segunda-feira, dezembro 24, 2012

HELOISA SEIXAS, L’ISLE-ADAM, JULIANA DE NORWICH, ABZEME & CARTA DO BARBEIRO



A CARTA DO BARBEIRO


Luiz Alberto Machado


- Valha-me, Nossa-Senhora-do-quengo-lascado! Sangue de Cristo tem poder! -, exclamava o entusiasta Ocríde, católico fervoroso, preto bom, com aquela situação desagradável, recorrendo à santa de sua devoção.

Há anos em Alagoinhanduba, Ocríde aparava barba, cabelo e bigode de seu dileto povinho, beijando o medalhão que lhe fazia volta no pescoço, com uma insígnia de Nossa Senhora Aparecida, sua salvação nas horas deprimentes.

Atendia sempre gente simples daquelas bandas, afora alguns abastados que prestigiavam o seu labor, levando um pitaco, uma fofoca, uma anedota ou coisa que valha.

O salão do barbeiro já era ponto de encontro para alguns desocupados que viviam de trocar pilhérias a torto e a direito. Ele expulsava-os sempre na hora de fechar, sempre depois das dezenove horas, visto que era hora da santa missa na matriz, devotado de cumprir na risca sua obrigação.

Às seis da manhã lá estava ele no batente esperando qualquer cabeleira cristã necessitando de formosura.

- Veja se não é o Roberto Carlos?! -, era o auto elogio dele pelo excelente trabalho realizado em Pé-de-ferro, Tranca-Rua, Zé Mouco, Luiz Cocó ou Pedim do Padre e os resenheiros dos acontecimentos e traquinagens, desbastando as cabeleiras, barbeando e aprumando os bigodes duns sujeitos ogros como os tais assíduos que desejavam se aformosear com o trabalho dele. Não escapavam, claro, de uns caminhos de ratos, para-lama dianteiro de Volks contornando as orelhas, uma costeleta maior que a outra, um redemoinho complicado na beira da testa. Tinha nego que saía com o cabelo espichado mais parecendo arame em pé. Ou, então, enfezado pelo cabelo bombril mais enrolado que antes numa tufa de dar dó.

Ninguém é perfeito.

Mangavam dele o tempo todo por possuir na carteira uma foto sua, da juventude, com uma arupema na cabeça, moda da época dos Jacksons, anos setenta, com uma costeleta emendada de um lado a outro, cavanhaque cheio, sobrancelhas rentes uma na outra, um Don Juan preto, soçobro das moçoilas sem dono. Isso com a perícia de trinta e tantos anos na profissão, ajeitando as mais insólitas cabeças do lugar.

Ninguém nunca reclamara da meia sola na cabeleira no dia em que ele estava doido para molhar o biscoito com a escolhida do seu harém.

Sujeito calmo, pacato, bulia com todo mundo, mangava de todos.

Sua parcimônia de sangue bom só fora suspensa uma vez quando um galego oriundo dos pampas, todo cheio de prosa, parecência com artista de holywood, broadway, de cinema e tudo, com mocinho e uma porrada de bandido, após o serviço de aparar barba, cabelo e bigode, olhou uma donzelinha que se encontrava no recinto e deu-lhe a maior cantada.

- E essa aí, quanto vai na bolinagem?

- Peraí, meu, essa aí é minha filha.

- Se isso aqui é zona do baixo meretrício, aqui é tudo puta!

- Quiéquiéisso isso, meu, ofendeu minha religião, vai ter cacete na gaia.

- Qué isso, meu, puta é para foder, não é crucifixo, não!

- Vai levar porrada até amanhã de manhã!

E o sangue do gaúcho desceu parecia que cumeeira abaixo, rolando pela calha, até melar o chão daquele meretrício.

Foi um bafafá dos grandes, Ocride absolvido pela honra de pai.

Sujeito folgado aquele, soltar lorota logo com quem.

Quando não tinha o que fazer Ocride gostava muito de desenhar letras na folha de papel pautado que guardava sempre na gaveta do penteador. Um calhamaço que já nem tinha tamanho, difícil até de apalpar. Escrevia cartas a seres imaginários, inventados pela sua baboseira. Horas e horas ali imaginando cartas ao presidente da República, ao governador do estado, ao prefeito, requerendo uma aposentadoria justa num futuro próximo, ou saneamento básico na casa de sua quarta concubina, ou solicitando a deus uma salvação do inferno em que vivia para um paraíso tropical de preferência em companhia dumas boazudas galegonas para não finar na monotonia.

Muitas vezes era surpreendido por uma transeunte simpatizante com a requerência dalgum trocado.

– Deixa eu chupar tua rôla, Ocride! –, e ele, manhosamente, acenava para que ela se aligeirasse lá pros fundos, cuidadosamente cerrando as portas da barbearia, não antes averiguar de um lado a outro se alguém estava bisbilhotando e suspendia suas atividades momentaneamente. Diligente, arriava a braguilha e expunha aquele membro preto nas ventas da requisitante.

– Bora, bora! –, exigia ele logo a felação, esfregando a peia na cara dela que sob essa determinação chupava o negão até deixá-lo esporrar nos seus peitos.

