terça-feira, novembro 06, 2018

SOPHIA DE MELLO BREYNER, ANITA MALFATTI, LÍGIA MORENO & COLÓQUIO TEORIA DA HISTÓRIA


A RUA DAS VIÚVAS – Anita Malfatti (1889-1964). - Nada mais sombria paisagem do que aquela quase rua mal iluminada e tão estreita de parecer um beco sem saída, mais vai dar noutros tantos acessos de avenidas e estrada afora com seus murmúrios baixinhos e sussurros espremidos, pela qual quantas Atalantas haviam perdido a soberba da juventude de princesas, tão altivas beldades de rejeitarem pretendentes por serem consagradas a Ártemis, a grande deusa lunar rebelde das florestas e animais selvagens, libertárias e independentes, e tão capazes de competir em verdade com todos os Hermes de então, agora viúvas trancadas da vida. Elas que então se esquivavam dos assédios como até hoje, jovens robustas a brincar de bem-me-quer e malmequer com as pétalas de rosas, até a chegada do sapo próspero príncipe de reinados e posses na engalanada festa de véus e grinaldas na matriz, chuva de arroz e presentes dos padrinhos e convidados, para nas núpcias se entregarem aos seus maridos escolhidos a dedo e com eles correrem com a leveza dos deuses a se comprazerem enredados nas teias das paixões violentas, a ponto de se esquecerem da gratidão devedora à Afrodite. Essa ingratidão dita como sempre o destino dos infelizes por provocar a fúria da deusa e dela emanam castigos de toda sorte. Não sabiam sequer do esquecimento e hoje pagam todas órfãs do dia a esperarem a qualquer momento pelas maçãs dos Hipomenes, colhidas do Jardim das Hespéridas ou da Discórdia ou da Árvore do Conhecimento no Jardim do Éden, ou mesmo as presenteadas com o perdão de Afrodite. Desoladas, refugiam-se em rezas de joelhos na sua solidão ou no culto do templo mais próximo, em orações muitas de todos os arrependimentos e culpas. E choram desconsoladas não mais Esqueneu para repudiá-las ao nascimento e abandoná-las nas montanhas, até se arrepender e trazê-las do Monte Partênio para o lar e, diligentemente, protegê-las das ruínas e libertar suas almas apenas pros bons partidos. Não mais noites de boas conversas ou mesmo de algumas contrariedades alimentadas pelos desentendimentos inerentes a qualquer casal, não mais pés para esquentar no frio os seus embaixo do cobertor, nem finais de semana aos passeios, nem filhos prometidos, muito menos promessas de paz na velhice. Todas as noites ali elas se deitam solitárias com seus sofrimentos, padecem de quantas angústias, fobias, medos e depressões que povoam do crepúsculo à aurora sua clausura, quando não se valem da maldição da Mulher da Sombrinha ou daquelas que saem de suas lápides para enfeitiçarem os notívagos às portas do cemitério ou nas esquinas movimentadas acenando ao primeiro passante a gentileza de pagar ou não um momento de prazer nos escuros dos quartos. Ninguém me vira por Hesíodo naquela via da Arcádia e meus olhos de Higino flagraram aquela via da Beócia, todas elas, inclusive aquelas que também são viúvas de maridos vivos - sobreviventes reféns das safras canavieiras em todo o território brasileiro. Pra elas minha solidária emoção de estrelas que alumiam o caminho a seguir. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS:
Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina. Os japoneses têm um grande amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho. Assim, o povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e bem formada. E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens perfumadas. Assim foi durante várias gerações. Mas, com o passar do tempo, surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem, ninguém era capaz de arranjar uma boa solução. Porque, ao longo dos anos, a árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da ilha ficava sempre à sombra. De maneira que metade das casas, das ruas, das hortas e dos jardins nunca apanhava sol. E, na metade ensombrada, as casas estavam