quinta-feira, novembro 01, 2018

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, JEAN ABSIL, JEFF KNECHT, VELÓRIO POÉTICO & RISADINHA


A FELICIDADE INCOMODA – Imagem: Laughter, do artista estadunidense Jeff Knecht - Risadinha ria à toa, até no nome: Zé Riso – nome que a mãe lhe dera logo ao nascer: Esse menino já nasceu sorrindo. Para os pais era uma desgraça, mas ele mudou a sorte de todos ali, não fosse algum tempo depois consumidos pelas labaredas do canavial. De vera a criança era uma simpatia, mesmo órfão, sem parentes nem aderentes, nunca fizera questão por nada. Adorava brincar e se o enrolavam, ele ria; se tomavam seu brinquedo, brincava de outro jeito na maior alegria; e brincava com todos, até ninguém querer mais nada com ele, cheios da sua hilaridade. Sempre animado na vida, lá estava ele adolescente numa sala de aula. Uma professora inchada não foi com a sua cara: Está mangando do quê? Nada. Deixe de ser debochado com essa cara lisa! Mas professora... Mas nada, de castigo. Palmatórias, ajoelhado em milhos secos, face para a parede. E lá ia ele todo contente no fim da aula, assobiando. Isso quando não era suspenso pela reincidência e findar expulso duma vez por todas, abrigando-se noutra escola. A injustiça causou revolta na turma: O que deu da professora perseguir Risadinha? Isso se repetia de sala em sala, onde fosse estudar. Com o tempo, os colegas deram-lhe as costas: Vai ser leso assim na China, desgraçado! Morava sozinho, preparava sua própria comida, arrumava a casa, ajeitava tudo. Entre a escola e o lar vivia ele, quando uma paquera que queria namorá-lo, resolveu abrir mão dele: não suportava aquela felicidade todo dia e o dia todo. Rejeitado para lá, achincalhado para lá, se alguém precisasse dele, estava ali prontinho para servir. Alguém chorasse, dava o que tivesse nos bolsos, a roupa do couro, o teto, a mesa, o que tivesse. No primeiro emprego, assim que começou todos achavam tão divertido: Você é leso? Não, sou feliz. Dizia ele, sempre fora feliz, chovesse canivetes ou fizesse Sol de rachar tudo. Acontecesse o que fosse, sempre às gargalhadas. Não havia tempo ruim pra ele. Fosse piada ou apenas um oi, de risota pras cascalhadas, folgado todo. As suas gaitadas incomodavam a muitos que o tacharam logo de cínico, ele nem aí. Outros tantos o odiavam, sempre sereno. Ô Risadinha, vai ver se estou lá na esquina! Ele ia todo folgazão, na maior. Diziam desaforos na cara dele, ele nem nem. Armavam de tudo: Quero ver esse traste lascado! Culpavam-no por tudo que acontecesse: Isso é um azarão desgraçado! E ele com a cara mais jocosa do mundo, como se nada tivesse acontecido. Ameaçavam: Vou encarcar nesse fidapeste, quero vê-lo motejar, vá! Tire esse cinismo da cara, vá! Ué? Você tem sangue de barata é? Foi aí que chegou o tempo que todo mundo queria encrencar com ele: Larga de ser abestalhado, cara! Deixa pra lá, isso é uma toupeira de tão idiota. Até o delegado invocou-se mesmo e prendeu-lo por desacato: Enquadra esse meliante por desacato, estava mangando da minha cara! Um escrachado sem-vergonha. Você é um dissimulado! Sou não, senhor. Lascaí nesse apenado: palhaço! Quero ver ele sair da cadeia nem tão cedo. Passava um gritava: Cadê o cômico? Outro: Burlesco fi-duma-égua! Ele era só risonho, ninguém entendia que ele era só feliz. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
Todos os rios levam ao mistério. Do Aar ao Zweitt. Do Orinoco ao Deseado, passando pelo Oiapoque e pelo Chuí. Do Negro ao Branco. Do Madeira ao Prata. Do Grande ao Chico, o das Antas, o das Velhas, o dos Macacos, o das Mortes. O rio da vida, senhoras e senhores. Segurem-se até passarmos as pororocas. Aqui o Amazonas recebe as águas do seu maior afluente, o Atlântico. Aqui o Nilo muda de nome e vira Mediterrâneo. Por esta boca o Mississipi expeliu Cuba, Porto Rico e todas as ilhas das Caraíbas. Aqui termina o Tejo e começa o mundo, uma obra de Camões. Aqui começa o nosso tour. Rio acima. Observem como, de onde estamos, vemos passar as margens de ambos os lados... engano, somos