Ao cabo de dez ou quinze minutos ele encerrava a safadeza, soltava uns peidos, metia a mão no bolso e tirava algumas cédulas como pagamento à felatriz, dando-lhe uma palmada no glúteo dela com uma risadinha maliciosa.

– Venha amanhã de novo que eu te dou mais, tá? Num se esqueça! –,  e empurrava ela de porta a fora, dando um tempinho para reabrir o estabelecimento.

Alguns minutos depois chegava Bico-de-Bule inquirindo:

- Tava fechado, nego? -, bisbilhoteiro safado àquela hora metendo focinho na intimidade dos outros.

– Não, tava orando a Deus! -, todos acreditavam, um beato preto, cheio de munganga, rezando no meio do expediente comercial, pudera, balançava até os colhões do padre na hora da missa, ora.

Mesmo com toda devoção, Ocríde só não gostava de alguns mandamentos que julgava deviam ser substituídos por outros mais convenientes com as sujeições de pecados danosos que deviam estar no lugar do não adulterarás e não cobiçarás a mulher do teu próximo, por, por exemplo, não fofocarás jamais nem te meterás com a vida do teu próximo, aí sim, tudo bem. Além desta exceção ao postulado bíblico, uma outra também andava de longe de ser respeitada por ele quanto a alguns pecados capitais.

– É pecado demais para ser cumprido os mandamentos todos! -, era Ocride deslizando em alguns deles.

– É, Deus é tão bom que nem vai reparar um deslisezinho desse fiel aqui mais fiel do mundo! –, dizia com a cara mais cínica de adorador do Cântico dos Cânticos de Salomão, recitando-os invariavelmente aos incautos comparecentes, até que o Padre Quiba teve de chamar-lhe atenção para outros livros na Bíblia Sagrada.

Pois sim, o nego era perdido, sabia-se que às escondidas gostava mesmo era de um bombo alta hora da noite de sexta-feira, todo de branco e cheio de pacutia, um xangô arrepiado, remexendo esqueleto e se dizendo linha de azeite no meio da cerimônia.

- Ô, Ocride, compra uma máquina de lavar, eu num guento mais tá enxaguando e lavando tanta roupa, meu véio!

Era Neuma, a matriz esponsal dele, crente da igreja presbiteriana, exigindo uma lavanderia elétrica para dar vencimento na lavagem de pano dela.

 Ocride que era um maloqueiro sabido, choramingava com aquela solicitação dela na frente de todo mundo, prometendo logo adquirí-la assim que a situação melhorasse. Enrolão era mesmo, a Neuma saía com a mesma cara de santa. Foi aí que ele lembrou do tempo em que ela era ciumentíssima e, para evitar as suas escapulidas, aprendera de coibir suas puladas de cerca, prendendo uma fralda nele, ao invés de cueca, com umas presilhas irremovíveis. Era uma humilhação. Quando ele ia investir na mulher alheia, que precisava de arriar as calças, era a maior risadagem. Graças à igreja presbiteriana, ela acabara com aquela maluquice, liberando ele para a mancebia descarada de hoje.

Outra coisa que ele era chateado com Neuma porque ele, o inconfidente de sempre, possuía uma loja feridenta na perna dele, uma pereba de anos que a distinta esposa tratava com asco, não lavava meia nem cueca dele, ficava ali entulhada, por razões que um dos filhos me dissera ser por vingança da traquinagem dele com algumas alheias, daí sua pulverização sexual.

Dali mais um pouco era a Xandinha que dava as caras no recinto.

 - Ô meu pretinho, quando é que tu vai trocar aquela televisão preto-e-branco por uma colorida, hem ? –, Ocride coçava o pixaim e respondia:

- Logo logo, minha nega, espere que chega já, tenha fé em Deus, tenha fé em Deus, sangue de Cristo tem poder.

E lá se ía Xandinha, filial número um do adúltero preto, nega desengonçada, jeitosa, peituda, reboladeira que deixava o neguim doido para foder de manhã, de tarde e de noite. A nega era fogo na roupa, quando ele chegava à casa, ela alisava ele todo, botava ele na banheira, todo ancho. Não sabia que ela estava fiscalizando os colhões dele, se boiassem estava frito, era o maior quebra pau.

– Nego safado, tu tá amocegando rapariga por aí, num tá?

- Juro minha nega, tô não.

Pra sair dessa o bicho dava tanto salto solto, meio mundo de tapeação, argumento besta e proseado mole pra cima da encrenqueira, com o fito de amolecer a ruindade dela. Brincasse com ela não, era a gôta!

Mais pras tantas chegava Dorinha, uma alvinha matuta que fora descabaçada aos quinze anos pelo enxerido e requeria dele dinheiro para comprar cominho e tempero pro almoço. Ele metia a mão no bolso e sacolejava por dentro a pêia pra que ela visse que ele iria almoçar naquele dia com ela, não antes dar-lhe um beliscão nas nádegas.

– Sai prá lá, nego safado, tô vendo que tu quer safadeza, né? –, e ele todo pabo, dava o dinheiro e mandava que fosse embora até mais tarde, quando chegaria a hora de se amarfanhar nos cobertores dela.

