TRÍPTICO DQP – Movediçáguas...
- Ao som do Concerto nº2 – Metamorphosen, de Krzysztof Penderecki, na interpretação da violinista coreana Ju-Young Baek & Korean Chamber
Orchestra at Concert hall, Seoul Art Center (2013). - Era domingo e a noite
viera com a procela antecipando a invernada. Ainda era outono e quem ofegava
com as águas que transbordaram e invadiram as ruas da beira, lavando os pés com
alarme e subindo pelo calcanhar daquela quase sem poder andar, perdera a conta,
já na canela pelos joelhos e ela se arrastando até a porta, estava tudo
inundado e ela aflita, até o portão emperrado e ninguém por socorro, ganhou a
calçada, cuidado com as bueiras dos esgotos submersas, as dilatações, chegava a
hora, contrações, tontura e inquietação, encostada à parede, tudo escuro na vertigem,
nada mais nem ninguém, e escapava o sentimento da perda do que poderia ser a
vida eterna, não, uma mão e a salvo: um riso que jamais esqueci. E era de Carma como se fosse Kazantzakis em cima da hora: Novamente
sou criança para que me seja possível enxergar o mundo sempre como de uma
primeira vez. Dessa vez não sabia, nascera ali, nada vira até que
crescesse e tomasse conta das paragens e de todo mundo, aquelas águas e aquele
sorriso salvador por toda minha vida, como se Mika Waltari com trechos do The Egyptian: ... Meu amigo, nascemos em tempos estranhos. Tudo está derretendo -
mudando de forma - como a argila na roda de um oleiro. As roupas estão mudando,
as palavras, os costumes estão mudando e as pessoas não acreditam mais nos
deuses... talvez tenhamos nascido para ver o pôr-do-sol do mundo, pois o mundo
já é velho e já se passaram... Quando penso nisso, quero enterrar minha cabeça
em minhas mãos e chorar como uma criança. Ter nascido em águas
movediças, náufrago emergencial que não sabia das duas faces de Janus, só agora saberia sem passado,
muito menos futuro, um presente incerto, como se William Golding repetisse: Meus dias de ontem caminham comigo. Eles
acompanham o passo, são rostos cinzentos que olham por cima do meu ombro. Talvez
haja uma besta ... talvez sejamos apenas nós. O que havia esquecido
perdera na primeira esquina, a vida era só o instante e tudo o mais tão
movediço quanto a loucura presente e eu me visse na pele de Marcus Accioly: Falar de mim
mesmo é escrever com a outra mão. Esqueci até que andara demais, só o
coração acima e o que de mim restara farrapos de emoção coberta de
dores.
Pegadédalos...- Imagens: arte da escultora e gravadora Rosana Monnerat. - Aquela como agora era
a minha primeira solidão nas pegadas deixadas na areia da beira do rio, de mares
outros e margens perdidas de longe, até que uma onda passasse a borracha e nenhum
sinal mais que por ali passara, assim como as fotos que se apagaram com as
lembranças dissipadas pelo arquivo morto que sumira e não sabia onde havia
esquecido. Aquelas pegadas e os meus dédalos, prova exclusiva de que passei por
ali, morto-vivo ou vice-versa, integrante da paisagem e aos indiferentes,
nenhum aceno, cansei o gesto. Minha carne é só algumas lembranças fortuitas que
se parecem com a trêmula de Almodóvar:
um recém-nascido abandonado na cidade naufragada. Só que minha mãe não fora num
ônibus assistida por parteira e motorista, não, não foi; minha estava exausta no
meio da enchente, sozinha em casa, a cidade alagada, ruas e ninguém para que eu
pudesse sair dali, no meio do rio, escapando não sei como, o sorriso e as águas,
sou eu na rua do rio e agora é como se Los Lunes al Sol (2002), de León
de Aranoa, o flagelo da usina falida e a cana sobrasse inválida nas mãos
