O ESPELHO DE
JOÃODITO - Arte do pintor português Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918). - Por muito
tempo o espelho ficou virado pra parede. As mortes da casa haviam se ocupado
disso. Dessa vez, pela primeira vez em anos, Joãodito o colocou no lugar devido
e fitou-se, limpando a superfície, contemplando a moldura. Há quanto tempo não
vira seu semblante, quase nem se reconhecia ali. Viu-se ali refletido e
entressorriu. Fitou-se por um logo tempo até percerber que sua feição começara
a mudar. Como pode? Assustou-se, distanciando-se. Que coisa! Arrepiou-se dos
pés à cabeça, não era ele ali refletido, as feições mudavam de instante a
instante. Não conseguia acreditar no que via. Apanhou de uma toalha e o cobriu.
E passou a noite sem conseguir conciliar o sono, olhos no teto, luz acesa. Criou
coragem, tocou o interruptor e desligou a lâmpada do quarto, podia ser que na
escuridão adormecesse. Pelo contrário, ouvia ruídos nunca percebidos, pisadas,
chiados, movimentações sutis dentro e fora do ambiente. Cadê coragem de se
levantar para uma apurada investigação a respeito. Ficara deitado, atento a
tudo. Assim, o dia amanheceu finalmente, tudo às claras, saiu para conferir dentro
de casa, tudo no devido lugar, o espelho coberto pela toalha. Aliviado com o
que constatara e pelo resto do dia ocupou-se com os seus afazeres, embora aquelas
imagens não lhe saíssem da mente. Comprou, vendeu, passou troco, negou,
assentiu, coisas do cotidiano. A cada sim e não, uma pancada forte no coração. Deu
conta das escolhas inconscientes cometidas a todo instante. Tomou água, ia para
o escritório e não foi, resolveu voltar e sair dobrando a direita e ao se dar
conta, retornou, devia ter virado à esquerda. Não, melhor meditar enquanto não
fazia nada que tivesse que optar, apenas sentar e pensar. O dia entrou pela
tarde e só pensava chegar em casa e encarar tudo de novo. Ao anoitecer,
retornou para o lar e foi diretamente ao espelho. Hesitou. Hoje não. E foi
deitar-se, sem pregar os olhos. Três dias seguidos e se arrependia, preferia
tentar dormir, tantas noites em claro não lhe fariam bem. Decidiu-se, enfim, removeu
a toalha e ficou fitando sua imagem refletida por longo tempo. Estava disposto
a isso, determinado. Não vacilaria dessa vez. Então, depois de um longo tempo,
olhar fime, uma luz começou a brilhar no interior e a tomar conta de toda
superfície do espelho. Transformou-se lentamente em uma lua, inicialmente
diminuta, até tornar-se gigantesca dentro da moldura. Dentro da esfera lunar as
coisas se distorciam como um eco interminável. Viu-se duplicado no centro das
imagens, a si e o outro sendo ele mesmo, consumidos por chamas dentro de um
palácio de cristal que emergia de dentro do satélite. Surgiu um Aleph que
girava no meio das transformações e passou a reviver ali toda a sua vida por
instantâneas visualizações expressas da infância, a família, os momentos, a
escola, as festas, a bicicleta, a adolescência, o namoro, sandices, ignominias,
tentações, tudo misturado atemporalmente, coisas vividas e revistas
desordenadamente. No meio do caleidoscópio foi aparecendo lá do fundo uma vela
com uma aura forte e multicor na chama a se transformar em movimentadas
ebulições. De repente, um vulto insinua-se, não sabe ao certo, algo próximo de
uma monstruosidade. Afastou-se e conseguiu identificar a Medusa que lhe falou
com uma voz rouca tonitruante: Não tema, você já é de pedra, a sua indiferença,
a sua insensibilidade, o seu egoísmo, já me apoderei de você, ser petrificado e
desprezível, não me escapará. Estou avisando: você não me escapará. E sumiu no
negrume feito para reluzir sua própria efigie escurecida. Não, não era ele. Era
Narciso e pode ver quantas vezes se fizera de si em nome da vaidade, do
orgulho, da soberba. O que fiz da minha vida? Negou-se a si e a tudo. Como poderia?
Não havia como se salvar e chorou a sua sorte, perdido no tempo e no espaço.
Sentia-se pronto, não mais vivo, apenas presente e humano, era tudo ilusão, a
vida pelos poros. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] O cônego
explicava que o homem, ao infligir aos perversos o suplício das chamas, que
dura apenas um momento, não faz senão conformar-se à lei de Deus, que os condena
ao mesmo castigo, só que para sempre [...] Quando afinal Joana falou, o que lhe saiu dos lábios foi uma torrente
de torpezas e obscenidades que sabiam ao mesmo tempo a esgoto e a Bíblia. O Rei
(de Münster – Cidade de Deus) não fora jamais para a velha hussita senão um
indigente a quem se concedia comer na cozinha e que ousou dormir com a mulher
do patrão [...] Tais males, no
entanto, nada mais eram do que a antecipação de uma calamidade infinitamente
mais terrível. Vinda do Oriente, a peste entrara na Alemanha pela Boêmia.
Viajava sem pressa, ao som dos sinos, como uma imperatriz. Debruçada sobre o copo
do beberrão, soprando a vela do sábio recolhido entre seus livros, ajudando o
sacerdote na missa, escondida como uma pulga sob a blusa da prostituta, a peste
trazia à vida de todos um fator de insolente igualdade, um acre e perigoso
fermento de aventura [...] Sua mulher
era igualmente culpada, mas, como se considerasse indecente que uma criatura do
belo sexo ficasse dependurada em pleno céu com as saias drapejando sobre a
cabeça dos transeuntes, decidiu-se pelo antigo costume de enterrá-la viva. Essa
brutal estupidez horrorizou Zênon, que, aliás, disfarçou a repulsa por detrás
de uma impassível máscara facial, pois tinha por regra jamais deixar
transparecer seus sentimentos relativamente a tudo o que se referisse às
disputas entre o Missal e a Bíblia [...] A rigor, quase a contragosto, esse peregrino ao fim de um percurso de mais
de meio século obrigava-se pela primeira vez n a vida a recompor em pensamentos
os caminhos palmilhados [...] empenhando-se
em fazer a escolha entre o pouco que parecia advir de si e o que pertencia ao
acervo comum da sua condição humana [...].
Trechos extraídos de A
obra em negro (Nova Fronteira, 1981), da escritora francesa Marguerite Yourcenar
(1903-1987). Veja mais aqui e aqui.
A ARTEDE AMADEO DE SOUZA CARDOSO
A arte do
pintor portugues Amadeo de Souza Cardoso
(1887-1918).
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