Nem dois tempos depois, era Nega Tisiu, uma magricela, terceira filial sentimental do pombudo preto, gasguita e cheia de nove horas, exigente, reclamando pelo dinheiro da escola dos meninos, deixando-o nervoso, de abufelar-se todo, passando um cheque alusivo às tais mensalidades escolares dos bastardinhos dele.

E  mal a chata dera as costas chegava a quarta, a Lucilena, professorinha rural do engenho Mameluco que parava na porta a dar chauzinhos para ele com um risinho tímido e atraente. Toda formosazinha, safadinha, do jeito que ele gostava, quente que só chaleira pegando fogo, assanhada toda por homem, botava uma gaia no nego de empená-lo dum jeito do homem já andar corcunda. E ela lá insinuando levantar a saia, de tanto que gostava de dar espetáculo no meio da rua. Oxe, Ocride se aperreava, dava uns trocados a ela, mandando-a embora rapidinho senão comia ela ali mesmo. Ela insistia, o negão arrastava ela pra dentro e, de porta aberta mesmo, o povo passando e vendo, ele intrometia a pica na boceta dela numa trepada agoniante e barulhenta.

– Eita fungado da gota! –, era um curioso que chamava a atenção daquilo.

– Vá prá porra, seu enxerido, arrede daqui, não me atrapalhe! –, enxotava Ocride qualquer intrometido, não deixando de se concentrar no coito.

O pior inferno era quando elas se abusavam da mancebia dele com as próprias, numa recaída de ciumeira, ôxe, era uma greve do nego fazer carnaval no meio da rua, reclamando até que elas suspendessem aquela ordem depois do atendimento de todas as reivindicações delas. Pois é, quando elas fechavam as pernas, o bicho definhava do juízo ficar curto, todo endoidado.

– As mulheres tão tudo de boi, tô fudido! Urucubaca braba, meu! –, era a coincidência mais desagradável, tudo de regra no mesmo período. Empertigado, ficava ele fulo da vida.

Foi com um movimento reivindicatório desses que Neuma conseguiu que ele fosse ao estabelecimento comercial de seu Marquito Ladeira comprar uma lavadeira elétrica para ela. O comerciante prestativo apresentou todo tipo de promoções, crediários, valsas, formas de pagamento, tudo, mas ele constatou não possuir dinheiro suficiente para comprá-la naquela hora. Crédito ele possuía visto nunca inadimplir, sujeito correto, de uma idoneidade a toda prova; justo, probo, severo de palavra, não arredava um só milímetro da retidão. Pra se ver, mantinha uma conta corrente com cheque especial na instituição bancária oficial do país há mais de vinte anos, nunca extrapolando os limites seus, nem pagando juros de nada, resgatando qualquer duplicata um dia antes do vencimento. Ô cara direito até dizer basta, honrador dos seus compromissos no peito e na raça, sustentando uma mulher e quatro amásias, nunca faltando nem deixando faltar nada para qualquer delas, tudo morando em casa própria, de propriedade dele, que ainda possuía mais umas cinco casas alugadas a inquilinos direitos, mais oito quartinhos na chã do Buraco Fundo, também alugados e dois prédios onde se instalavam dois estabelecimentos comerciais, tudo fruto de uma herança deixada por seu distinto pai, mais uma questão judicial trabalhista contra a Usina Mequetrefe, onde trabalhou por longos doze anos sem carteira assinada; sem contar os três anos como guarda freio da Great Western; cinco anos como enfermeiro, curando todo mundo à base de óleo de pau d’olho; e cortando cabelos, barbas e bigodes, administrando seus bens e rezando na missa todo santo dia, a exceção da sexta-feira, onde escapulia para ninguém saber onde.

Depois da missa diária, Ocride saía de casa em casa, fiscalizando o que faltava, partindo para dormir na última a ser visitada. Era um sorteio todo dia, não passando nunca mais de cinco dias sem esquentar o colchão da matriz e das filiais. Tudo corria na calha. Mas Ocrídio não desistiu de comprar o eletrodoméstico requisitado pela matriz, visto que ela ameaçava separar-se dele caso não findasse com a mancebia desastrada que ele mantinha às claras com as outras ditas vagabundas. Por causa dessa quizília ele suspendeu as cartas que gostava sempre de escrever e meteu-se numas contas sem fim para adquirir o que Neuma enchia seu saco. Saiu juntando algumas economias feitas e seguiu para a loja do seu Marquim. Quando viu o juro cobrado pela financeira quase caiu de costas. Arregalou os olhos e mandou o comerciante para a puta que o pariu, saindo puto da vida com aquilo.

