domingo, setembro 19, 2021

DOLORS FERNÁNDEZ, MUNTANÉ, GOLDING, KAZANTZAKIS, ALMODÓVAR, BORTOLOTTO & MARCUS ACCIOLY

 

 

TRÍPTICO DQP – Movediçáguas... - Ao som do Concerto nº2 – Metamorphosen, de Krzysztof Penderecki, na interpretação da violinista coreana Ju-Young Baek & Korean Chamber Orchestra at Concert hall, Seoul Art Center (2013). - Era domingo e a noite viera com a procela antecipando a invernada. Ainda era outono e quem ofegava com as águas que transbordaram e invadiram as ruas da beira, lavando os pés com alarme e subindo pelo calcanhar daquela quase sem poder andar, perdera a conta, já na canela pelos joelhos e ela se arrastando até a porta, estava tudo inundado e ela aflita, até o portão emperrado e ninguém por socorro, ganhou a calçada, cuidado com as bueiras dos esgotos submersas, as dilatações, chegava a hora, contrações, tontura e inquietação, encostada à parede, tudo escuro na vertigem, nada mais nem ninguém, e escapava o sentimento da perda do que poderia ser a vida eterna, não, uma mão e a salvo: um riso que jamais esqueci. E era de Carma como se fosse Kazantzakis em cima da hora: Novamente sou criança para que me seja possível enxergar o mundo sempre como de uma primeira vez. Dessa vez não sabia, nascera ali, nada vira até que crescesse e tomasse conta das paragens e de todo mundo, aquelas águas e aquele sorriso salvador por toda minha vida, como se Mika Waltari com trechos do The Egyptian: ... Meu amigo, nascemos em tempos estranhos. Tudo está derretendo - mudando de forma - como a argila na roda de um oleiro. As roupas estão mudando, as palavras, os costumes estão mudando e as pessoas não acreditam mais nos deuses... talvez tenhamos nascido para ver o pôr-do-sol do mundo, pois o mundo já é velho e já se passaram... Quando penso nisso, quero enterrar minha cabeça em minhas mãos e chorar como uma criança. Ter nascido em águas movediças, náufrago emergencial que não sabia das duas faces de Janus, só agora saberia sem passado, muito menos futuro, um presente incerto, como se William Golding repetisse: Meus dias de ontem caminham comigo. Eles acompanham o passo, são rostos cinzentos que olham por cima do meu ombro. Talvez haja uma besta ... talvez sejamos apenas nós. O que havia esquecido perdera na primeira esquina, a vida era só o instante e tudo o mais tão movediço quanto a loucura presente e eu me visse na pele de Marcus Accioly: Falar de mim mesmo é escrever com a outra mão. Esqueci até que andara demais, só o coração acima e o que de mim restara farrapos de emoção coberta de dores.

 


Pegadédalos...- Imagens: arte da escultora e gravadora Rosana Monnerat. - Aquela como agora era a minha primeira solidão nas pegadas deixadas na areia da beira do rio, de mares outros e margens perdidas de longe, até que uma onda passasse a borracha e nenhum sinal mais que por ali passara, assim como as fotos que se apagaram com as lembranças dissipadas pelo arquivo morto que sumira e não sabia onde havia esquecido. Aquelas pegadas e os meus dédalos, prova exclusiva de que passei por ali, morto-vivo ou vice-versa, integrante da paisagem e aos indiferentes, nenhum aceno, cansei o gesto. Minha carne é só algumas lembranças fortuitas que se parecem com a trêmula de Almodóvar: um recém-nascido abandonado na cidade naufragada. Só que minha mãe não fora num ônibus assistida por parteira e motorista, não, não foi; minha estava exausta no meio da enchente, sozinha em casa, a cidade alagada, ruas e ninguém para que eu pudesse sair dali, no meio do rio, escapando não sei como, o sorriso e as águas, sou eu na rua do rio e agora é como se Los Lunes al Sol (2002), de León de Aranoa, o flagelo da usina falida e a cana sobrasse inválida nas mãos miseráveis de canavieiros e fornecedores – a quebra de braço com os mamoeiros -, e a polícia protegesse a massa falida e afugentasse vítimas que, em última instância, recorriam aos magistrados e os braços cruzados não podiam mais fazer nada, era a entressafra instaurada e não fosse mais que as cenas de Açúcar (2017) da Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, e tudo que vivi na desgraça das últimas décadas em que a cidade era apenas um nome, como no diálogo platônico, mas que sequer nada mais representaria além da bancarrota e penúria. E eu acompanhava os passos daquela que se evadia dos reclamos gerais com todas as culpas açucarocratas e o poeta e sociólogo catalão Miquel-Lluís Muntané puxava a conversa com versos de La esperanza del junco (1980): A cada momento aprendo novos modos de você; / fico dentro de você e, ao mesmo tempo, em todos / junto com quem amamos, pouco ou muito, a nevasca que nos endurece. / E invejo-te uma pouco, enfim e no final... E eu ouvia enquanto presenciava os meus se sujeitarem aos informais ambulantes e o Sol do meio dia queimando o juízo e dificultando a visão do equívoco geral e ele, mão ao meu braço, concluiu: ... A cada momento aprendo novos modos de você / e de você passar o ritmo ditado pelos séculos... Ele viu nos meus olhos quando a usina encerrou suas atividades, safra e tudo, nunca mais que um fogo morto se alastrando por toda região: as ferragens, a sucata, as dores da pobreza, a retomada inglória, a inadimplência, a inviabilidade. A loucura no Judiciário e na insolvência: quem tinha para receber temia por represálias, uma mão na frente e outra atrás, era o colapso da cidade e da região dolorida, a carestia e a outra seca, o meu desassossego. E era Damon Knight ditando a sentença: Não perca a paciência, é sua pior culpa, exceto pela ignorância. Nenhum progresso, seja moral ou material, pode ser feito em um mundo que está congelado, como o nosso, em um molde rígido de supressão de liberdades. Nem ouvi direito, compreendia apenas, como do futuro só restava o passado, nenhuma saída.

 


Vozabissais...- Tal como naquele dia inaugural, era o crepúsculo num dia de outono e eu comigo mesmo indagava: a chuva é o choro de quem? Ouvi uma voz em resposta, era a atriz Thaís de Barros na voz da Frances Farmer: Chega um ponto em que um sonho se torna realidade e a realidade se torna um sonho. Ou pesadelo, ou se nunca acordasse e o sonho fosse bem real. Ela sorriu e me levou pro Hotel Lancaster de Bortolotto, como se me escondesse embaixo da sua saia e mostrasse o sigilo do álbum da fotógrafa Monica Borges, enquanto encostava o seu queixo ao meu ombro, alisando-me as faces e deslizando sorrateira para tocar fogo na minha carne arrepiada. Aproveitou o ensejo para me enredar na Casa dos Budas Ditosos, do João Ubaldo, e pude enveredar por seus segredos incendiando sua alma até morder seu coração e ela me recitar nua a poeta espanhola Dolors Fernández: Eu acordei hoje com a mão estendida para a frente na fechadura teimosa de um punho. Eu senti os socos na perfuração dos meus dias eles se tornaram uma miragem na chave de um pesadelo. Eu vi isso meu coração mordido pelos seus lábios bate hoje entre abraçar diástoles. E nos reviramos lábios paredes pernas nuvens sexo chão e com o seu infinito orgasmo me disse como se recomeçasse a viver a partir daquele instante, sussurrando Roland Barthes: A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões... Era solidão demais e me vali para tê-la Barca de Ísis, a me levar argonauta pro seu Shekinah. Até mais ver.

 

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