O AMANHÃ DE ONTEM PRA HOJE – Era só o
ameríndio pra quem chegou. Depois, o mameluco com olhos pro pai forasteiro,
esqueceu o índio-índio, mais nada. Aí veio o preto-preto, virou festa,
carnaval. Tudo misturado, santa mestiçagem. O que era um virou três, muitos,
todos. Mesmo assim dividiram o de todos para poucos escolhidos, bolo em fatias
para achegados e privilegiados. Haja farelo pros expulsos que estavam dentro, donos
despejados e, do terreiro, ficaram brechando pendurados na janela com outros
deserdados, o que faziam da casa dele: a festa dos de dentro jogando esmolas, o
descarte da fartura aos pingos, às colherzinhas, conta-gotas. E o sangue era vermelho
pra qualquer um, até pros que se achavam azul. E a terra era de todos, passou a
ter cercas, arames farpados, muros e fronteiras com seguranças e capatazes. Para
quem só tinha o chão por acolhida, não me valia de sobrenome abastado ou
qualquer, ou marca, brasão, insígnia, ou se pardo é nojento, moreno é charmoso,
ou se o amarelo é oriental ou subnutrido, o preço do preconceito: só há um ser
humano e eu sou como a roupa no varal que seca à espera de vestir, ou a que na
vitrine não foi comprada, um dia será dada, todas servirão para quem queira ou
não tenha. Hoje sou feliz e nada tenho, iconoclasta de totens e tabus, e mato e
morro ao perder o que era uma parte de mim que ficou para trás e só possuo a
vontade do trabalho, minhas mãos pras lutas, a coragem pra romper redomas e
limites, o ânimo de viver, mais nada, atrepado nas casas de pombos pra gente –
o horizontal sempre coibido, tudo pra vertical: a hierarquia, uns sobre os
outros, amontoados, e a vida é outra coisa além de quem mora na cobertura dos
arranha-céus ou embaixo da ponte. Não preciso de mais, me basta o que sou de
nada desvalido entre as ruínas que valem os impérios dos seres anestesiados que
expiram com os suspiros dos vazios, narizes na vitrina esfregada entre a
fortuna e a sarjeta com todas as indecisões. Vencer ou perder, tanto faz, as
duas faces da mesma moeda, como ir ou voltar, subir ou descer, vale a
preparação. Há quem chore de felicidade, ou ria na desgraça. Cada qual o seu
tanto de experiências, a erosão, a ferrugem, ventos que vão e fica a quentura,
telhados pro céu. Coisas que valem ontem, ou feitas amanhã: ouro que não tem
mais, só o que se quer, o desejo, nada mais. Entre um e outro, cada um. As
malas prontas – pra onde? -, o uso e o usado, ali no canto esquecido repousam
como se fossem pedaços de todo universo num cubículo e a solidão. Tudo desarrumado
entre mofo e poeira de sonhos e o que foi feito serve pra lata de lixo. Um dia,
quem sabe, uma serventia qualquer, coisa de não se lembrar na gaveta ou nas
caixas, se um dia servir, como lápis de cor feito luz, senão escuridão e pra
noite tudo é escuro, como o sol é para todos. Tudo existe de dia; de noite, se
inventa. Sou grato pela incompreensão, nela eu aprendi. Assim não fosse, nada
saberia: um catatônico com uma glória de areia. Meu corpo é da terra e nela
vivo. E se me atrevo diante da faca afiada da vida que corta e retalha em
postas cada ser vivo, é porque sou o desperdício como o meu povo subestimado
foi estornado desde sempre pra dizer o que pensa e quer entre a fome e o prato
de comida pra quem tem fome e pra quem só se abastece, vício do hábito. Mas a
vida não é faca, é graça! É graça que vira faca e torna a ser graça, pra
venturosos ou desgraçados. Só tenho o chão de qualquer lugar, de onde nasci só
terei cinzas pra ser-me de volta, o amanhã que se edifica de ontem pra hoje. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
OS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA
[...] Num campo de muitas águas. Os buritis faziam
alterza, com suas vassouras de flores. Só um capim de vereda, que doidava de
ser verde – verde, verde, verdeal. Sob oculto, nesses verdes, um riachinho se
explicava: com a água ciririca – “Sou riacho que nunca seca...” – de verdade,
não secava. Aquele riachinho residia tudo. Lugar aquele não tinha pedacinhos. A
lá era a casa do Boi. O Boi, que vinha choutando. Antão o Boi esbarrou. Se
virou, raspou, raspou, raspou,. O Boi se fazia, muitas vezes; mandava nos olhos
da gente suas seguidas figuras. O Vaqueiro mandou o medo embora. Num à-direita
se desapeou, e pulou pra o lado dele. Lhe furtou a volta. Pôs a vara-de-ferrão
na forma, pra esperar ou pra derrubar. Mas o Boi deitou no chão – tinha
destiado na cama. Sarajava. O campo resplandecia. Para meljhor não se ter medo,
só essas belezas a gente olhava. Não se ouvia o bem-te-vi: se via o que ele não
via. Se escutava o riachinho. Nem boi tem tanta lindeza, com cheiro de mulher
solta, carneiro de lã branquinha. Mas o Boi se transformoseava: aos brancos de
aço de lua. Foi nas fornalhas de um instante – o meio-tempo daquilo durado. O
Vaqueiro falou o Boi. “-Levanta-te, Boi Bonito, ô meu mano, deste pasto
acostumado! – Um vaqueiro, como você, ô meu mão, no carrasco eu tenho deixado!”