Dias passaram e ele meditando bastante, ficava torcendo para seu Juvêncio Quintão, ou seu Julio Mariano de Pindorama, ou o Nezito Guaxuma, ou Totonho de Jacaré das Virgens, ou sei lá quem mais, viessem fazer a barba, cabelo e bigode porque sempre sobrava uma gorjeta gorda para ele. Eram todos homens ricos, idolatrados por todos na cidade, duma bondade extraordinária e que facilitaria, sem sombra de dúvidas, a vida dele. Cadê que não davam nem as caras por ali? Aperreou-se com a nova greve de sexo da Neuma, ameaçadora a ponto de quase perder tudo o que tinha, não podia perder nada do seu curral sexual, todas eram mantidas religiosamente em dia pelo obstinado poligâmico. Foi aí que perdeu a paciência, pegou mais alguns trocados e seguiu para a loja do seu Marquim, comprando numa valsa sem fim o tal eletrodoméstico. Jogou as contas pro ar e levou ele mesmo na boléia da camionete a bicha branquinha, novinha em folha, para a mulher. Num alvoroço danado arreganhou as portas, entrou de casa adentro arrastando o móvel, chegou na cozinha e mandou o tal do instalador efetuar as ligações. Quando o profissional encerrou a cerimônia explicativa do modo de usar a coisa, ele botou umas moedas na mão do sujeito e mandou-lo embora, chamando a mulher pra ver a maravilha. Ela encheu os olhos d’água. Ele foi se chegando, ficou esfregando as partes pudendas dele nas dela enquanto ela conferia o funcionamento do aparelho. Ele levantou-lhe a saia, arreou-lhe a caçola e empurrou a bimba no cu dela, debruçada sobre a máquina de lavar.

 – Tá me rasgando, nego! Ai! Ui! Tá doendo! -, reclamava Neuma.

– Calma, porra, já vou gozar! Um!hum!hum! -, eita, impado danado, ela se contorcendo, ele empurrando a macaca, ela: ai, tá doendo, calma, ai, ui, foi, é, isso, ui, eita! Danou-se! Deu a gota! Arremedou!

Tô cum cabrunco no couro
Sou macho que tem cabilôro
Quero mais é ser feliz
Tanto molejo ajeitado
Pra show de rebolado
Nega rebola e peço bis
Teve cú, peito e boceta
Pode vir até de moleta
Fodo todo priquitiz!!!!!

Neuma ficara feliz e depois que o marido zarpou para o trabalho, chamou os meninos e mostrou a felicidade de vê-la funcionando. Botaram logo um nome na coisa linda: Tozilda. Com o tempo até tornou-se um membro da família. E ficavam horas a fio admirando a engrenagem dela trabalhando sem interrupção. Neuma que estava com entregas vencidas, lavou meio mundo de trouxa dos clientes, aproveitou lavou toda a roupa da casa e para não deixar o aparelho parado, lavou duas vezes tudo de novo. Isso passou pela manhã entrou pela tarde, atravessou a noite, enfiando na madrugada. Lá pelas tantas ela desligou e foi dormir o sono puro dos inocentes felizes. Entrou dia, semana, meses, Tozilda lá inspecionada por todos, atração real da residência.

Deu-se que num final de semana Ocríde resolveu levar Neuma e os meninos para a praia de São José da Coroa Grande. Queria dar um pé de peru aos familiares, fazendo uma média para aliviar a sua barra no conceito dos familiares. E pronto: alugou uma Rural e botou todo mundo em cima quando causou o maior rebuliço da garotada por não deixarem Tozilda sozinha em casa. Pronto! Levaram a droga para a praia. Deram até banho de mar nela. E quando retornaram, no outro dia botaram ela para funcionar e a danada nem deu sinal de vida. Não era a mesma desde aquele mergulho.

Deu a porra! Será que essa bicha tá de greve, também, só faltava essa! –, foi ter com seu Marquim que mandou um técnico inspecioná-la.

O consertador achou por bem encaminhá-la para assistência técnica na capital. Ocrídio ficou puto!

– Ora, porra! Aqui é tudo incompetente nesta cidade de merda! Tem que levar para a capital, é? É! Puta-que-a-pariu esta porra de máquina que só tem conserto na capital. Olhe, esses negócios modernos, sem botão não dá! E pra quê trinta e duas memórias se eu que vou comprar me esqueço de tudo, imagine ela com tanta ideia assim!

Depois de muito puxa e encolhe, levaram a desgraçada pro conserto na capital.

– Eu, que sou eu, Ocride, devoto de Nossa Senhora Aparecida, rezador de dia e noite, num vou passear na capital para essa desgraçada ter uma folga dessa! Ora veja! Também, esse negócio de tecla não dá certo, é muito fresco e eu sou muito macho. Gosto mesmo é de botão que quando me arreto, faço ele dá meio mundo de volta do ponteiro rodar bem muito!

Quarenta e cinco dias depois, todo mundo triste dentro de casa, Tozilda chega como se fosse de novo novinha, funcionando que era uma beleza! Voltou a ser a alegria da casa.

- Esse negocim assim todo levezinho, num dura nada. Gosto da coisa pesada, com cardam, aí sim, a bicha dura de se esquecer do tempo. Veja só, a minha geladeira é que é boa, tem mais de vinte anos e o congelador é todinho de gelo, eu abro, quebro e já tá a pedra pronta. Esses negócios modernos, a gente nem vê o gelo no congelador.