miseráveis de canavieiros e
fornecedores – a quebra de braço com os mamoeiros
-, e a polícia protegesse a massa falida e afugentasse vítimas que, em última
instância, recorriam aos magistrados e os braços cruzados não podiam mais fazer
nada, era a entressafra instaurada e não fosse mais que as cenas de Açúcar (2017) da Renata Pinheiro e Sérgio
Oliveira, e tudo que vivi na desgraça das últimas décadas em que a cidade
era apenas um nome, como no diálogo platônico, mas que sequer nada mais
representaria além da bancarrota e penúria. E eu acompanhava os passos daquela
que se evadia dos reclamos gerais com todas as culpas açucarocratas e o poeta e
sociólogo catalão Miquel-Lluís Muntané puxava a conversa com versos de La esperanza del junco (1980): A cada
momento aprendo novos modos de você; / fico dentro de você e, ao mesmo tempo,
em todos / junto com quem amamos, pouco ou muito, a nevasca que nos endurece. /
E invejo-te uma pouco, enfim e no final... E
eu ouvia enquanto presenciava os meus se sujeitarem aos informais ambulantes e
o Sol do meio dia queimando o juízo e dificultando a visão do equívoco geral e
ele, mão ao meu braço, concluiu: ... A cada momento aprendo novos modos de
você / e de você passar o ritmo ditado pelos séculos... Ele viu nos meus olhos quando a usina encerrou suas
atividades, safra e tudo, nunca mais que um fogo morto se alastrando por toda
região: as ferragens, a sucata, as dores da pobreza, a retomada inglória, a
inadimplência, a inviabilidade. A loucura no Judiciário e na insolvência: quem
tinha para receber temia por represálias, uma mão na frente e outra atrás, era
o colapso da cidade e da região dolorida, a carestia e a outra seca, o meu
desassossego. E era Damon Knight ditando
a sentença: Não perca a paciência, é sua pior culpa, exceto pela
ignorância. Nenhum progresso, seja moral ou material, pode ser feito em um
mundo que está congelado, como o nosso, em um molde rígido de supressão de
liberdades. Nem ouvi
direito, compreendia apenas, como do futuro só restava o passado, nenhuma saída.
Vozabissais...- Tal como naquele dia inaugural, era o crepúsculo num dia
de outono e eu comigo mesmo indagava: a chuva é o choro de quem? Ouvi uma voz
em resposta, era a atriz Thaís de Barros
na voz da Frances Farmer: Chega um ponto em que um
sonho se torna realidade e a realidade se torna um sonho. Ou pesadelo, ou se nunca acordasse e o sonho
fosse bem real. Ela sorriu e me levou pro
Hotel Lancaster de Bortolotto, como se me escondesse embaixo da sua saia e
mostrasse o sigilo do álbum da
fotógrafa Monica Borges,
enquanto encostava o seu queixo ao meu ombro, alisando-me as faces e deslizando
sorrateira para tocar fogo na minha carne arrepiada. Aproveitou o ensejo para me
enredar na Casa dos Budas Ditosos, do João Ubaldo,
e pude enveredar por seus segredos incendiando sua alma até morder seu coração
e ela me recitar nua a poeta espanhola Dolors Fernández: Eu acordei hoje com a mão estendida para a
frente na fechadura teimosa de um punho. Eu senti os socos na perfuração dos meus dias eles se
tornaram uma miragem na chave de um pesadelo. Eu vi isso meu coração mordido
pelos seus lábios bate hoje entre abraçar diástoles. E nos reviramos
lábios paredes pernas nuvens sexo chão e com o seu infinito orgasmo me disse
como se recomeçasse a viver a partir daquele instante, sussurrando Roland Barthes: A vida é, assim,
feita a golpes de pequenas solidões... Era solidão demais e me vali para
tê-la Barca de Ísis, a me levar argonauta pro seu Shekinah. Até mais ver.
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