O de ver que tinha o Boi: nem ferido no rabicho, nem pego na maçaroca, nem
risco de aguilhada. O Vaqueiro que citou. O Cavalo não falava. [...].
Trechos
da obra Manuelzão e Miguilim (José Olympio, 1977), do escritor, médico e
diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui, aqui,
aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
Tudo em
mim mestiço sou, O povo brasileiro de Darcy
Ribeiro, o anarquismo de Emma Goldman, A história da
vida de Helen Keller, a música de Haydn & Guilhermina Suggia, A escultura
de Luiz Morrone, a pintura de Pisco
Del Gaiso & Martin Eder, Os
Fofos Encenam & Viviane Madu aqui.
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Água morro acima, fogo queda
abaixo, isto é Brasil aqui.
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Fecamepa:
Quando o estreitamento do compadrio
está acima da lei, aí, meu, as panelinhas mandam ver e só os privilegiados se
banqueteiam aqui.
Brincarte
do Nitolino, Menino de engenho de José Lins do Rego, A canção de Allen Ginsberg, a música de Charles Lecocq, O signo teatral de Ingarden
& Cia., O choque das civilizações de Samuel Huntington, Noite &
neblina de Alain Resnais, a pintura
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A vida
se desvela nos meus olhos fechados, Outras mentes de John
Langshaw Austin, Humilhados e ofendidos de Fiodor Dostoiévski, Daniel Deronda
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a fotografia de Edward Weston, a arte
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Carta de amor, Espécies
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Riper, Poema da paz de Madre Teresa de Calcutá, a arte de Tanja Ostojić & Luciah Lopez aqui.
A fome e
a laranjeira, Princípios da filosofia do direito de Hegel,
Declaração da Independência do Espírito de Romain Rolland, O diário de Frida Kahlo, a música de Bach & Janine Jansen, a
fotografia de Sebastião Salgado, a xilogravura de Fernando Saiki, a arte de David Padworny & Tempo de amar de Genésio Cavalcanti aqui.
&
AS VISÕES
DE KIESLOWSKI
Entre os muitos e belos filmes
que vi do premiadíssimo cineasta polonês Krzysztof Kieslowski
(1941-1996), dois curtas-metragens documentários muito interessantes. O primeiro,
Sete mulheres de diferentes idades (Siedem kobiet w róznym wieku, 1978),
composto por uma série de sequências atribuidas aos dias da semana, começando
na quinta-feira com a bailarina do dia por heroína, registrando naturalmente as
ações e reações das personagens e reações, os
muitos anos de trabalho meticuloso das bailarinas, seleção de elenco,
experimentações e o triunfo no palco. O segundo, o premiado Cabeças que falam (Gadajace glowy, 1980), no qual acontecem
entrevistas com centenas de poloneses, ordenado cronologicamente do bebê à
mulher centenária, questionando o ano de nascimento, quem é a pessoa, o que é
mais importante para ela, o que ela pensa do futuro. Veja mais aqui, aqui, aqui
e aqui.
RÁDIO
TATARITARITATÁ: MARCUS VIANA
Pantanal,
a suíte orquestral Olga, A música dos 4 elementos, Sete Vidas amores &
guerras, Raio & Trovão, entre outras, do violinista, tecladista e
compositor Marcus Viana. Ligue o som
e confira. Veja mais aqui e aqui.
A ARTE DE TARSILA DO AMARAL
A arte da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1897-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e
aqui.