Meio mês depois, começou Tozilda a ter um comportamento estranho. Deram por falta de algumas peças que foram requeridas por seus proprietários, até uma queixa fora prestada para uma investigação policial se ele e os familiares andavam desfilando indumentária nova, roubada dos clientes assíduos que enviavam suas roupas para lavagem na casa dele. Dois detetives profissionais passaram mais de mês investigando e constataram ser uma denúncia vazia, visto que nem Ocríde, nem matriz muito menos filiais, nem seus filhos e enteados desfilavam qualquer roupa diferente da que eles sempre usavam. Entretanto, descobriram que Tozilda estava andando com fome. E quão faminta estava. Ocride então reclamou ao seu Marquim o mau procedimento dela, recebendo alegação de que deveria devolvê-la para a assistência técnica, o que foi prontamente efetuado e mais sessenta e dois dias sem a atração da casa.

- Veja só, comprei a fi’a dos sete cancro da peste rodeira, numa valsa da gota qui tô individado até hoje, a um ladrão dum comerciante sem-vergonha, e agora só dá defeito, botou as manguinhas de fora de gente ruim, tendo eu, um cidadão ocupado, de pastorar a danada de noite a dia. Na assistência futucaram ela toda e num resolveram nada, tenho passado a maior vergonha.

Mais de dois meses depois voltou ela pior do que saíra, agora não só comia com uma gulodice sem fim, como dava pitaco, assistia novela, saía rebolando por dentro da casa. Ocríde mesmo, mais de dez vezes, já pastorara a máquina que se insurgia no quintal pra lá e pra cá, levando-a de volta ao seu local de costume. Tarde da noite ela ali assistindo televisão, passeando na praça, botando gosto ruim nas coisas, ensaiando uma greve, provocando a maior dor de cabeça.

Certa noite, pairou um dito profeta aclamado na praça em frente a sua residência, anunciando seus arroubos escatológicos de forma frenética.

Eita! O mundo vai se acabar e Tozilda é o anticristo, sinal do final dos tempos.

O estranho, diziam, curava gente noutras terras, um Dulcamara que se dizia possuidor de uma panaceia universal capaz de rejuvenescer a todos, indicar-lhe a salvação como dignitário divino e com sua fanfarrice deitava o espírito-santo-de-orelha mediante aquele povinho crédulo. Recitava, o cheio de irascibilidades, dito douto nas ocultidões entre os céus e a terra, rifões, adágios, locuções, anexins, jargões, provérbios, parábolas, máximas, apotegmas, sentenças, exemplificando a vida farisaica de todos dali.

- “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobreviverão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus. Foge também deles. Timóteo 2, versículo 3"”-, vociferava imperativamente o tal dermatóglifo em cima do banco da praça. Esse intruso insistia na leitura da terceira mensagem de Nossa Senhora de Fátima, acusando ímpios e fariseus de não darem ouvidos à benevolência do criador, tornando-o malévolo e vingativo com os moucos da providência divina.

Lá no canto Ocríde analisava o que aquele barbudo iracundo dissera, os trejeitos frenéticos que emitia ao reclamar no megafone as palavras tempestuosas e difíceis para o parco vocabulário do marmanjo.

No maior estardalhaço o tal haríolo vociferava sobre a vinda do mestre da morte e da sepultura nos próximos dias; relembrou as profecias de São Malaquias, as inscrições da pirâmide de Quéops, os manuscritos do historiador Masoudi, do século X; das transcrições do Livro dos Mortos; as predições do Monge de Pádua; o eclipse de 11 de agosto; a grande translação de outubro anunciando a vinda do Leviatã quando Gog destruirá tudo.

Mesmo, assim, do que entendia tudo coincidia. Realmente, todos estavam egoístas, tudo para si, ninguém mais socorria ninguém na hora difícil, no aperto, ninguém dava mais esmola aos pedintes, tiravam proveito de tudo, uma roubalheira, juiz metido com promotor, delegado e autoridades em maracutaias; gente assassinada a todo instante, todo mundo enfiado na cachaça, brigas, arruaças, arengas, assaltos, sequestro, incêndios, queda de avião, batidas de carros, todo mundo desconfiando de todo mundo, perigo a toda hora, vôte! É o apocalipse!

- “Os sete selos! Os sete flagelos! Úlceras malignas e perniciosas, a besta fera, a morte dos seres viventes, o sol queimando, os homens comendo a própria língua, terremotos, relâmpagos, guerras, trovões, vai descer o fogo dos céus e tudo vai consumir!”

Aquelas palavras remoíam na sua cachola. Absorto, nem percebia a chegada de clientes para atendimento, quando acordavam-no dum sonho de olho aberto, os dele arregalados.

– É o fim do mundo, gente! -, Ocríde estava hipnotizado com os últimos acontecimentos no Timor Leste, no Paquistão, na Bósnia, no Afeganistão, na Líbia, o assanhamento dos neonazistas, a carestia, as CPIs do narcotráfico, dos medicamentos, das corrupções, de tudo; o desemprego grassando, o povo perdido, polícia roubando, ladrão mandando em tudo, o governo falido, meio mundo de menino chorando pelas portas pedindo esmola, os ricos quebrando, lojas e mais lojas fechando as portas, o fiado comendo no centro, todo mundo sem dinheiro, o sol torrando a paciência, os rios secando, os bichos morrendo, gente nascendo todo dia explodindo o planeta de gente e mais gente, árvore nenhuma, puta-merda, é o fim do mundo mesmo!

