CARTA INÚTIL – Imagem: arte da artista grega Eugenia Loli - Sempre o que pensei de mim
era quase nada diante da imensidão do universo e do que há por trás das menores
coisas: do horizonte ao céu sem fim a inacessível compreensão, por trás do
mínimo grão de areia há muito mais invisível, eu sei. Das lições, a de Pessoa -
a tabacaria de Álvaro -, o apelo de Drummond, os ocos de Eliot e por aí vai,
muitas. Não servi a nenhuma religião, outra é a minha fé. Fui apenas batizado
sem ninguém me consultar, crianças seguem à vontade dos pais. Até simpatizei os
quakers, o zen-budismo, o taoísmo, contudo prevaleceu minha raiz caeté e me fiz
pela espiritualidade: o Todo sou eu e tudo. Comecei a trabalhar cedo, logo
aprendi responsabilidades e fugia de todas elas, até ser capturado em nome da
moral e dos bons costumes que nunca aceitei. Adolescente, não servi às forças
armadas, pudera, um franzino batoré não possuía estatura para se enquadrar nos
moldes exigidos e jamais conseguiria sustentar o peso de uma bandeira
patriótica no meio do maior negrume: fui reservado por não atender às
exigências e excesso de contingente. Das leituras me vi no labirinto das
palavras, não sabia sequer o que falava, a escrita seduzia e queria aprender:
não era pro meu bico, quem não teimoso. Meus estudos nunca serviram para nada, as
paralelas seguem Letras, Pedagogia, Direito, Psicologia, ciências, artes, quanta
seriedade, ideias e perfumarias, múltiplos tentáculos para muita coisa, tudo
balela que se amontoou na cachola. Na educação optaram pela privada e fizeram
disso a pública: aprender a negociar, o resto é letra morta. No direito, nunca
consegui dispor do interesse de dois senhores, lá e loa, e só há justiça na
decisão de escolher o menor prejuízo. A psicologia tem teste pra tudo, o que
importa é cuidar da doença, nunca a saúde. Vi-me completamente inútil, aliás, o
cúmulo da inutilidade: o mercado é a lei. E eu: não! Na minha ascese, por anos
me imolava na inquebrantável vontade de ser alguém na vida e só consegui ser talqualmente
isolado no hospício de Van Gogh e no exílio voluntário de Rimbaud. Na verdade, tornei-me
um proscrito e o que fiz tudo de apócrifo. Quando olho pra trás, um rol
interminável de experiências e mais nada. Outras tantas coisas aprendi e guardo
comigo, só valem mesmo pra mim. O que fiz do amor? Cultivei o que sempre senti –
ser-me todo coração -, tanto sofria como fui feliz de nem saber as dores e
tormentos que causei. O que fiz da amizade? Tantos amigos ao longo da jornada,
hoje apenas lembranças e solidão. O que fiz da vida? O futuro no instante de
agora e nunca mais. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] aquela graciosa figura que sobressaía das outras mulheres, como se ela
fosse uma fidalga menina de paço,
ali encontrada, não sabia por que espécie de acontecimento. Até o vestido era
diferente. Enquanto tôdas as outras usavam saias de algodão e corpetes soltos,
também de algodão, Margarida estava
com uma linda blusa de sêda, e uma saia de chamalote. Além disso, trazia jóias, brincos, colares e o cabelo
louro penteado irrepreensivelmente. Parecia injusto ver, na mesma
fazenda, uma tão chocante regalia de luxo. [...] enquanto falava as cunhadas a olhavam com interesse e uma espécie de
ternura, como se fosse o orgulho de todas. [...] Eu não sou filha de minha mãe no sacrifício. Vá vosmecê escarafunchar
na cozinha, no quintal e aí por fora, que há de ver nosso sangue misturado aos
desses macacos. [...] Vosmecê não se impressione mal com Rosália.
Tem língua solta, foi mal educada e mimada por todas nós. Eu lhe deveria ter,
como mana velha, aplicado a palmatória, mas nem Mãe Cândida a corrige. E o
resultado é este: uma menina sem modos, dizendo toda espécie de
inconveniências. Eu lhe peço Cristina. Não dê trela para suas conversas e, como
pessoa mais velha, a censure e a corrija quando for oportuno. [...] Leonel olhou atentamente Isabel, naquela sua
mistura de mulher e de homem. Os pés sujos de pó, calçavam grosseiras
sandálias. As mãos estavam cheias de terra, na ponta das unhas. E, no entanto,
o rosto de Isabel, com fiapos de cabelo arrebentado caindo pela testa, era o de
uma criança pálida e talvez doente [...] Doença de mulher é coisa que não conta. Quantas vezes eu já me senti
indisposta? Só que não bambeei como desta. Tive força e acompanhei vosmecê. Mas isso não vai se repetir.
[...] Triste amor – se é que aquilo
pudesse ter um nome assim bendito. Sempre Cristina ouvira falar em almas que se
compreendiam, quando se desentendiam os corpos. Ali mesmo, naquela terra tão
nova, não conhecera já tantos casos em que as mulheres abnegadamente criavam os
filhos de seus maridos – os filhos da depravação ou da lonjura dos matos? Esses
eram o casamento das almas. E o seu? Haveria então outra história igual a sua?
[...] Pela manhã, moradores do arraial
chegavam, medrosos, às proximidades do capão de mato. À noite ainda ouviram
gemidos, uns débeis gemidos, mas agora se via – estavam todos mortos. Mulheres
se abraçavam aos maridos e tinham crises violentas de choro. Um habitante teve
tanta emoção, que saiu a correr, endoidecido, ao ver aquêle amontoado da
monstruosa matança. [...].
Trechos
extraídos da obra A muralha (José
Olympio, 1956), da escritora Dinah
Silveira de Queiroz (1911-1982). Veja mais aqui e aqui.
A ARTE DE EUGENIA LOLI
A arte da artista grega Eugenia Loli.
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O qaue é isso o
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