A FELICIDADE
INCOMODA – Imagem: Laughter, do artista estadunidense Jeff Knecht - Risadinha ria à toa, até no nome: Zé Riso – nome que a
mãe lhe dera logo ao nascer: Esse menino já nasceu sorrindo. Para os pais era
uma desgraça, mas ele mudou a sorte de todos ali, não fosse algum tempo depois
consumidos pelas labaredas do canavial. De vera a criança era uma simpatia,
mesmo órfão, sem parentes nem aderentes, nunca fizera questão por nada. Adorava
brincar e se o enrolavam, ele ria; se tomavam seu brinquedo, brincava de outro
jeito na maior alegria; e brincava com todos, até ninguém querer mais nada com
ele, cheios da sua hilaridade. Sempre animado na vida, lá estava ele adolescente
numa sala de aula. Uma professora inchada não foi com a sua cara: Está mangando
do quê? Nada. Deixe de ser debochado com essa cara lisa! Mas professora... Mas
nada, de castigo. Palmatórias, ajoelhado em milhos secos, face para a parede. E
lá ia ele todo contente no fim da aula, assobiando. Isso quando não era
suspenso pela reincidência e findar expulso duma vez por todas, abrigando-se
noutra escola. A injustiça causou revolta na turma: O que deu da professora
perseguir Risadinha? Isso se repetia de sala em sala, onde fosse estudar. Com o
tempo, os colegas deram-lhe as costas: Vai ser leso assim na China, desgraçado!
Morava sozinho, preparava sua própria comida, arrumava a casa, ajeitava tudo.
Entre a escola e o lar vivia ele, quando uma paquera que queria namorá-lo,
resolveu abrir mão dele: não suportava aquela felicidade todo dia e o dia todo.
Rejeitado para lá, achincalhado para lá, se alguém precisasse dele, estava ali
prontinho para servir. Alguém chorasse, dava o que tivesse nos bolsos, a roupa
do couro, o teto, a mesa, o que tivesse. No primeiro emprego, assim que começou
todos achavam tão divertido: Você é leso? Não, sou feliz. Dizia ele, sempre
fora feliz, chovesse canivetes ou fizesse Sol de rachar tudo. Acontecesse o que
fosse, sempre às gargalhadas. Não havia tempo ruim pra ele. Fosse piada ou
apenas um oi, de risota pras cascalhadas, folgado todo. As suas gaitadas
incomodavam a muitos que o tacharam logo de cínico, ele nem aí. Outros tantos o
odiavam, sempre sereno. Ô Risadinha, vai ver se estou lá na esquina! Ele ia todo
folgazão, na maior. Diziam desaforos na cara dele, ele nem nem. Armavam de
tudo: Quero ver esse traste lascado! Culpavam-no por tudo que acontecesse: Isso
é um azarão desgraçado! E ele com a cara mais jocosa do mundo, como se nada
tivesse acontecido. Ameaçavam: Vou encarcar nesse fidapeste, quero vê-lo
motejar, vá! Tire esse cinismo da cara, vá! Ué? Você tem sangue de barata é? Foi
aí que chegou o tempo que todo mundo queria encrencar com ele: Larga de ser abestalhado,
cara! Deixa pra lá, isso é uma toupeira de tão idiota. Até o delegado invocou-se
mesmo e prendeu-lo por desacato: Enquadra esse meliante por desacato, estava
mangando da minha cara! Um escrachado sem-vergonha. Você é um dissimulado! Sou não,
senhor. Lascaí nesse apenado: palhaço! Quero ver ele sair da cadeia nem tão
cedo. Passava um gritava: Cadê o cômico? Outro: Burlesco fi-duma-égua! Ele era
só risonho, ninguém entendia que ele era só feliz. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
Todos os rios levam ao mistério. Do Aar ao Zweitt. Do Orinoco ao
Deseado, passando pelo Oiapoque e pelo Chuí. Do Negro ao Branco. Do Madeira ao
Prata. Do Grande ao Chico, o das Antas, o das Velhas, o dos Macacos, o das
Mortes. O rio da vida, senhoras e senhores. Segurem-se até passarmos as
pororocas. Aqui o Amazonas recebe as águas do seu maior afluente, o Atlântico. Aqui
o Nilo muda de nome e vira Mediterrâneo. Por esta boca o Mississipi expeliu
Cuba, Porto Rico e todas as ilhas das Caraíbas. Aqui termina o Tejo e começa o
mundo, uma obra de Camões. Aqui começa o nosso tour. Rio acima. Observem como,
de onde estamos, vemos passar as margens de ambos os lados... engano, somos nós
que passamos. Protejam a cabeça do sol e meditem sobre a finitude humana. Será