Foi numa hora dessa que Ocride apossou-se da caneta e narrou com esmero todos esses fatos, nos mínimos detalhes, para o fabricante da máquina de lavar, mandando uma cópia para as autoridades todas que tivesse conhecimento. No teor da missiva estava uma esculhambação velada ao seu Marquim, chamando a responsabilidade de todos em vender produtos sérios e perfeitos, por onde andaria o controle de qualidade naquela hora? Onde guardar a lucidez numa loucura dessas? E clamando por Deus por tanta ignomínia, tanta embromação, tanta enrolação juntas, tudo sacrificando um crente em Deus e nos seus poderes, numa hora dessas de fim de mundo, salvai a mim que sou santo!

Não deu por vencido, esgueirou-se até sua casa, arrancou Tozilda à força, saiu com ela pendurada nos seus braços, todo mundo acompanhando a loucura dele, chegou no parapeito da margem do rio seco e jogou-la dentro da última poça restante da antes caudalosa riqueza pluvial.

- Agora seje sua disgracenta!

Depois disso trancou-se na casa de Neuma por dois dias e ficou matutando a situação. As palavras do pastor naquela noite na praça martelava sua cabeça. Ele pensou, perscrutou, meditou, fundiu a cuca e planejou uma forma de se salvar. A televisão anunciava de instante em instante o dia do fim do mundo se aproximando rápido, era notícia de repórteres do mundo todo anunciando o final dos tempos. Ele apavorou-se, foi até o banco e exigiu que o gerente dobrasse o cheque especial dele que era de mil reais, o que o gerente, pela honradez de sua conduta naquela instituição financeira, atendeu prontamente, não só dobrando, como estipulando um limite no cheque especial para dez mil reais. Satisfeito, desceu no setor de cadastro, requereu um papagaio de dez mil reais com vencimento previsto para trinta dias, foi aprovado na hora, zarpou.

O Ocride abstêmio de sempre chegou num bar, todo mundo empolgou-se, pediu uma lapada de aguardente, tomou meia dúzia; uma cerveja para lavar, tomou quinze, ficou bêbado e recolheu-se em casa falando besteiras. Faltavam vinte dias para o fim do mundo.

No outro dia, foi até o banco, requisitou todos os talões de cheques que possuía, vinte; sacou tudo com apenas um e guardou os restantes, levou o saldo disponível, limite do cheque especial e o papagaio, foi até a agência de um concorrente, abriu outra conta com o dinheiro, solicitou cheque especial, foi atendido; requereu outro papagaio para mais trinta dias, aprovado, saiu, tomou uma lapada, ingeriu meia dúzia; lavou com uma cerveja e bebeu quinze, ficou bêbado e rumou para casa. Voou. Faltavam quinze dias para o fim do mundo.

No dia seguinte foi na loja do seu Marquim onde este, para se livrar da bronca exagerada dele, deu-lhe uma tuia de cartões de crédito, azogou-se, meteu tudo no bolso, foi até a agência onde abrira a conta, requisitou talão de cheques, pegou dez; sacou tudo de novo, o saldo, o limite do cheque especial e o crédito, botou tudo num saco, saiu arrastando, passou num caixa eletrônico e meteu um cartão de crédito, saiu mil reais, ele achou bom, beijou o caixa, ficou gamado à primeira vista pelo sistema. Empurrou outro cartão, sacou mais mil reais, saiu empurrando um a um os quinze cartões que ele havia ganho de seu Marquim, homem probo feito Ocríde, gozava de um crédito ilimitado. Achando pouco, meteu-se depois com uns trinta agiotas, num calote danado. Rapou fogo. Foi até outro bar, pediu uma lapada, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte. Ficou bêbado, passou um cheque pré-datado para trinta dias e foi-se. O tempo passa rápido. Faltavam apenas dez dias para o fim do mundo.

Na manhã do outro dia, namorou um tempão o caixa eletrônico, empurrou os cartões de crédito, sacou o limite do dia de cada um, jogou noutro saco, escondeu em casa junto com os outros sacos, foi até um supermercado, fez um estandarte de compras, pagou com cartão de crédito, saiu empurrando dez carrinhos pelo meio da rua, botou em casa; foi no bar, pediu uma lapada, tomou uma dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte e duas. Ficou bêbado e se recolheu em casa. Faltavam apenas cinco dias para o fim do mundo.

Ocorre que numa cidade interiorana, quando o sujeito inventa de se meter a extravagâncias, chama logo a atenção. Eis que uns espertalhões e interesseiros deram de azucrinar Ocríde. Estava numa condição monopsonística. Livros, santinhos, indulgências, uma nave espacial, o raio que o parta, a bexiga lixa, o escambau, de tudo estavam aqueles intoleráveis tentando vender ao coitado. Arre! O nego aboticou os olhos e largou uns bregues. Escafederam. No meio da ressaca, fez duzentos e tantos jogos na mega-sena; comprou vinte cartelas de poupa-ganha, trinta de telesena; fez trezentos jogos na quina, quatrocentos na supersena, meio mundo da loteria federal, jogou tudo que possuía num cheque raçudo lá pra frente pros bolsos do bicheiro da esquina, na banca da praça, apostou na loteria esportiva, todo tipo de jogo de azar, pagou tudo com mais cheques pré-datado para oito dias, pediu uma lapada de aguardente, tomou duas dúzias; lavou com uma cerveja, tomou trinta, tropeçou embriagado, foi para casa, dormiu o sono dos justos. Faltavam dois dias para o fim do mundo.

