A RUA DAS VIÚVAS
– Imagem: arte da pintora, desenhista,
gravadora e professora brasileira Anita Malfatti
(1889-1964). - Nada mais sombria paisagem do que aquela
quase rua mal iluminada e tão estreita de parecer um beco sem saída, mais vai
dar noutros tantos acessos de avenidas e estrada afora com seus murmúrios
baixinhos e sussurros espremidos, pela qual quantas Atalantas haviam perdido a
soberba da juventude de princesas, tão altivas beldades de rejeitarem pretendentes
por serem consagradas a Ártemis, a grande deusa lunar rebelde das florestas e animais
selvagens, libertárias e independentes, e tão capazes de competir em verdade
com todos os Hermes de então, agora viúvas trancadas da vida. Elas que então se
esquivavam dos assédios como até hoje, jovens robustas a brincar de bem-me-quer
e malmequer com as pétalas de rosas, até a chegada do sapo próspero príncipe de
reinados e posses na engalanada festa de véus e grinaldas na matriz, chuva de
arroz e presentes dos padrinhos e convidados, para nas núpcias se entregarem
aos seus maridos escolhidos a dedo e com eles correrem com a leveza dos deuses a
se comprazerem enredados nas teias das paixões violentas, a ponto de se
esquecerem da gratidão devedora à Afrodite. Essa ingratidão dita como sempre o
destino dos infelizes por provocar a fúria da deusa e dela emanam castigos de
toda sorte. Não sabiam sequer do esquecimento e hoje pagam todas órfãs do dia a
esperarem a qualquer momento pelas maçãs dos Hipomenes, colhidas do Jardim das
Hespéridas ou da Discórdia ou da Árvore do Conhecimento no Jardim do Éden, ou
mesmo as presenteadas com o perdão de Afrodite. Desoladas, refugiam-se em rezas
de joelhos na sua solidão ou no culto do templo mais próximo, em orações muitas
de todos os arrependimentos e culpas. E choram desconsoladas não mais Esqueneu
para repudiá-las ao nascimento e abandoná-las nas montanhas, até se arrepender
e trazê-las do Monte Partênio para o lar e, diligentemente, protegê-las das
ruínas e libertar suas almas apenas pros bons partidos. Não mais noites de boas
conversas ou mesmo de algumas contrariedades alimentadas pelos desentendimentos
inerentes a qualquer casal, não mais pés para esquentar no frio os seus embaixo
do cobertor, nem finais de semana aos passeios, nem filhos prometidos, muito
menos promessas de paz na velhice. Todas as noites ali elas se deitam solitárias
com seus sofrimentos, padecem de quantas angústias, fobias, medos e depressões que
povoam do crepúsculo à aurora sua clausura, quando não se valem da maldição da
Mulher da Sombrinha ou daquelas que saem de suas lápides para enfeitiçarem os
notívagos às portas do cemitério ou nas esquinas movimentadas acenando ao
primeiro passante a gentileza de pagar ou não um momento de prazer nos escuros
dos quartos. Ninguém me vira por Hesíodo naquela via da Arcádia e meus olhos de
Higino flagraram aquela via da Beócia, todas elas, inclusive aquelas que
também são viúvas de maridos vivos - sobreviventes reféns das safras
canavieiras em todo o território brasileiro. Pra elas minha solidária emoção de
estrelas que alumiam o caminho a seguir. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS:
Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma
árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina. Os japoneses têm um grande
amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores,
arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho. Assim, o povo
dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão
bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra
árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia
e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e
bem formada. E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da
larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se
com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens
perfumadas. Assim foi durante várias gerações. Mas, com o passar do tempo,
surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem,
ninguém era capaz de arranjar uma boa solução. Porque, ao longo dos anos, a
árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a
sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da
ilha ficava sempre à sombra. De maneira que metade das casas, das ruas, das
hortas e dos jardins nunca apanhava sol. E, na metade ensombrada, as casas
estavam a ficar úmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não
davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava
sempre pálida e constipada. E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia
também a perturbação. As pessoas gemiam: — Que havemos de fazer? Que havemos de
fazer? Até que foi decidido a população reunir-se toda em conselho para
examinar bem o problema e decidir o remédio que devia dar-lhe. Discutiram
durante muitos dias e, depois de todos terem falado, chegou-se à triste
conclusão de que era preciso cortar a árvore. Houve choros, lamentações,
gemidos. A árvore era bela, antiga e venerável. Fazê-la desaparecer era um ato
que não só entristecia os habitantes da ilha mas que também os assustava. Mas
não havia outro remédio e quase todos acabaram por concordar com o corte. No
lugar onde antes ela se erguia, plantaram um pequeno bosque de cerejeiras, pois
as cerejeiras nunca crescem muito. Abater a árvore foi difícil e toda a gente
teve de ajudar. Mas, depois de cortada, ela ocupava tanto espaço que a ilha
ficou quase sem lugar para mais nada. Por isso começaram a desfazê-la: primeiro
cortaram os ramos e as pernadas e a sua madeira foi distribuída entre todos,
para que cada um pudesse fabricar alguma coisa que lhe lembrasse a árvore tão
amada. Alguns fabricaram pequenas mesas, outros, varandas para as suas casas,
outros, caixilhos para os biombos, outros, caixas, tabuleiros, tigelas,
colheres, pentes e ganchos para as mulheres espetarem no cabelo. No fim ficou
só o enorme e grosso tronco nu, deitado através da ilha. Então começaram a
chegar viajantes e armadores que queriam aquela ótima madeira para fabricar
barcos. Mas a população não quis. Reuniram todos outra vez em conselho e
decretaram: — Os habitantes desta ilha não querem separar-se da sua árvore que,
antes de crescer demais, lhes deu tanta alegria. Vamos nós próprios construir o
nosso barco. E assim foi. Depois da chuva do Outono, deixaram o tronco secar
durante longos meses e, logo que viram que a madeira já estava bem seca,
meteram mãos à obra. E, como são um povo muito inteligente, os japoneses, que
trabalham muito bem, muito depressa, com muito esmero e são ótimos
carpinteiros, construíram rapidamente uma grande e linda barca toda esculpida e
pintada de muitas cores. Então houve uma grande festa e a barca foi lançada ao
mar. À noite houve fogo de vista e em todas as ruas e praças se acenderam
balões de papel, azuis, amarelos e vermelhos. Daí em diante a vida do povo
daquela terra passou a ter uma vida muito mais animada e variada e quase todos
se tornaram muito mais ricos. Antes, como a ilha era tão pequena, os seus
habitantes só possuíam pequenos barcos de pesca e só podiam navegar até às
ilhas vizinhas. Quando alguém precisava de ir mais longe tinha que arranjar um
lugar em certos barcos maiores que de vez em quando por ali passavam. Agora
tudo tinha mudado. Agora, graças à grande barca, navegavam constantemente de
ilha em ilha davam grandes passeios pelo mar e faziam ótimos negócios. Às vezes
nas noites calmas de Verão ou de Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até
ao largo ver a lua cheia sobre o mar. Ou então rondavam a ilha junto à costa,
até ao extremo sul, para irem ali admirar os recortes negros dos rochedos sobre
a claridade clara e azulada do luar. Depois, no Inverno seguinte comentavam
estes passeios, comparavam tudo o que tinham visto, discutiam qual fora a mais
bela noite, a mais bela paisagem. Entretanto, à medida que o tempo ia passando,
as cerejeiras que tinham plantado iam crescendo e embelezando. Por isso a gente
da ilha passou a celebrar, todos os anos, a festa da cerejeira em flor. Quando
acabava o Inverno e começava a surgir a Primavera tudo se animava. Os
pedreiros, os tanoeiros e os carpinteiros vinham trabalhar para o ar livre e
riam e cantavam enquanto esculpiam, serravam, martelavam. Havia grande azáfama
