DITOS &
DESDITOS - Todo mundo é ignorante, apenas em assuntos diferentes. Pensamento
do ator, cronista, roteirista e comediante estadunidense Will Rogers (1879-1935),
também autor de frases como: Mesmo estando
no caminho certo, você vai ser atropelado se ficar parado nele. Muita gente
gasta um dinheiro que não tem, para comprar coisas que não quer, para
impressionar pessoas de que não gosta. Tudo
é engraçado, desde que aconteça com outra pessoa. Não é difícil ser humorista,
quando temos o governo inteiro trabalhando para nós.
ALGUÉM FALOU: Eu jamais poderia
ser político com toda essa charlatanice da realidade... Os políticos estão
sempre falando de lógica, razão, realidade e outras coisas do gênero e ao mesmo
tempo vão praticando os atos mais irracionais que se possa imaginar. Ao contrário
dos “legítimos” políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político
pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na
ressurreição dos homens. Pensamento do escritor, médico e diplomata João
Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui, aqui e aqui.
MARCANDO O TEMPO EM UMA
CULTURA DE AMNÉSIA – [...] Não é preciso
muita sofisticação teórica para ver que toda representação - seja em linguagem,
narrativa, imagem, ou som gravado - é baseada na memória. Re-(a)presentação
sempre vem depois, ainda que algumas mídias tentem nos dar a ilusão de presença
pura. Mas ao invés de nos levar a alguma origem autêntica ou nos dar um acesso
verificável ao real, a memória, mesmo e especialmente em sua extemporaneidade,
é em si baseada na representação. O passado não está simplesmente na memória,
mas deve ser articulado para se tornar memória. Ao invés de lamentá-lo ou
ignorá-lo, esta divisão deveria ser entendida como um forte estimulante para a
criatividade cultural e artística. [...]. Trecho extraído da obra Twilight Memories - Marking Time in a
culture of Amnesia (Routledge, 1995), do professor e crítico de
arte Andreas Huyssen. Veja mais aqui.
O CÔNEGO OU METAFÍSICA DO ESTILO - Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano,
vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de
pombos... — "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o
meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..." Era assim, com
essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do
Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor
precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo,
a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.
Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas para
vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que
favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e
institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze,
corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos
decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão
todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta
psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por
tonto, como se vai ver. Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava
compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de
idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram
encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com
uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas
instaram tanto, que aceitou. — Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o
principal dos festeiros. Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os
eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de
veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava
ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero
brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade
de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se
meteu a escrever o sermão. Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos
já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com
os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao
ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora
devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas
trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo,
suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna.
Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego. Upa! Cá estamos.
Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao
Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo
cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não
creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa
ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do
cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por
este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda.
Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se
vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de
outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença
sexual... — Sexual? Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou
acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro
esta descoberta. Palavra tem sexo. — Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo.
Senhora minha, confesse que não entendeu nada. — Confesso que não. Pois entre
aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe
quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no
papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece:
"Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se
fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta
é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem
é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de
Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o
florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro. Portanto, vamos lá por essas
circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o
adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também
alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio. Ouvem-se agora e procuram-se.
Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de cousas
velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os
chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que
desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes
latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre
andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir. De quando em
quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e oferece-lhe as suas
graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a
destinada ab eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da
única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à
cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no
eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede
um certo amor nomeado e predestinado. Agora não te assustes, leitor, não é
nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do
esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro,
ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão
enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe
um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da
janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e
pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé
do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os
ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano;
depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos,
encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia. Mas Sílvio e Sílvia é
que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles
prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora,
porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se
faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam.
Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os
sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do
outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim,
e escorreguemos também. Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre
embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos,
perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras
idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras
idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um
escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem
moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que
não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança.
Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas
da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas,
em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um
fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande
unidade impalpável e obscura. — Vem do Líbano, esposa minha... — Eu vos
conjuro, filhas de Jerusalém... Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam
eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia
e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e
sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a
unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão
rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os
obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir.
Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de
manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja
da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e
do desejo. Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se
sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que
escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que
adjetivo há de anexar ao substantivo. Justamente agora é que os dous cobiçosos
estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o
Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de
sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os
retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí,
perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele
inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de
voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que
tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada
convosco. Amam-se e procuram-se. Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou
Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas
remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da
inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto,
firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com
a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e
que "o amor é tão valente como a própria morte". Nisto, o cônego estremece.
O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o
substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão
que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele
coligir os seus escritos, o que não se sabe. Conto extraído da Obra Completa (W. M. Jackson Inc, datada
de 1938), do escritor Machado de Assis
(1839-1908). Veja mais aqui.
O
CACTO - Aquele cacto
lembrava os gestos desesperados da estatuária: / Laocoonte constrangido pelas
serpentes, / Ugolino e os filhos esfaimados. / Evocava também o seco nordeste,
carnaubais, caatingas... / Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades
excepcionais. / Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. / O cacto tombou
atravessado na rua, / Quebrou os beirais do casario fronteiro, / Impediu o
trânsito de bonde, automóveis, carroças, / Arrebentou os cabos elétricos e
durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia: / – Era
belo, áspero, intratável. Poema extraído
da Poesia Completa e Prosa (Aguilar,
1967), do poeta Manuel Bandeira (1886-1968). Veja mais aqui e aqui.