TRÍPTICO DQC: UM: No tempo que as coisas tinham graça – Era então menino presepeiro no Caçotinho, isso lá pela segunda metade dos anos 1960. A vizinhança era musical: no quintal ficava ouvindo o sax que soava intermitente pelas manhãs, finais de tarde e no meio da noite. Do lado esquerdo, um menino já solava a guitarra. Aí eu corria e me encostava à porta de sua casa para ouvi-lo: Bito, vamos tomar café? Vambora. A senhora mãe dele, com uma simpatia sorridente que era o maior afago no coração da gente, forrava a mesa, ajeitava tudo e me tinha como um da casa, servindo uma cumbuca de manteiga, pães e um apetitoso prato de batatinhas fritas. Santa mãe: ela achava a maior graça nossa gulodice, armados um duma faca de serra, lascava o pão verticalmente, tascava uma prastada de manteiga na banda do pão e inhac! Tome manteiga pra cima a cada mordida no pão. E isso enfiando o palito naquela que seria a melhor batata frita do universo! Verdade! Ainda hoje sinto o gosto na boca, inigualável. Bucho roliço, a gente corria da mesa para que ele executasse na guitarra os solos de sucessos que faziam a trilha sonora da nossa infância. Às vezes ele sapecava nas cordas umas gritadas raivosas segurando no cabo da distorção, só via seus dedos correndo dum lado pro outro no braço do instrumento e os cachorros uivavam fazendo coro do lado de fora. Nisso a gente ficava o dia inteiro, só suspendendo quando da chegada do pai dele pro almoço ou janta. À sesta, seu Louro sentava do meu lado e ficava apreciando o talento do filho nas cordas de aço. Quando não, era chutando a bola um pro outro, ou aprontando coisas de meninice. Anos de infância e adolescência, até que me mudei de lá e só o reencontrei já na segunda metade dos anos 1980, para integrar a equipe de músicos do meu show Por um novo dia. Ele já era músico prestigiado por todas as bandas e já se assinando Vavá de Aprígio. Festejamos e fizemos bonito, maior barato. Depois do evento, piquei a mula Brasil afora, só revendo o amigo muitos anos depois, para gravar os meus frevos da Folia Caeté. Comemoramos e pintou tudo às mil maravilhas, com a participação do maestro Maurício Malafaia e outros músicos da minha estima. Foi festejo que só em copos e rodadas. Tudo passou e agora é como se ouvisse o escritor espanhol Enrique Vila-Matas: Mais do que o vazio, o que importa é o conteúdo do vazio... Encontramo-nos em uma corrida louca rumo ao nada. Coisas do coração falam mais alto Marguerite Yourcenar: Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana. É a hora nostálgica da qual fala Augusto Roa Bastos: Nesses momentos, quando a humanidade como um todo está em estado de decadência, sempre existem aqueles seres excepcionais como ponto de referência. Hoje vez em quando a gente se cruza, joga conversa fora e fala dos projetos adiados para quando o genocídio e a pandemia folgarem um pouco e a gente mandar ver numas estripolias boas lembrando as presepadas de infância e das últimas curtidas sonoras das nossas audições. Vamos nessa!