a ficar úmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava sempre pálida e constipada. E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia também a perturbação. As pessoas gemiam: — Que havemos de fazer? Que havemos de fazer? Até que foi decidido a população reunir-se toda em conselho para examinar bem o problema e decidir o remédio que devia dar-lhe. Discutiram durante muitos dias e, depois de todos terem falado, chegou-se à triste conclusão de que era preciso cortar a árvore. Houve choros, lamentações, gemidos. A árvore era bela, antiga e venerável. Fazê-la desaparecer era um ato que não só entristecia os habitantes da ilha mas que também os assustava. Mas não havia outro remédio e quase todos acabaram por concordar com o corte. No lugar onde antes ela se erguia, plantaram um pequeno bosque de cerejeiras, pois as cerejeiras nunca crescem muito. Abater a árvore foi difícil e toda a gente teve de ajudar. Mas, depois de cortada, ela ocupava tanto espaço que a ilha ficou quase sem lugar para mais nada. Por isso começaram a desfazê-la: primeiro cortaram os ramos e as pernadas e a sua madeira foi distribuída entre todos, para que cada um pudesse fabricar alguma coisa que lhe lembrasse a árvore tão amada. Alguns fabricaram pequenas mesas, outros, varandas para as suas casas, outros, caixilhos para os biombos, outros, caixas, tabuleiros, tigelas, colheres, pentes e ganchos para as mulheres espetarem no cabelo. No fim ficou só o enorme e grosso tronco nu, deitado através da ilha. Então começaram a chegar viajantes e armadores que queriam aquela ótima madeira para fabricar barcos. Mas a população não quis. Reuniram todos outra vez em conselho e decretaram: — Os habitantes desta ilha não querem separar-se da sua árvore que, antes de crescer demais, lhes deu tanta alegria. Vamos nós próprios construir o nosso barco. E assim foi. Depois da chuva do Outono, deixaram o tronco secar durante longos meses e, logo que viram que a madeira já estava bem seca, meteram mãos à obra. E, como são um povo muito inteligente, os japoneses, que trabalham muito bem, muito depressa, com muito esmero e são ótimos carpinteiros, construíram rapidamente uma grande e linda barca toda esculpida e pintada de muitas cores. Então houve uma grande festa e a barca foi lançada ao mar. À noite houve fogo de vista e em todas as ruas e praças se acenderam balões de papel, azuis, amarelos e vermelhos. Daí em diante a vida do povo daquela terra passou a ter uma vida muito mais animada e variada e quase todos se tornaram muito mais ricos. Antes, como a ilha era tão pequena, os seus habitantes só possuíam pequenos barcos de pesca e só podiam navegar até às ilhas vizinhas. Quando alguém precisava de ir mais longe tinha que arranjar um lugar em certos barcos maiores que de vez em quando por ali passavam. Agora tudo tinha mudado. Agora, graças à grande barca, navegavam constantemente de ilha em ilha davam grandes passeios pelo mar e faziam ótimos negócios. Às vezes nas noites calmas de Verão ou de Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até ao largo ver a lua cheia sobre o mar. Ou então rondavam a ilha junto à costa, até ao extremo sul, para irem ali admirar os recortes negros dos rochedos sobre a claridade clara e azulada do luar. Depois, no Inverno seguinte comentavam estes passeios, comparavam tudo o que tinham visto, discutiam qual fora a mais bela noite, a mais bela paisagem. Entretanto, à medida que o tempo ia passando, as cerejeiras que tinham plantado iam crescendo e embelezando. Por isso a gente da ilha passou a celebrar, todos os anos, a festa da cerejeira em flor. Quando acabava o Inverno e começava a surgir a Primavera tudo se animava. Os pedreiros, os tanoeiros e os carpinteiros vinham trabalhar para o ar livre e riam e cantavam enquanto esculpiam, serravam, martelavam. Havia grande azáfama e pelas ruas passavam pessoas muito apressadas: iam a correr às lojas de tecidos comprar kimonos de Primavera para vestirem quando chegasse o dia em que já pudessem ir admirar o primeiro desabrochar das flores. E nas ruas, nos jardins, nos campos, os marmeleiros, as macieiras, as cerejeiras já estavam carregadas de botões fechados. No centro da povoação aparecia então o macaco amestrado, vestido com um casaquinho azul e acompanhado pelo seu dono. E em redor juntavam-se as crianças e adultos para admirarem as habilidades do animal sábio. E as crianças ficavam mudas de espanto quando aparecia um grande leão de papel que vinha pela rua fora num andar baloiçado, acompanhado por dois homens vestidos com kimonos amarelos. Passavam por todas as ruas e por fim paravam debaixo dos ramos das cerejeiras. Então os homens do kimono amarelo começavam a rufar os tambores e o leão começava a dançar. E um dos homens cantava: Já dança o leão / Debaixo da cerejeira / Ao som dos tambores / O seu bailar faz abrir / Mais depressa as flores. E, no dia seguinte, nos ramos das cerejeiras, as pequenas flores cor de rosa estavam todas abertas. Assim, durante muitos anos, a vida naquela ilha correu com muita alegria e animação. Mas apesar dessa alegria, apesar dos bons negócios e dos grandes passeios, todos se lembravam com saudade da velha árvore. — Como era alta e bela! — diziam. — Como a sua sombra era perfumada! — Como era doce e leve o sussurrar da brisa nas suas folhas! — Como a sua copa era redonda e bem formada! — Como as suas folhas eram verdes e bem desenhadas! — Como era tão suave a frescura debaixo dos seus ramos, nas manhãs de Verão! E, assim, entre palavras e pensamentos, a árvore nunca era esquecida. E os anos foram passando. Até que os marinheiros e os calafates descobriram que estava a acontecer uma grande desgraça: A madeira da quilha da grande barca tinha começado a apodrecer. — Ai de nós! — choravam os habitantes. — Não vamos dar mais passeios pelo mar. Nas noites de lua cheia, não vamos visitar mais as outras ilhas, não vamos fazer mais negócios. Mas os comerciantes sossegaram-nos. — Durante estes anos — disseram eles — graças à nossa grande barca, andámos a navegar de ilha em ilha, de porto em porto, a comprar e a vender, e fizemos negócios tão bons que juntamos muito dinheiro. Por isso, como aqui não há outra árvore enorme, e as árvores que agora temos fazem muita falta se forem cortadas, estamos dispostos a ir às outras ilhas comprar boa madeira. E todos juntos podemos construir outra grande barca. A população aplaudiu o discurso e concordou com o projecto e daí a poucos meses a barca nova ficou pronta e logo a puseram a flutuar. Então, a barca velha foi arrastada para a praia. O povo cercou-a em silêncio com grande tristeza, e os carpinteiros e os calafates examinaram-na tábua por tábua. A madeira do casco, do convés e dos bancos estava quase toda semiapodrecida e só servia para queimar. Mas o mastro grande, que tinha sido tirado do cerne da velha árvore, continuava são e bem conservado. — Temos que fazer com este mastro alguma coisa que nos lembre a nossa árvore antiga e a nossa barca — disse o chefe da ilha. Depois de muito pensar resolveram fazer uma biwa, que é uma espécie de guitarra japonesa. Quando a obra ficou pronta, a população reuniu-se na praça principal e sentaram-se em silêncio em redor do melhor músico da ilha para ouvirem o som da biwa. Mas, mal os dedos do músico fizeram soar as cordas, de dentro da biwa ergueu-se uma voz que cantou: A árvore antiga / Que cantou na brisa / Tornou-se cantiga. Então, todos compreenderam que a memória da árvore nunca mais se perderia, nunca mais deixaria de os proteger, porque os poemas passam de geração em geração e são fiéis ao seu povo.
Conto A árvore (Figueirinhas, 1987), da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE ANITA MALFATTI
Anita Malfatti (1889-1964). Veja mais aqui, aqui e aqui.

AGENDA:
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