e pelas ruas passavam pessoas muito apressadas: iam a correr às lojas de
tecidos comprar kimonos de Primavera para vestirem quando chegasse o dia em que
já pudessem ir admirar o primeiro desabrochar das flores. E nas ruas, nos
jardins, nos campos, os marmeleiros, as macieiras, as cerejeiras já estavam
carregadas de botões fechados. No centro da povoação aparecia então o macaco
amestrado, vestido com um casaquinho azul e acompanhado pelo seu dono. E em
redor juntavam-se as crianças e adultos para admirarem as habilidades do animal
sábio. E as crianças ficavam mudas de espanto quando aparecia um grande leão de
papel que vinha pela rua fora num andar baloiçado, acompanhado por dois homens
vestidos com kimonos amarelos. Passavam por todas as ruas e por fim paravam
debaixo dos ramos das cerejeiras. Então os homens do kimono amarelo começavam a
rufar os tambores e o leão começava a dançar. E um dos homens cantava: Já dança
o leão / Debaixo da cerejeira / Ao som dos tambores / O seu bailar faz abrir / Mais
depressa as flores. E, no dia seguinte, nos ramos das cerejeiras, as pequenas
flores cor de rosa estavam todas abertas. Assim, durante muitos anos, a vida
naquela ilha correu com muita alegria e animação. Mas apesar dessa alegria,
apesar dos bons negócios e dos grandes passeios, todos se lembravam com saudade
da velha árvore. — Como era alta e bela! — diziam. — Como a sua sombra era
perfumada! — Como era doce e leve o sussurrar da brisa nas suas folhas! — Como
a sua copa era redonda e bem formada! — Como as suas folhas eram verdes e bem
desenhadas! — Como era tão suave a frescura debaixo dos seus ramos, nas manhãs
de Verão! E, assim, entre palavras e pensamentos, a árvore nunca era esquecida.
E os anos foram passando. Até que os marinheiros e os calafates descobriram que
estava a acontecer uma grande desgraça: A madeira da quilha da grande barca
tinha começado a apodrecer. — Ai de nós! — choravam os habitantes. — Não vamos
dar mais passeios pelo mar. Nas noites de lua cheia, não vamos visitar mais as
outras ilhas, não vamos fazer mais negócios. Mas os comerciantes
sossegaram-nos. — Durante estes anos — disseram eles — graças à nossa grande
barca, andámos a navegar de ilha em ilha, de porto em porto, a comprar e a
vender, e fizemos negócios tão bons que juntamos muito dinheiro. Por isso, como
aqui não há outra árvore enorme, e as árvores que agora temos fazem muita falta
se forem cortadas, estamos dispostos a ir às outras ilhas comprar boa madeira.
E todos juntos podemos construir outra grande barca. A população aplaudiu o
discurso e concordou com o projecto e daí a poucos meses a barca nova ficou
pronta e logo a puseram a flutuar. Então, a barca velha foi arrastada para a
praia. O povo cercou-a em silêncio com grande tristeza, e os carpinteiros e os
calafates examinaram-na tábua por tábua. A madeira do casco, do convés e dos
bancos estava quase toda semiapodrecida e só servia para queimar. Mas o mastro
grande, que tinha sido tirado do cerne da velha árvore, continuava são e bem
conservado. — Temos que fazer com este mastro alguma coisa que nos lembre a
nossa árvore antiga e a nossa barca — disse o chefe da ilha. Depois de muito
pensar resolveram fazer uma biwa,
que é uma espécie de guitarra japonesa. Quando a obra ficou pronta, a população
reuniu-se na praça principal e sentaram-se em silêncio em redor do melhor
músico da ilha para ouvirem o som da biwa.
Mas, mal os dedos do músico fizeram soar as cordas, de dentro da biwa ergueu-se uma voz que cantou: A árvore antiga / Que cantou na brisa /
Tornou-se cantiga. Então, todos compreenderam que a memória da árvore
nunca mais se perderia, nunca mais deixaria de os proteger, porque os poemas
passam de geração em geração e são fiéis ao seu povo.
Conto A árvore (Figueirinhas, 1987), da poeta
portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Veja mais aqui
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A ARTE DE ANITA MALFATTI
A arte da pintora, desenhista, gravadora e professora brasileira Anita
Malfatti (1889-1964). Veja mais aqui, aqui e aqui.
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