nós que passamos. Protejam a cabeça do sol e meditem sobre a finitude humana. Será servido um lanche antes de passarmos a fábrica de celulose, porque depois ninguém conseguirá comer. À esquerda, uma usina nuclear. Vejam os peixes fosforescentes. Vejam os banhistas fosforescentes. Não ponham a mão na água se não quiserem perdê-la. À direita, boiando, alguns mendigos. Prisioneiros de mãos amarradas. Vários fetos. Sapatos. Urinóis. Pneus. Sinais de civilização. Uma nota pessoal, senhoras e senhores. Aquela casa na margem direita é minha. Tinha um coqueiro do lado que, coitado, de saudade, já morreu, e o videoshop do outro lado, claro, é novo. Aquela é a minha família, e aquele menino com água pela cintura, abanando para nós, sou eu. Mas isto também já passou. Rio acima! O garoto abandonado naquele barco é Huckleberry Finn. Abanem, abanem, aquela figura que acaba de mergulhar no rio do galho de uma árvore é Tarzan. Vejam como um jacaré se aproxima. Os dois se engalfinham. Não se preocupem, Tarzan vencerá. Na margem direita, um lobo e um cordeiro conversando. Da margem esquerda, João Guimarães Rosa contempla a terceira margem. O bebê flutuando dentro da cesta é Moisés. Estamos no Rubicão! Porcaria, pois não? Vocês notarão que muitos rios históricos não merecem o nome que têm. O Danúbio, veremos mais adiante, não é azul. O Vermelho é marrom. O Amarelo é cinzento. O Mekong é vermelho de tanto sangue. Rio acima. Estamos no Tâmisa. Agora no Avon. Aquele ali na margem, pensativo, é Shakespeare. Vejam, no meio do rio, rodeada de flores, mantida à tona pelas suas vestes infladas, a doce Ofélia. Abanem, abanem. Eu não disse que este tour tinha de tudo? Agora preparem suas câmaras. Aí vem, na sua barcaça imperial, Cleópatra descendo o Nilo. Rio acima. Estamos no Reno, no Yang-tze, no São Francisco, no Tigre, no Eufrates, no Volga, no Jordão. Aquela cena vocês realmente vão querer fotografar, João Batista batizando Jesus. Estamos no Ganges. Onde os vivos despejam os seus mortos e depois se lavam. O rio é sempre o mesmo e nunca é o mesmo. A água que purifica é a mesma que recebe o esgoto ácido. A água que mata a sede é a mesma que afoga, a que passa e não passa. O rio é a Portela. À direita, Paulinho da Viola. Aquela cabecinha de nadador ali é a do Mao. Galhos, troncos, casas, gado, canoas, viradas, quatro com timão e sem timão – e uma fábrica inteira rebocada do Japão! As águas começam a ficar lodosas. As grandes árvores se tocam sobre o rio. Estamos no Congo, a caminho do coração das trevas. Da fonte obscura de tudo. Mistah Kurtz, he dead. O cheiro azedo limo e fósseis. O horror, o horror. O mar está longe, chegamos à nossa vertente. E a origem de tudo não é mistério, é um buraco no chão. Há outros rios debaixo destes, e é para lá que vamos um dia. Rio abaixo. A gorjeta é voluntaria, obrigado.
Rio acima, extraído da obra Novas comédias da vida privada: 123 crônicas escolhidas (L&PM, 1996), do escritor, cartunista, tradutor, roteirista e autor teatral Luís Fernando Veríssimo. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

A ARTE DE JEFF KNECHT
A arte do artista estadunidense Jeff Knecht.

AGENDA:
Velório Poético 2018 – ação cultural idealizada pelo artista Sílvio Hansen, com recital de poesia, artes plásticas e performances – Sexta, dia 02, das 17 às 18hs, Rua da União, 88 – Boa Vista – Jardim Interno do MAMAM & muiro mais na Agenda aqui.
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O que sou de todas as coisas, Lima Barreto, Lampião & Luís da Câmara Cascudo, Geni Guimarães, A Praieira em Água Preta, Michel de Certeau, Luci Giard e Pierre Mayol, Pintando na Praça & Biblioteca Fenelon Barreto, Almeida Prado, Viviane Hagner, Hans-Joachim Koellreuter & Ophélie Gaillard aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio Tataritaritatá a música do compositor e professor belga Jean Absil (1893-1974): Brazilian Raphsody for Orchestra, Suite for Guitar, Symphony 2 e 4 & muito mais nos mais de 2 milhões & 800 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui.