[...] Perceber, ver, tocar, sentir.
Ou seja, toda percepção, compreenda bem, é também uma autorrevelação. Uma
revelação de si para si. E uma revelação de si pelo mundo. Tu tens um
enrolamento, assim, permanentemente. E é isto o grande valor ontológico do
corpo, é que ao contrário da mesa - a mesa toca o solo, a mesa não toca o solo,
a mesa está sobre o solo - mas os meus pés tocam o solo. Ou seja, que eu faço
uma experiência sensível do solo me tocando e de mim tocando o solo. Assim
permanentemente, tem este movimento de ir e vir do próprio corpo a partir das
suas próprias percepções do mundo. [...]
Trechos da entrevista Interfaces da carne (Urdimento, 2012),
concedida pelo artista, escultor e performer congolês-francês Olivier de Sagazan para a jornalista Elisa Schmidt.
LITERÓTICA: É NELA QUE SOU DELA - Ela me olha como se testemunhasse a
flagrante paixão nos meus olhos abissais e se levanta com a cadência sensual de
suas formas esculturais, como quem se dá por refém pra minha caçada
incontinenti. E chega mais perto com seu hálito quente de loba insaciável para
esfregar seu ventre ao meu, como se desse ao carrasco o direito imolá-la
impiedosamente. Ao meu ouvido recita poemas com poses provocantes que se
insinuam estirada e seminua aos meus braços agasalhadores e requerentes, como
quem se dispõe inteiramente à redoma dos meus desejos. E me beija de mil formas
como se sua língua apropriasse do meu sabor no suor que aflora e banha sua
carne febril e arrebatada a se desnudar pelo afeto das minhas mãos buliçosas. E
se refugia tépida no que sou massageando sua pele acetinada, como se deixasse
transportar alucinada por minha língua flutuante na sua carne esbelta e nisso
experimentasse embalada as minhas descobertas mais ousadas no que é de seu. E
se refaz incontida às carícias refugiantes coração descompassado a transbordar
no que é meu, como uma navegante em transe pronta para usufruir das nossas
loucas fantasias pecaminosas. E me sente nela implorando perturbadora possessão
de sua coreografia alucinante, enquanto rebola serpenteante e se vira e revira
na dança inquieta quase a desmaiar úmida pela vertiginosa entrega mais
despudorada. E arqueia e queda às escâncaras pra minhas investidas de
entronizado cavaleiro armado pela vida restaurada no seu ressurgente amor que
transforma tudo em felicidade e me faz sentir endeusado no ápice do seu
maiúsculo orgasmo interminável. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
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DITOS & DESDITOS - Nos últimos anos,
questões relacionadas ao desempenho e a sua avaliação têm recebido maior
proeminência acadêmica e social. O crescente interesse na prática da avaliação
também se manifesta em estudos sobre a desigualdade e a meritocracia: nas
sociedades industriais avançadas, pais de classe média apresentam maior
propensão a preparar seus filhos para um mundo de competição mais acirrada, e
para isso, investem recursos significativos em educação suplementar e em
atividades extracurriculares que consideram essenciais para garantir a reprodução
de suas posições de classe. Na verdade, a coexistência de matrizes múltiplas de
avaliação é uma condição significativa para uma maior resiliência social
(associada a uma melhor distribuição de recursos), especialmente em um contexto
onde um número cada vez menor de indivíduos pode almejar alcançar os padrões de
sucesso socioeconômicos que são associados ao mito nacional e dominante. Pensamento da socióloga
canadense Michèle Lamont. Veja mais
aqui.
ALGUÉM FALOU: O pensamento é uma coisa corrosiva. É destrutivo em si
mesmo. Construir e destruir,
construir e destruir. Mas nesse processo corrosivo não é algo que possa ser
avaliado em pouco tempo. Acho que os efeitos ou o processo que pode gerar. Meu cinema é assim, um
fragmento de um processo de pensamento. Não é nem um pensamento, apenas um processo. É o processo de pensar
sobre algo. E isso é algo solto e vivo, porque não é um pensamento
acabado. Então, o efeito que isso
pode ter fora eu não saberei agora, não sei se um dia saberei. Talvez algum dia eu
encontre alguém que depois de 20 anos serviu assistindo ao filme, talvez eu não
encontre ninguém e sinta que minha vida foi um verdadeiro desperdício de
celulóide. O que questiono sobre o meu trabalho agora é que acho que
é muito caro pelo escopo que tem. Acho que você tem que ser mais eficaz. Mais eficaz no combate
ao moral. Pensamento
da cineasta argentina Lucrecia Martel.
Veja mais aqui.
RITOS DE PASSAGEM – [...] Ritos de
passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao
nascimento, ao casamento, à puberdade etc. Na vida moderna, estas transições
tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências
limiares. O adormecer talvez
seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E,
finalmente, tal qual as variações da figura do sono, oscilam também em torno de
limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. [...]
Não é apenas dos limiares destas portas
fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar
forças3. As prostitutas, porém, amam os limiares das portas do sonho. – O
limiar [Schwelle] deve ser
rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma
zona. Mudança, transição, fluxo estão
contidos na palavra schwellen (inchar,
entumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro
lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que
deu à palavra o seu significado. Morada do sonho. [...]. Trechos extraídos
da obra Passagens (UFMG/IOESP, 2007), do filósofo alemão Walter
Benjamin (1892-1940). Veja mais aqui e aqui.
ARTE & ESTÉTICA – [...] Mesmo que
a dimensão estética de nossa vida, profundamente enraizada em nossos assuntos
cotidianos, possa ser influenciada pela arte, ela opera muito independente de
nossa experiência da arte. […]. Trecho extraído da obra Everyday
Aesthetics (Oxford University
Press, 2007), da filósofa, professora e pesquisadora
japonesa Yuriko Saito. Veja mais
aqui.
A BELEZA
- [...] A beleza pode ser uma das modalidades, entre muitas que existem, por meio
das quais pensamentos sao apresentados a sensibilidade humana e explicam não só
a relevância da arte para a existência humana, mas tambem por que e preciso
encontrar um lugar para eles em uma definição adequada de arte. [...]. Trecho extraído da
obra O abuso da beleza (Martins Fontes, 2012), do filósofo e crítico de
arte estadudinense Arthur Danto (1924—2013). Veja mais aqui.
MÚSICA
– [...] Eu tive que fazer algo, para fazer uma música que consistia apenas em
sons, sons livres de juízos sobre o que era ‘musical’ ou não. Porque a teoria
da música convencional é um conjunto de leis referidas exclusivamente a sons
‘musicais’, não tendo nada a dizer sobre o barulho, sobre a não legalidade do
barulho. Tendo feito essa música anárquica, nós éramos capazes de incluir mais
tarde, na sua execução, os assim chamados sons musicais. Os próximos passos
eram sociais, e ainda estavam sendo dados. Precisamos antes de tudo de uma
música em que não apenas os sons são sons, mas em que pessoas são só pessoas,
não sujeitas a leis estabelecidas por uma delas, mesmo que seja o ‘compositor’
ou o ‘maestro’. Finalmente nós precisamos de uma música que não mais provoque
debates de participação do público, porque nela a divisão entre músicos (performers) e público não mais
existe: uma música feita por todos. O que precisamos é de uma música que não
requeira nenhum ensaio [...]. Trechos
extraídos Writings (Wesleyan
University Press, 1973), do compositor, escritor e teórico musical
estadunidense John Cage (1912-1992). Veja mais aqui e aqui.
GRATIDÃO À MÁQUINA - Uso uma máquina
de escrever portátil Olympia que é leve bastante para o meu estranho hábito: o
de escrever com a máquina no colo. Corre bem, corre suave. Ela me transmite,
sem eu ter que me enredar no emaranhado de minha letra. Por assim dizer provoca
meus sentimentos e pensamentos. E ajuda-me como uma pessoa. E não me sinto
mecanizada por usar máquina. Inclusive parece captar sutilezas. Além de que
através dela, sai logo impresso o que escrevo, o que me torna mais objetiva. O
ruído baixo do seu teclado acompanha discretamente a solidão de quem escreve.
Eu gostaria de dar um presente à minha máquna, mas o que se pode dar a uma
coisa que modestamente se mantém como coisa, sem a pretensão de se tornar
humana? Essa tendência atual de elogiar as pessoas dizendo que são ‘muito
humanas’ está me cansando. Em geral esse ‘humano’ está querendo dizer
‘bonzinho’, ‘afável’, senão ‘meloso’. E é isso tudo o que a máquina não tem.
Sequer vontade de se tornar um robô sinto nela. Mantêm-se na sua função, e
satisfeita. Texto da escritora e jornalista Clarice Lispector
(1920-1977). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
ROSAS
- Admiro a
tecedora porque tem consentido que a assemelhem à poesia. / Mesmo com os cílios
a perturbar-lhe o movimento dos fios e os dedos tocados por uma estranha
resignação, / ela tece os caudais líquidos que escorrem na sensibilidade do
poeta desde que era criança. / Aqueles que não imaginaram na ceifeira de uhland
o cântico mais remoto da nova ceifeira de fernando pessoa / podem agora começar
a imaginá-lo. / Mas eu admiro sobretudo a injustiça para com a tecedora, / a de
atribuir aos seus dedos esfacelados a incipiência do poema. / Ela soube ser
responsável pela perdição ou a desaparição dos homens nas palavras, / até estes
voltarem a emergir dessas palavras alteradas e inalteradas. / A poesia
iludira-se ao pensar que a alteração que atingira os objetos / deixara ser
idêntico, até nova comparação, o poeta. / O próprio termo poesia pudera
orientar a sua sombra no sentido de manter cintilante a metáfora da tecedora, /
até terminar e recomeçar a teia, com o ritmo passando a tempos regulares os
fios obliquados pela luz. / Toda a crítica tem exaltado o poema como uma
produção da mecânica manual oposta à idade do amor espontâneo, os jorros do
lirismo. / Eu abjuro da tecedora porque muitas vezes tem correspondido / a quem
lhe diz que a harpa produz estopa. / Se nem um tecido é rigoroso com traços / e
sombreados quando muito harmoniosos, nunca simétricos, como o pode ser a
soldagem / dos termos lexicais ligados continuamente por espaços brancos. / Como
evitar que o fim da página se ligue ao cosmos materialmente / e, em vez de
tornar-se um tecido tranquilo, o poema se desagregue, / repetindo assim o movimento
de que nascera e fora contrariado pela escrita. / Ao chocalhar todas as frases,
os versos caem uns dentro dos outros, / e o poeta vê-se perante a impotência de
os refazer sílaba a sílaba. / Só a tecedora tem o privilégio de romper os fios
pelo fogo. Poema extraído de
Obra Breve (Assírio &
Alvim, 2006), da escritora e dramaturga portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007). Veja mais aqui.