servido um lanche antes de passarmos a fábrica de celulose, porque depois
ninguém conseguirá comer. À esquerda, uma usina nuclear. Vejam os peixes
fosforescentes. Vejam os banhistas fosforescentes. Não ponham a mão na água se
não quiserem perdê-la. À direita, boiando, alguns mendigos. Prisioneiros de mãos
amarradas. Vários fetos. Sapatos. Urinóis. Pneus. Sinais de civilização. Uma nota
pessoal, senhoras e senhores. Aquela casa na margem direita é minha. Tinha um
coqueiro do lado que, coitado, de saudade, já morreu, e o videoshop do outro
lado, claro, é novo. Aquela é a minha família, e aquele menino com água pela
cintura, abanando para nós, sou eu. Mas isto também já passou. Rio acima! O garoto
abandonado naquele barco é Huckleberry Finn. Abanem, abanem, aquela figura que
acaba de mergulhar no rio do galho de uma árvore é Tarzan. Vejam como um jacaré
se aproxima. Os dois se engalfinham. Não se preocupem, Tarzan vencerá. Na margem
direita, um lobo e um cordeiro conversando. Da margem esquerda, João Guimarães
Rosa contempla a terceira margem. O bebê flutuando dentro da cesta é Moisés. Estamos
no Rubicão! Porcaria, pois não? Vocês notarão que muitos rios históricos não
merecem o nome que têm. O Danúbio, veremos mais adiante, não é azul. O Vermelho
é marrom. O Amarelo é cinzento. O Mekong é vermelho de tanto sangue. Rio acima.
Estamos no Tâmisa. Agora no Avon. Aquele ali na margem, pensativo, é
Shakespeare. Vejam, no meio do rio, rodeada de flores, mantida à tona pelas
suas vestes infladas, a doce Ofélia. Abanem, abanem. Eu não disse que este tour
tinha de tudo? Agora preparem suas câmaras. Aí vem, na sua barcaça imperial,
Cleópatra descendo o Nilo. Rio acima. Estamos no Reno, no Yang-tze, no São
Francisco, no Tigre, no Eufrates, no Volga, no Jordão. Aquela cena vocês
realmente vão querer fotografar, João Batista batizando Jesus. Estamos no
Ganges. Onde os vivos despejam os seus mortos e depois se lavam. O rio é sempre
o mesmo e nunca é o mesmo. A água que purifica é a mesma que recebe o esgoto
ácido. A água que mata a sede é a mesma que afoga, a que passa e não passa. O rio
é a Portela. À direita, Paulinho da Viola. Aquela cabecinha de nadador ali é a
do Mao. Galhos, troncos, casas, gado, canoas, viradas, quatro com timão e sem
timão – e uma fábrica inteira rebocada do Japão! As águas começam a ficar
lodosas. As grandes árvores se tocam sobre o rio. Estamos no Congo, a caminho
do coração das trevas. Da fonte obscura de tudo. Mistah Kurtz, he dead. O cheiro
azedo limo e fósseis. O horror, o horror. O mar está longe, chegamos à nossa
vertente. E a origem de tudo não é mistério, é um buraco no chão. Há outros
rios debaixo destes, e é para lá que vamos um dia. Rio abaixo. A gorjeta é
voluntaria, obrigado.
Rio acima, extraído da obra Novas comédias da vida privada: 123 crônicas escolhidas (L&PM,
1996), do escritor, cartunista, tradutor, roteirista e autor teatral Luís
Fernando Veríssimo. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE JEFF KNECHT
A arte do artista estadunidense Jeff Knecht.
AGENDA:
Velório Poético 2018 – ação
cultural idealizada pelo artista Sílvio
Hansen, com recital de poesia,
artes plásticas e performances – Sexta, dia 02, das 17 às 18hs, Rua da União,
88 – Boa Vista – Jardim Interno do MAMAM & muiro mais na Agenda aqui.
&
O que sou de todas as coisas, Lima Barreto, Lampião & Luís da Câmara Cascudo, Geni
Guimarães, A Praieira em Água Preta, Michel
de Certeau, Luci Giard e Pierre Mayol, Pintando na Praça & Biblioteca
Fenelon Barreto, Almeida Prado, Viviane Hagner, Hans-Joachim Koellreuter & Ophélie Gaillard aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio
Tataritaritatá a
música do compositor e professor belga Jean
Absil
(1893-1974): Brazilian Raphsody for Orchestra, Suite for Guitar, Symphony 2 e 4
& muito mais nos mais de 2 milhões & 800 mil acessos ao blog & nos 35 Anos
de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui.