TRÍPTICO DQP –
Mameluquices mulatíndias... - Ao som do Concerto para Cello e orquestra em Si menor, Op. 85 (1919 – CBS, 1976), do
compositor inglês Edward Elgar (1857-1934), na interpretação da
violoncelista Jacqueline du Pre com a Orquestra
Sinfônica de Londres, regência de Daniel Barenboim. – Videncruzilhada, tomei a direção da venta, como sempre. Andejo e só dei fé
duma hestória: a ameaça nas imediações de uma certa bonitona, a mais bela de
todas quanto já tivesse. Hem? Todos os homens, não tinha um só que a visse e
não endoidasse de paixão. Mesmo? Disseram chegada das bandas da Paraíba e tinha
lá um feitiço que era segredo só dela. Oi? Aos cochichos: ela vira a onça que
matou a menina que foi criada pela velha. É? Ninguém escapa. Como assim? Era
uma vez uma menina que cresceu e queria ganhar o mundo, mas não tinha nada.
Pediu a velha que lhe desse e, a coitada, só tinha um carvão: eu quero. Com a posse,
pé na estrada. Depois de muito andar ela encontrou um ferreiro que do carvão
precisava e ela deu. Depois pediu de volta, era tarde, gastou-se e não mais
havia. O ferreiro então deu um machado e ela ganhou o mundo. Adiante estava um cancão
e precisava do machado para bater pau e ela deu pra ele tirar mel. Foi pá e
pei, nisso o machado se quebrou e ela queria de volta: só tenho mel. Então, me
dê. Picou a mula e, noutra volta, se deparou com a lavadeira com a trouxa no
rio comendo feijão. Ao ver-lhe o mel às mãos dela, pediu e ela deu. Acabou-se o
que era doce e ela queria de volta: deu-lhe um pão de milho e picou a mula. Lá na
curva da rodagem, um velho pediu-lhe esmola e ela deu o pão de milho, logo
devorado. E agora? Só tenho esse ferrão de acuar gado. Ora, quero. E na beira
dum cercado, um vaqueiro aperreado para juntar a boiada, ele pediu pra ela e,
sem cerimônia, deu: cutucou daqui, dali, e o ferrão partiu-se. E agora, quer
uma vaca? Quero. Para lá e para cá com sua vaquinha, a onça apareceu e devorou:
Onça, eu quero minha novilha de vaca, novilha que o vaqueiro me deu. Vaqueiro quebrou
ferrão, o ferrão que o velho me deu. O velho comeu o pão de milho, o milho que
a lavadeira me deu. Lavadeira comeu o mel, o mel que o cancão me deu. Cancão quebrou
machado, machado que ferreiro me deu. O ferreiro gastou meu carvão, carvão que
minha madrinha me deu. A onça nem pestanejou, lambeu os beiços e a menina no
bucho, palitando os dentes, ancha. Foi aí que a fera, sem sabe como, virou uma
moça bonita que vive por ai zanzando e seduzindo todos aqueles de juízo, só para
endoidecê-los... Ouvia eu atento o relato, enquanto alguém desconhecido mencionou
o poeta italiano Arturo Graf (1848-1913): A sabedoria e a razão, falam; a ignorância,
ladra. Estranhei, desconfiado. Logo outro do meio deles sapecou Goethe: Não há nada mais terrível que a ignorância. Não falto algum
injuriado, até quem invocasse Confúcio:
A ignorância é a escuridão da mente! Outro
mais desabusado cuspiu Pitágoras: Se me perguntar o que é a morte, respondo: a
verdadeira morte é a Ignorância. Quantos mortos entre os vivos! Lá estava
eu no meio de uma saraivada discordante de gente pia e incrédula, nem sabiam o que diziam, nem nada, só jogavam conversa fora, repetiam o que ouviram desde infância, apenas... Reproduziam do jeito deles, segundo eles... Foi aí que me
apareceu o escritor escocês Alasdair
Gray (1934-2019) que me puxou do lado: Não quero enfrentar este
mundo, vamos voltar ao inferno que estou imaginando... Eu deveria ter mais amor antes de morrer. Eu não tive o suficiente...
Depois de me conduzir para uma esquina na saída da localidade, ele me disse em
tom confidencial: Trabalhe como se estivesse nos primeiros dias de uma
nação melhor. E se despediu me livrando de zunzunzum
tão discordante. Aproveitei a deixa, segui meu caminho...
O reencontro na
ruína... – Imagem: arte do fotógrafo francês Lucien Clergue (1934-2014).
– Andanças noitedia e se era ou não onça, na
vera, não sei. O que sei de mesmo é que ao depará-la deu-se o reencontro: era a
Vênus do Quintal. Lembra? Ora, se. E
logo me disse toda cantatriz mexicana María
Félix (1914-2002): Minha lenda começou a ganhar forma sem mover
um dedo. A imaginação do público fez tudo por mim... E sorriu sedutoramente como se me revelasse seus
segredos, abraçando-me para cochichar ao meu ouvido: Quando eu quiser, será
pela porta grande. Não entendi a última frase sussurrada, sei apenas que
levou por insólitas paisagens que mais pareciam as cenas do The Black Crown
(1951) do Luis Saslavsky: era o
milagre, disse-me e confessou: havia perdido a memória há muito tempo e só
agora tomou ciência da razão disso: havia matado o marido. Ao me reconhecer
tomara ciência de tudo. Para ela parecia que eu a havia curado, não sei, fato
inexplicável. Logo fez-se em mim a La Doña – María Bonita. E me narrou detalhadamente
sua turbulenta vida amorosa, casamentos desfeitos, de como se tornou a María
de Todas las Marías e o motivo de todos cantarem para ela Je l'aime à
mourir de Cabrel. Nada disso jamais poderia eu saber, há muito tempo ela
havia se tornado apenas uma deliciosa lembrança que eu guardara para que a vida
valesse a pena. Não sei se estava ali condenado ou absolvido, sabia apenas que
estava agora enredado nos braços da Inés Rojas do La fièvre
monte à El Pao, de Buñuel. De fato, em mim a
febre aumentava mesmo porque a República do Pecado misturava histórias que me
puxavam e, depois de tudo, era como se não mais confiássemos um no outro,
enquanto fugíamos da ilha do ditador à beira de uma guerra civil, até chegarmos
a uma praia deserta para me dizer que ela era a Diana do Safo’63 de Alcoriza e
nos refugiamos ali. Sabia lá o que seria de nós ali isolados de tudo e de
todos, só sei que ela me contou que lera a emocionante carta de Kierkegaard para Regine e se emocionou
o panegírico apaixonado de Charlotte e Adam. Uma lágrima desceu e a enxuguei com o polegar. Fitou-me,
chorosa e desabafou: havia detestado a leitura do Geschlecht
und Charakter (Losada, 2004), do misógino filósofo austríaco Otto Weininger (1880-1903),
repetindo o que ele escrevera: Nenhum homem que pense profundamente sobre as mulheres mantém uma
opinião elevada sobre elas. Ou os homens desprezam as mulheres ou nunca pensarão seriamente a respeito
delas. Nossa! E prosseguiu protestando o fato de como ele
se dedicara à entrega total aos imperativos da genialidade, suicidou-se aos 23
anos. Que tragédia! Para ela, a única coisa de relevante que ele deixara, tão
somente foi o impacto que exerceu sobre Wittgenstein: Ver o mundo corretamente em silêncio. Quase sorrindo mencionou o silêncio dos versos do The Second Coming de Yeats: Falta convicção aos melhores / enquanto os piores estão cheios de
apaixonada intensidade. Abraçamo-nos com a paradisíaca paisagem. Com o
passar dos dias aquele lugar era o espetáculo dela nua e tive que veemente discordar
do filósofo suicida que sentenciara: Uma
figura feminina absolutamente nua deixa uma impressão de algo deficiente, uma
coisa incompleta que é incompatível com a beleza. Ah,
não! Prefiro o feitiço dela, mesmo que seja uma completa desconhecida, monstro
disfarçado ou anátema indesvencilhável.
Prexelândio
absoluto.... - Despertei atordoado com a barulheira de
uma multidão. Que será? Ao tomar pé da situação, entre os desencontros de ontem, reencontros de amanhã, reconheci uma voz de
antanho: do poeta e radialista Tony Antunes (que também se assina professor Gleidistone) e recitava no palco Prexelândios de uma vida. Aplaudi ao final e foi quando percebi que estava sozinho e
entre gente que nunca antes tivera sequer visto. Havia um certo desconforto só
quebrado que, depois, ele encostou-se com a surpresa e um exemplar do seu Digitais absolutas: poemas escolhidos, para recitar-me o seu poema As letras: As letras que fazem nascer /
minhas palavras / são portadoras / de criação infinita. / Nos calcanhares
letrados da mente / surgem idiomas / com asas de fênix / reluzindo luz e
conhecimento. / Abrindo os olhos à leitura, podemos então / ser descobridores
de mágicas metáforas / em semânticas de vida / de luz e / de amor. Aplaudi com
um firme aperto de mão de frater e um abraço caloroso com os versos do seu
poema Meus quirodáctilos: ... sei do meu passado / não sei do meu porvir.
/ Sou viajante do cosmo / nos planetas mentais / do tico e do teco / do tosco e
do taco / de tudo e de todos. Foi aí que conversamos animadamente por um
bom espaço de tempo, até ela reaparecer e nos despedimos com a promessa de
revermos em breve. Ela me levou de volta para o seu aconchego que sequer sabia
onde que poderia ser, enquanto dizia-me de um poema O fim do mundo, da poeta
alemã Else Lasker-Schuler
(1869-1945): Há um lamento no mundo, /
Como se não mais houvesse o bom Deus, / E a sombra que cai, cortina de chumbo,
/ Pesa mausoléus. / Vem, escondamo-nos mais de perto... / A vida jaz nos
corações / Como nos féretros. / Ei, beijemo-nos até não mais poder / — Pulsa
uma saudade no mundo, / E é disso que temos de morrer. Ao final do poema,
estávamos no meio do mundo e eu não sabia onde era nem queria saber. Então, abraçou-me
com o fervor de sempre, sem que eu soubesse jamais se onça ou benfeitora,
apenas: precisamos viver, enquanto podemos respirar. Até mais ver.
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