DOIS: Das lembranças no meio dos livros - Ao som de Saudações – Sertões Veredas (ECM, 2009), de Egberto Gismonti, com a Camerata Romeu, sob a regência de Zenaida Romeu. - Bordejava eu com meus vinte e poucos anos pela rua 7 do Livro, quando ela me deu a edição do Lítero-Pessimsta, com a publicação de um poema do meu primeiro livro. Foi uma verdadeira festa no meu coração. E trouxe junto Francisco Espinhara, Marcelo Mário Melo e Eduardo Martins pra gritaria performática duns versos independentes nos céus do Recife. Ô festa boa! Lá estávamos e eu me aprontava para Piratear recepcionando o abraço de Arnaldo Tobias e Cícero Melo, com a novidade me levaram para uma roda com Jaci, Juareiz e Paulo Caldas que ouviam as cipoadas poéticas de Ângelo Monteiro e Alberto da Cunha Melo. Era cada virada de copo e de noite, de me perder da Boa Vista e errar o caminho de volta para casa. Tempos bons. Ainda tenho entre meus livros nas estantes a coletânea Restos do fim e O cavaleiro da epifania, que são desta época. Depois que adquiri nas minhas passagens pelo Recife os livros Cântaro (2000) e Gume (2005). E agora folheando Solo para Vialejo, revejo na memória viva e verdadeira a premiada e votada poetamiga Cida Pedrosa como se me dissesse desde sempre: Eu acredito que o poema pode mudar o mundo ou uma pessoa, ou o dia de uma pessoa. E é por isso que eu escrevo. Essa é a minha maior militância de todas as minhas militâncias. E depois recitasse... : a mulher virou homem o trabalho / e a desigualdade por baixo da saia: trouxa / na cabeça camisa cáqui de mangas compridas / chapéu de palha quartinha de cabaça e só / calça comprida por baixo da saia / calça comprida por baixo da saia / calça comprida por baixo da saia. Aplausos de sempre. Beijabrações, sucesso & saudades.
TRÊS: Medo de fechar os olhos – Imagem do escultor, poeta e artista tcheco Gyula Kosice (1924-2016), ao som Prelude 4, de Heitor Villa-Lobos, na interpretação do violonista alemão Peter Graneis. – O medo de fechar os olhos na escuridão da infância até agora e não sabia. O medo de abrir os olhos e o bicho embaixo da cama e os monstros dos velórios do meu quarto, minha casa meu cárcere na lápide da catacumba de todo fausto que apenas ouvi dizer por que só havia decadência por todo lado desde sempre. Fechar os olhos e abri-los e o Sol tiver roubado o dia para que nunca mais amanheça e não ter como fazer as pazes com Deus no meio das alternativas de escolher e resistir, de errar e não mais. Ou abrir os olhos no fundo do mar ou no oco do abismo, no estômago de um mastodonte e perder a fronteira e cair do outro lado ou me envultar de vez porque perdi a guerra e não estou sozinho, embora não tenha ninguém por perto. Abrir os olhos e ouvir o escritor e dramaturgo polaco Witold Gombrovicz (1904-1969): Eu dei vazão à minha estupidez ... e aqui estou eu, renascido. Nosso elemento é a imaturidade sem fim. E fechá-los com o eco de Platão na cabeça: Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. E ao abri-los ficar encadeado de doer com Gandhi insistindo: O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não. E eu que nunca fui covarde com o medo de fechar os olhos e ter de retornar para um lugar que não me cabe e nem reconheço mais porque havia não sei quantas maneiras de ser diferente e perder a sinarquia dos mistagogos, inescrupulosamente desesperançado das dúvidas inquietantes por ser derrotado pela ressurreição das arruinadas verdades sagradas nas ondas do ressentimento e no deserto das ausências. E abrir os olhos e não mais ouvir Clarice: Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite... O medo de fechar os olhos como se a vida fosse uma causa perdida e eu nunca me resignei, nem me arrependi e agora é tarde recuperar o que perdi porque vi o que ninguém vu, senti o que ninguém sentiu. E enfim me salvar com a frase de Beatriz Bracher: Nenhuma palavra pode alcançara luz rosa e a transformação das pedras monumentais do amanhecer... E seguir cego sozinho sem ter para onde ir. Até mais ver.
A ARTE TEATRAL DE WALBER BARRETO
A arte do ator e professor Walber Barreto Pinheiro, que é ator e professor de Língua Portuguesa. Ele iniciou sua carreira no Projeto Arteatro, em 1996, participou do projeto Mais Educação e além de performances de teatro popular, realizou uma temporada exitosa com a encenação da peça O discurso da pura razão, do premiado dramaturgo, pintor e advogado Elmar Castelo Branco, com o qual foi premiado no Festeráguas 2019. Confira a entrevista que ele me concedeu aqui e mais Teatro aqui e aqui.