- Quero ganhar todo dinheiro do mundo e, depois, jogar fora pros pobres! Pelo menos no fim do mundo serão felizes!

Na doideira posterior, foi até o hipermercado da capital, parece que acometido pela síndrome malthusiana, fez uma feira para dois anos, pagou dolosamente com cheques que deveriam ser resgatados no mês seguinte, arrastou tudo num caminhão fretado para a casa da matriz, ainda saiu, arrastou as filiais pelo cabelo, com bruguelo e tudo, meteu dentro de casa, deu uns bregues nas mulheres, deixou tudo murcho, juntou tudo na sua arca de Noé, foi no bar, comprou várias grades de cervejas; caixas de uísques, aguardentes, vinhos, vodcas, gins, licores, conhaques, vermutes; pediu uma lapada, bebeu dez, arrotando sua escatologia; lavou com uma cerveja, tomou trinta e uma, meio grogue, pagou tudo com cheques para mais adiante, juntou tudo no caminhão, caiu da caçamba, lascou a testa, rasgou o quengo, saiu se arrastando e se jogou na cama totalmente lavado. Faltava apenas um dia para o fim do mundo.

Quando se acordou já era quase nove horas da manhã, faltava apenas uma hora e quinze minutos para o mundo se findar. Até ali não ganhara nenhuma das apostas, os credores já desconfiavam de seu trambique ao que ele aos peidos revelou:

- Quando eu ganhar na loteria eu pago tudo, pago tudo mesmo!

E remoía para si: “Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” Lembrou João 1, capítulo 3, versículo 17.

Acordou-se com o buá das crianças, olhou em volta, a matriz, as filiais, os dezesseis filhos, tudo junto olhando pra ele com aqueles boticões de aí como é que é hem? Levantou-se até o banheiro e arrependeu-se de ter fabricado prole tão gigantesca. Pensou em pegar o revólver e fazer feito Tião Amocrácio que quando as três mulheres dele pariram e ele viu o choro das crianças, aborreceu-se, pegou de um revólver calibre 38 e disparou no caralho para não engravidar mais ninguém. Pensou mais um pouco, é, o mundo vai se acabar mesmo, pra quê isso?

Já se aproximava das dez horas da manhã, pouco tempo para o espoucar dos tempos findos. Utilizava sempre nas suas horas de dificuldades a oração por auxílio divino de David, Salmos 25. Levantou-se e do jeito que estava convocou as mulheres para o quarto de dormir, com os filhos, mandou todo mundo se deitar e começou a rezar, depois leu a Bíblia, o Apocalipse, os Salmos, dez padre-nosso, onze creio-em-deus-pai, pegou um copo de água, colocou sobre uma mesa com uma toalha branca, quando ouviu o pipôco! É agora! Abaixem, vamos dormir para sempre. Uma barulheira grande! Tiros! Fogos! Vôte, a zoada é grande. Meia hora depois aquele silêncio. Psiu. Ninguém fala. O mundo tá se acabando bem baixinho da gente nem ouvir. Vamos morrer de barriga cheia. Ele abriu o compartimento onde estavam depositados todos os víveres previstos, alimentou um a um, comendo do bom e do melhor, bebericando em silêncio de tudo, gargalharam, mangaram, lambuzaram, macularam, treparam juntos, ele no meio das mulheres, os filhos tudo olhando, tudo nu, maior doideira. O mundo vai se acabar! Ficou grogue de bebaço e... cana da peste!

Três dias depois bateram à sua porta.

Assustado abriu, era um oficial de justiça com a polícia que vieram confiscar tudo.

- Ué, o mundo num se acabou não ou tem isso também no céu? Vou escrever uma carta pra Deus reclamando disso!

© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOS - Um leitor me pergunta afinal que lugar é esse onde vivo e que janelas são essas, as minhas, que ora dão para montanhas e lagoa, ora para apartamentos onde vivem casais felizes e infelizes, ora parecem estar quase ao rés do chão, permitindo-me observar de perto os transeuntes e os catadores de papel. Tem razão, o leitor. Que janelas são essas? Onde vivo? Pois respondo. Vivo em vários lugares e são muitas, de fato, minhas janelas, sendo múltiplas as visões que descortino... Fragmento de um texto da escritora e tradutora Heloisa Seixas, autora de obras como Pente de Vênus: histórias do amor assombrado (1995), A porta (1996), Diário de Perséfone (1998), Pérolas absolutas (2003), Contos mais que mínimos (2011), entre outros.

 

ALGUÉM FALOU: Se nunca caímos, não deveríamos saber quão fracos e miseráveis somos de nós mesmos... Pensamento da anacoreta e mística inglesa Juliana de Norwich (1342-1416).

