domingo, maio 01, 2022

ANA HATHERLY, GABRIEL MATZNEFF, MICHÈLE PETIT & GRAÇA LINS

 

 

TRÍPTICO DQP: De volta à estrada, de novo... – Imagem: AcervoLAM, ao som do álbum Antropopfagia ao vivo em New York  (Biscoito Fino, 2014), da poeta, compositora e multiartista Beatriz Azevedo. - O céu desabou faz tempo e o eclipse reina porque a neblina esconde o amanhecer, a derrocada geral de nenhuma despedida. Meus pés nas poças dos prantos invernosos canavial afora pelo passado que não lembro. O caminho parece longo e os edifícios são monstros escarnecedores da minha condenação, não me salvam do pé d’água torrencial pela punição do desterro: a distância é mais que o interdito de nunca ter que chegar perto de nada nem de lugar qualquer, nem de ninguém. Ah, antes fosse o caminho disfarçado do paraíso, a Ilha dos Amores dos Lusíadas de Camões: da terra imensa e mar não navegado. Não, não era, era a odisseia do Ulisses que errou de tudo, até das páginas soltas que se perderam no incêndio da biblioteca. Lá vou eu de novo com o poema de cor no desterro de Scorza, cruzando aqui e acolá com fantasmas que perderam sua direção. Entre um e outro distingui o escritor francês Gabriel Matzneff: A minha pátria profunda é o exílio. E tentou me livrar a cuspida na cara de alma penada. Eu que me desvencilhei de tudo no rebojo das horas e dos dias, tinha de levantar os olhos e seguir em frente. Quem aquela que acena ali? Quase não vi ao esbarrar apressado na alma solícita da escritora e artista plástica portuguesa Ana Hatherly (1929-2015): A teimosa realidade. Na arqueologia da paisagem a viagem da escrita é abolição oblíqua, delírio provocado, lição de tentativa. Ao fim de tantos anos o desejo faz-se exílio. Apontou-me o perigo e pude contornar sozinho proutra direção. Do que não tive por abrigo, a vida fez-se ambulante pelo que ficou para depois e nunca mais voltar.

 


Os gibis das chamas – Imagem: a arte do artista visual Raymundo Colares (1944-1986) – Os ônibus passam para lá e para cá, e não distingo mais nada: sou um bólido no espaço. Os luminosos indicam os destinos, pronde será que vão os olhos pregados no horizonte? As cores voam e me sinto outro, como se revivesse a infância com as experiências de Bruno Munari: a fila no ponto, o alvoroço do embarque, o engarrafamento: pronde vão? O centro emporcalhado, as curvas do largo, o cruzamento do metrô e as piruetas das motocicletas: pronde é que tudo vai? A sirene rasga a loucura, a buzina no semáforo, o ronco do ferro na frenagem, as marchas reengatadas, qual destino? O sonho lotado, o aceno na esquina tirou fino no retrovisor, passou perto a placa do velocímetro e queimou o ponto, subiu a serra e estreitos logradouros pelos morros do subúrbio. Se desceu eu nunca vi, piso o chão como quem buscasse a direção do bom porto: um filme roda na cabeça, nada se firma na ventania e rouba as formas de Volpi. Sou aquela pedra atirada na vidraça do museu e na parada obrigatória atravesso a vida e sinto como se eu fosse atropelado pela própria obra que fugiu do Salão Nacional, sem que perdesse as cores de Klee e nada entendesse da absurda lógica de Mondrian. De relance a velocidade, o caleidoscópio, o fogo na maca: a arte está morta, mas eu estou vivo. O final da linha: das cinzas, a tragédia no sanatório: outra é a ressurreição.

 


A leitura do eu e todos os outros... – Imagem: arte da poeta e artista visual Lenora de Barros. – Tudo se parecia como se eu tivesse saído das páginas de um livro qualquer da Biblioteca de Fenelon: finalmente o dia claro para o xexéu no voo das vespas à procura de maribondamigo. A casa onde eu nasci à beira do rio não existe mais e sou o eterno bocejo doutro lugar na espera do Pinheiros. É quase tão tarde, nunca demais: sou apenas o menino que fugiu confeitos nos bolsos da bodega dos avós e não sabia se subia a Coreia sem ter pronde ir, ou se pegava a rodagem da usina pra Pirangi, ou se dobrava a esquina das freiras pro Matadouro que nunca gostei. Nada, ficava no Pontilhão vendo as meninas passar e só voltava na hora do almoço para vê-la acenar: uma faísca no teor do raio daquela rubro-negra da foto furtada de tempos longínquos que reaparecia só pra que um dia eu pudesse homenageá-la numa postagem daqui. Agora depois de muita água passada por baixo da ponte de Japaranduba, o reencontro só para lembrar os Olhos de Clarice nas entrelinhas que ela escreveu. Afora coisas que a gente viveu no que ela expressou de amores e livros – ah, o professor Brivaldo na sala de aula do Ginásio, quando não peiticava comigo às gargalhadas de Pedro Bó ao reunir suas memórias prum livro. Foi então que ela me presenteou suas escrituras: das enigmáticas badaladas do sino que Heleninha não sabia o alarme dos comunistas tidos por monstruosos estupradores com 50 dedos em cada uma das 8 mãos e outras aberrações da invencionice; do nome de batismo daquele idílio de periquito enquanto o amor mandava ver nas palavras do mestre Machado; e a glória sem tortura de seu Bispo da Izácio – minha cidade ainda é empestada de nomes de rua com santos e milicos, salvam-se as praças da Luz e Maurity, uma ou outra rua como a do Limão que ninguém sabe se é azedo ou não, da Palma que pode ser da palmeira ou da mão, da Aurora que só se vê o Sol ao meio dia, do Jardim que não tem sequer um pé de coisa qualquer pra remédio, e as hilárias do Mijo, do Cu-de-boi, Esconde Negro e por aí vai. Saudoso Manoel dos meus compadres Javanci & Sandra. Coisa de encher o peito de tão bom, de jogar conversa fora e falar besteira. Aos meus olhos ela me disse linda como sempre: Ao ler, lemos a nós mesmos! Eis a salvação, folga meu coração erradio. Até mais ver.

 

[...] ler permite iniciar uma atividade de narração e que se estabeleçam vínculos entre os fragmentos de uma história, entre os quais participam de um grupo e, às vezes, entre universos culturais. Ainda mais quando essa leitura não provoca um decalque da experiência, mas uma metáfora. [...] Ler tem a ver com a liberdade de ir e vir, com a possibilidade de entrar à vontade em um outro mundo e dele sair. Por meio dele o leitor traça a sua autonomia [...].

Trechos extraídos da obra A arte de ler ou como resistir à adversidade (Ed. 34, 2009), da antropóloga francesa Michèle Petit. Veja mais sobre Leitura/Livroterapia & Educação aqui, aqui e aqui.

 



PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

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