O TESTAMENTO DO
DOUTOR ZÉ GULU – Imagem: arte do
artista cubano Wifredo Lam
(1902-1982). - O doutor Zé Gulu andara sumido por bastante tempo de quase ninguém
reconhecê-lo nem mesmo se lembrar mais dele. Contudo, com os resultados do
primeiro turno eleitoral, o homem reapareceu azoadíssimo e todo afoito: Num
pode! Num pode! Era outro completamente diferente: Que danado foi que dele
nele? Para quem conheceu aquela sapiência tranquila de pessoa, imperturbável e
aquiescente de sempre, vê-lo agora inheto tagarela, nervoso de berrar com todos
os pulmões e de não parar quieto a cuspir desaforos aos discordantes, isso
deixou muita gente boquiaberta. Só se via ele agora às carreiras a distribuir panfletos
e às conversas com a sua aflição sobre países que ninguém nunca tinha nem ouvido
falar e de coisas do fim do mundo, e ele reiterando a todos o movimento
crescente nos USA, na França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Hungria. Itália,
Polônia, Áustria e se estendendo de forma global atualmente – os que ouviam,
entreolhavam-se com cara de e eu com isso e ele no maior teitei -, reiterando a
produção em escala industrial de neoconservadores reacionários e ególatras com
sua agenda moralista e antidemocrática – ele disparava seu discurso carregado
de fôlego e a plateia entendendo nada: Do que mesmo ele tá falando, hem? -, e arriando
a lenha naqueles que ele chamava de revestidos de um nazifacismo raivoso de intransigentes
extremistas que vivem do passado nostálgico da força pelo autoritarismo com sua
base econômica tradicional e intolerância das ideologias de ódio, sobrecarregadas
de preconceito e discriminação para tornar o mundo ameaçador e caótico. Isso não
pode jamais! – quem ouvia só balançava a cabeça em tom afirmativo para não
vê-lo decepcionado e como forma de respeito pela erudição daquele que era o
maior intelectual da cidade, mas entender de mesmo, ninguém estava sequer
sabendo que droga era nove que ele esbravejava. Se normalmente ninguém sequer
compreendia nada do que ele falasse, imagine agora ele afobado metralhando blablablás
ininteligíveis – Esse hômi tá falando grego, é? -, diziam uns aos outros ao
vê-lo às gesticulações de aperreio, tentando explicar a situação atual e o
perigo iminente que se encontrava prestes a contaminar a todos no segundo
turno. Chegava aos extremos com ternura expondo exemplos históricos desde a
antiguidade até o momento atual, repetindo com a fúria dos profetas, casos e
situações adversas que culminaram com desastres e atrasos para a humanidade –
os assistentes com seus olhos esbugalhados assistiam a sua performance,
cochichando entre eles: Será que ele se autoendoideceu? Menino, parece mesmo
que autoenlouqueceu-se mesmo! Por causa dessa sua militância, ele não mais
dormia nem se alimentava, atravessava a noite pelo dia, num corpo a corpo
engajado em reverter o quadro em que se encontravam os índices eleitorais, de
tão adverso que achava para um hecatombe sem precedentes, não poupando em
gastar saliva com as explicações aos mínimos detalhes ao primeiro transeunte
que encontrasse e bastava o ouvinte perguntar alguma coisa que não tinha nada a
ver com a falação dele, ele reexplicava tudo de quase chorar e pedir pelo amor
de Deus que não se sufragasse numa desgraça que botaria tudo a perder, findando
aos choros e a pedir solidariedade a todos. Foram quinze dias de penosa
obstinação em dizer a cada um dos munícipes a gravidade da situação, dele emagrecer
tanto de quase ficar irreconhecível faquir tão afônico de inaudível a definhar
com gestos mórbidos, olhos fundos, raquítico das costas ocas, prestes a
desaparecer com a primeira ventania de primavera: Esse vai morrer de doideira
mesmo, comentavam. Só conseguiu parar para comer e descansar quando fecharam os
portões dos locais de votação no domingo, dele quase nem conseguir chegar à
mesa e cair agonizante, de só acordar dez dias depois dos resultados. Ao despertar
assustado, saiu à rua ainda convalescente famélico a perguntar agoniado a um e
a outro o resultado do segundo turno. Ao tomar ciência da primeira resposta,
não acreditou e insistiu na pergunta a quem passasse: Não é possível, não é
possível! Isso não pode ter acontecido! Uma tragédia! Não pode! Ainda foi visto
noite adentro a desaparecer entre as sombras da madrugada e só retornar ao lar três
dias depois, para arrumar as coisas dentro de casa e tacar fogo em tudo, sumindo
para, novamente, nunca mais vê-lo. Tudo naquela casa, os montes de livros,
materiais de pesquisa, instrumentos musicais, móveis e utensílios, tudo
reduzido às cinzas. No muro uma inscrição agarranchada: meu testamento. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS:
Tens um gosto de tormenta nos lábios
— Mas por onde andaste
O dia todo em duro devaneio a pedra e mar
Um vento portador de águias descalvou as colinas
Raspou até o osso teu desejo
E as meninas dos teus olhos tomaram o bastão à Quimera
Pautando com espumas a memória!
Onde a ladeira familiar de um breve setembro
De rubra terra em que a brincar olhavas lá embaixo
Os densos ramalhetes de outras moças
As quinas onde os teus amigos depunham braçadas de abrótano.
— Mas por onde andaste
A noite toda em duro devaneio a pedra e mar
Eu te dizia que contasses dentro da água despida seus dias luminosos
Que de costas gozasses a alvorada das coisas
Ou que voltasses a correr campos de jalde
Com uma luz trifoliada em teu peito de iâmbica heroína.
Tens um gosto de tormenta nos lábios
E uma veste vermelha como sangue
Bem fundo no ouro do verão
E aroma de jacintos
— Mas por onde andaste
Ao desceres às praias às baías com seu chão de calhaus
Havia ali algas marinhas frias e salinas
Porém mais fundo ainda um sentimento humano que sangrava
E com surpresa abriste os braços dizendo o nome teu
Enquanto ascendias ligeira até a limpidez do fundo
Onde brilhava a tua estrela do mar.
Ouve, a palavra é a prudência dos últimos
E o tempo frenético escultor dos homens
E alto paira o sol fero da esperança
E tu mais perto dele estreitas um amor
Que tem nos lábios um gosto amargo de tormenta.
Não há por que contares, azul até o osso, com outro verão
Com os rios mudarem de curso
E levar-te à mãe deles
Para que possas outra vez beijar as cerejeiras
Ou cavalgar o vento noroeste
De pé nas rochas sem amanhã nem ontem
Sobre o perigo das rochas cabelos na tormenta
Irás dizer adeus ao teu enigma.
Poema Marinha das rochas, do poeta grego e
Prêmio Nobel de Literatura de 1979, Odysséas Elýtis (1911-1996).
A ARTE DE WIFREDO LAM
A arte do artista cubano Wifredo Lam (1902-1982).
AGENDA:
Coletivo Literarte, 17/11,
das 14 às 20hs, no TUC – Travessa Nestor de Castro – Centro – Curitiba – PR &
muiro mais na Agenda aqui.
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Aos vivos que restam dos mortos, George Bernard Shaw, Ismael Nery, Odette Aslan, O Trem
de Bonito, Paulo Dantas Saldanha, As sucatas de Ana Tatit & Maria Silvia Monteiro
Machado, Lia Vieira, Maurício
Melo Júnior, Poesia Revista, Márcio Montarroyos, Ana Rucner, Roberto Szidon & Natalia Gutman aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
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música da cantora, compositora e
instrumentista Joyce Moreno: Cool,
Tardes Cariocas, Bossa Nova no Cena Musical & Ao vivo & muito mais nos
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de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
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