem mora na cobertura dos arranha-céus ou embaixo da ponte. Não preciso de mais, me basta o que sou de nada desvalido entre as ruínas que valem os impérios dos seres anestesiados que expiram com os suspiros dos vazios, narizes na vitrina esfregada entre a fortuna e a sarjeta com todas as indecisões. Vencer ou perder, tanto faz, as duas faces da mesma moeda, como ir ou voltar, subir ou descer, vale a preparação. Há quem chore de felicidade, ou ria na desgraça. Cada qual o seu tanto de experiências, a erosão, a ferrugem, ventos que vão e fica a quentura, telhados pro céu. Coisas que valem ontem, ou feitas amanhã: ouro que não tem mais, só o que se quer, o desejo, nada mais. Entre um e outro, cada um. As malas prontas – pra onde? -, o uso e o usado, ali no canto esquecido repousam como se fossem pedaços de todo universo num cubículo e a solidão. Tudo desarrumado entre mofo e poeira de sonhos e o que foi feito serve pra lata de lixo. Um dia, quem sabe, uma serventia qualquer, coisa de não se lembrar na gaveta ou nas caixas, se um dia servir, como lápis de cor feito luz, senão escuridão e pra noite tudo é escuro, como o sol é para todos. Tudo existe de dia; de noite, se inventa. Sou grato pela incompreensão, nela eu aprendi. Assim não fosse, nada saberia: um catatônico com uma glória de areia. Meu corpo é da terra e nela vivo. E se me atrevo diante da faca afiada da vida que corta e retalha em postas cada ser vivo, é porque sou o desperdício como o meu povo subestimado foi estornado desde sempre pra dizer o que pensa e quer entre a fome e o prato de comida pra quem tem fome e pra quem só se abastece, vício do hábito. Mas a vida não é faca, é graça! É graça que vira faca e torna a ser graça, pra venturosos ou desgraçados. Só tenho o chão de qualquer lugar, de onde nasci só terei cinzas pra ser-me de volta, o amanhã que se edifica de ontem pra hoje. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA
[...] Num campo de muitas águas. Os buritis faziam alterza, com suas vassouras de flores. Só um capim de vereda, que doidava de ser verde – verde, verde, verdeal. Sob oculto, nesses verdes, um riachinho se explicava: com a água ciririca – “Sou riacho que nunca seca...” – de verdade, não secava. Aquele riachinho residia tudo. Lugar aquele não tinha pedacinhos. A lá era a casa do Boi. O Boi, que vinha choutando. Antão o Boi esbarrou. Se virou, raspou, raspou, raspou,. O Boi se fazia, muitas vezes; mandava nos olhos da gente suas seguidas figuras. O Vaqueiro mandou o medo embora. Num à-direita se desapeou, e pulou pra o lado dele. Lhe furtou a volta. Pôs a vara-de-ferrão na forma, pra esperar ou pra derrubar. Mas o Boi deitou no chão – tinha destiado na cama. Sarajava. O campo resplandecia. Para meljhor não se ter medo, só essas belezas a gente olhava. Não se ouvia o bem-te-vi: se via o que ele não via. Se escutava o riachinho. Nem boi tem tanta lindeza, com cheiro de mulher solta, carneiro de lã branquinha. Mas o Boi se transformoseava: aos brancos de aço de lua. Foi nas fornalhas de um instante – o meio-tempo daquilo durado. O Vaqueiro falou o Boi. “-Levanta-te, Boi Bonito, ô meu mano, deste pasto acostumado! – Um vaqueiro, como você, ô meu mão, no carrasco eu tenho deixado!” O de ver que tinha o Boi: nem ferido no rabicho, nem pego na maçaroca, nem risco de aguilhada. O Vaqueiro que citou. O Cavalo não falava. [...].
Trechos da obra Manuelzão e Miguilim (José Olympio, 1977), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Veja mais sobre:
Tudo em mim mestiço sou, O povo brasileiro de Darcy Ribeiro, o anarquismo de Emma Goldman, A história da vida de Helen Keller, a música de Haydn & Guilhermina Suggia, A escultura de Luiz Morrone, a pintura de Pisco Del Gaiso & Martin Eder, Os Fofos Encenam & Viviane Madu aqui.

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Os tantos e muitos Brasis aqui.
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Água morro acima, fogo queda abaixo, isto é Brasil aqui.
Preconceito, ó, xô prá lá aqui.
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Carta de amor, Espécies naturais de Willard Van Orman Quine, Mulher da cor do tango de Alicia Dujovne Ortiz, a música de Dori Caymmi, Memórias de Prudhome de Henry Monnier, a fotografia de João Roberto Riper, Poema da paz de Madre Teresa de Calcutá, a arte de Tanja Ostojić & Luciah Lopez aqui.
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AS VISÕES DE KIESLOWSKI
Entre os muitos e belos filmes que vi do premiadíssimo cineasta polonês Krzysztof Kieslowski (1941-1996), dois curtas-metragens documentários muito interessantes. O primeiro, Sete mulheres de diferentes idades (Siedem kobiet w róznym wieku, 1978), composto por uma série de sequências atribuidas aos dias da semana, começando na quinta-feira com a bailarina do dia por heroína, registrando naturalmente as ações e reações das personagens e reações, os muitos anos de trabalho meticuloso das bailarinas, seleção de elenco, experimentações e o triunfo no palco. O segundo, o premiado Cabeças que falam (Gadajace glowy, 1980), no qual acontecem entrevistas com centenas de poloneses, ordenado cronologicamente do bebê à mulher centenária, questionando o ano de nascimento, quem é a pessoa, o que é mais importante para ela, o que ela pensa do futuro. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ: MARCUS VIANA
Pantanal, a suíte orquestral Olga, A música dos 4 elementos, Sete Vidas amores & guerras, Raio & Trovão, entre outras, do violinista, tecladista e compositor Marcus Viana. Ligue o som e confira. Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE TARSILA DO AMARAL
A arte da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Triphase (2008), Empreintes (2010), Yôkaï (2012), Circles (2016), Fables of Shwedagon (2018)...