 

É DE CONFUNDIR - Numa cinza manhã de novembro, eu ia descendo pela beira do rio em passo apressado. Uma garoa fria molhava o ar. Passantes negros, abrigados em guarda- chuvas disformes, se entrecruzavam. O Sena amarelado carregava seus barcos de mercadorias parecidos com besouros. Nas pontes, o vento fustigava bruscamente os chapéus, cujos donos lutavam com o espaço para salvá-los, fazendo aqueles gestos e contorções sempre tão penosos para o artista. Minhas ideias eram pálidas e brumosas; a preocupação de um encontro de negócios, aceito na véspera, atazanava minha imaginação. O tempo era curto, resolvi me abrigar debaixo da marquise de um portão, de onde seria mais cômodo fazer sinal para um fiacre. Na mesma hora notei, bem ao meu lado, a entrada de um prédio quadrado, de aparência burguesa. Ele tinha se erguido na bruma como uma aparição de pedra, e, apesar da rigidez de sua arquitetura, apesar do vapor sinistro que o envolvia, percebi de imediato um certo ar de hospitalidade que serenou meu espírito. “Sem a menor dúvida”, pensei, “as pessoas que moram aqui são gente sedentária! Essa soleira é um convite a parar! A porta não está aberta?” Então, com a maior polidez do mundo, satisfeito, chapéu na mão — até mesmo meditando em um madrigal para a dona da casa —, entrei, sorridente, e logo me deparei, no mesmo nível, com uma espécie de sala de teto envidraçado, de onde caía a luz do dia, lívida. Nas colunas estavam pendurados roupas, cachecóis, chapéus. Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos. Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar. E os olhares eram sem pensamentos, os rostos eram da cor do tempo. Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles. E então percebi que a dona da casa, com a cortesia acolhedora com que eu estava contando, era ninguém menos do que a Morte. Olhei para meus anfitriões. Decerto, para escapar dos aborrecimentos da vida azucrinante, a maioria dos que ocupavam a sala tinha assassinado seus corpos, esperando, assim, um pouco mais de bem-estar. Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, escutei o ruído surdo de um fiacre. Ele parou defronte do estabelecimento. Fiz a reflexão de que meus homens de negócios estavam esperando. Virei-me para aproveitar a boa fortuna. De fato, o fiacre acabava de vomitar, na soleira do prédio, colegiais de pileque, que precisavam ver a Morte para acreditar nela. Olhei para o fiacre vazio e disse ao cocheiro: “Passage de L’Opéra!” Um pouco depois, nos bulevares, achei o tempo mais encoberto, sem nenhum horizonte. Os arbustos, vegetações esqueléticas, pareciam indicar vagamente, com a ponta dos galhos negros, alguns pedestres aos policiais ainda sonolentos. O carro ia apressado. Pela vidraça, os passantes me davam a impressão de água correndo. Chegando ao meu destino, pulei para a calçada e peguei a passagem, repleta de rostos preocupados. No final do corredor, bem na minha frente, reparei na entrada de um café — desde então consumido por um famoso incêndio (pois a vida é um sonho) —, relegado ao fundo de uma espécie de galpão, debaixo de uma arcada quadrada, de sinistra aparência. Os pingos de chuva que caíam no vidro de cima escureciam mais ainda a pálida claridade do sol. “É aqui”, pensei, “que me esperam os meus homens de negócios, de copo na mão, olhos brilhantes e desafiando o Destino!” Então, virei a maçaneta da porta e me deparei, no mesmo nível, com uma sala onde a claridade do dia caía do alto, lívida, pela vidraça. Em colunas havia roupas, cachecóis, chapéus pendurados. Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos. Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar. E os rostos eram da cor do tempo, os olhares eram sem pensamentos. Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles. Olhei para esses homens. Decerto, para escapar das obsessões da insuportável consciência, a maioria dos que ocupavam a sala tinha, muito tempo antes, assassinado suas “almas”, esperando assim um pouco mais de bem-estar. Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, a lembrança do ruído surdo do carro voltou ao meu espírito. “Com toda a certeza”, pensei, “aquele cocheiro deve ter sido atacado, no correr do tempo, por uma espécie de estupor, pois simplesmente me trouxe, depois de tantas circunvoluções, ao nosso ponto de partida! Todavia, confesso (caso haja um equívoco), o segundo olhar é mais sinistro que o primeiro!…” Então, em silêncio fechei a porta envidraçada e voltei para casa, firmemente decidido — desconsiderando o exemplo e pouco me importando com o que pudesse me acontecer — a nunca mais fazer negócios. Extraído da obra Contos cruéis (1883), do escritor e dramaturgo francês Auguste Villiers de L’Isle-Adam (1838-1889).

 

UM POEMA - Deixai de prender fogo a pergaminhos e papéis, / e mostrai vossa ciência para que se veja quem é o que sabe. / E é que ainda que queimeis o papel / nunca queimareis o que contém, / posto que no meu interior o levo, / viaja sempre comigo quando cavalgo, / comigo dorme quando descanso, / e na minha tumba será enterrado logo. Poema do poeta andalusino Abzeme (Abu Maomé Ali ibne Amade ibne Saíde ibne Hazme – 994-1064).

 




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