quarta-feira, novembro 07, 2018

LIMA BARRETO, GUILHERME RIPPER, ELENA ZOLOTNITSKY, VALE DO UNA & FESTIVAL EM LIBRAS


VALE DO UNA - Imagem da série Extinct, da artista russa Elena Zolotnitsky. - Finquei os pés no chão de Palmares – minha terra, meu torrão. Timbunguei no Velho Una e me danei rumo Oeste não sei para onde, no meio da Mata Meridional. Deixei calunga e cheleleu, fiz pernoite em Xexéu depois voltei atrás, estava todo errado, desencontrado como sempre, se não sabia lá pra onde ia, seguia pra Belém de Maria e lá me livrei das rezadeiras findando por Batateiras do outro lado do mundo. Fui feito carrapeta, rodando todo arraial pra chegar em Maraial e ir direto pro Sul esquisito pelas mãos de São Benedito até ficar aflito, pronde mesmo que eu queria ir, hem? Não sei, seguia. Ah, me livrei do revestrés nas esquinas de Caetés, tinha cotoco pirrototinho enfiado no terreiro de Canhotinho, eu mais que perdidinho num medonho panapaná que esvoaçava em Quipapá, levado pelo vento que suspira nas terras de Cupira. Foi então que fiz então canção pra ela na boca da noitinha de Panelas, descansar a carcaça e as mazelas pra de manhã chupar muita manga e mangaba na Barra de Guabiraba e, depois de acertos e erros, dei de cara com Bezerros e fui me arranchar. Onde mesmo é que estou, não sei mesmo. Por não ser nada taful, olhei pro céu azul, oxe, isso aqui é Caruaru, danou-se tudo: o mundo de cabeça pra baixo! Ou tudo endoidou comigo. Andejo que só fulano, descobri o que é ter tutano encarando a vida em São Caetano, onde dei voltas sem fim. Já que nada mais me vinha na poeira, só o aconchego em Cachoeira era pra me redimir, pra levar o maior catabi de quase rolar todo em Jucati e ficar sabendo: o fim do mundo não é aqui, depois que é Jupi, lá do beiço virado, longe que só. Foi então que perdi o verbo e o poema, estava só em Jurema juntando os trapos defronte, ainda ontem eu vi enfim São Joaquim do Monte quando arrastava o solado pelo oitão de Calçado e me vi só todo acabrunhado: é que não era confeito nem jujuba, ali é Ibirajuba, pro outro lado o chão de Tacaimbó. Mas o melhor mesmo foi que uma forrozeira dançando xote em Pesqueira me fez seguir apertado até no osso, a me danar por Venturoso e cair morto porque o pencó estava solto na calçada de Sanharó. Perdi-me de tanto gritarem: Febrento! Isso aqui é São Bento. Vixe! Tô pior que toupeira! Aí cheguei na maior carreira na nascente de Capoeiras – eita o Una miudinho, nascendo e seguindo sua rota pra minha terra. Segui firme o meu caminho pela estrada de Altinho e amanheci com a estrela matutina nos céus de Agrestina. Dali pela estrada de Camocim de São Félix eu saí do meu agito ao me deparar com Bonito, depois desvendei todo segredo, tomei rumo pra Lagedo e fui danado pra Catende com vontade de chegar. Fiz a volta na carreira pra bater lá em Jaqueira, tirei a poeira dos sapatos quase perto de Lagoa dos Gatos, rasguei estrada de quase levar um tombo, logo fui acolhido em Pombos, eita! Me assuntei do azarão, era então Vitória de Santo Antão e soube: não tem mais lobisomem ou boitatá nos domínios de Glória do Goitá. Não dei moleza a pacutia, segui pra Chã de Alegria, voltei tal qual errante por Chã Grande, foi ali que me vi na praça de Amaraji, oxente, não sabia nem que eu era nos arredores de Primavera, só fiquei de alma lavada pelas ruas de Escada. Aí sem jumento e sem pedrês no acesso de Cortês, abri o peito e o coração caminhando por Ribeirão. Lá longe a maior gemedeira, uma volta que dei em Gameleira, de não sobrar garrucha nem trabuco, era só Joaquim Nabuco, até um boi fazer careta num cercado de Água Preta. Aí fiquei o tempo todo de mutuca com a cacunda em Ipojuca, não tinha nada nem vintém, pisando firme em Sirinhaém, tinha que ficar jeitoso, afinal era Rio Formoso e o que é que é? Era a praia de Tamandaré, bêbado de volapuque e noigrandes na praia de São José da Coroa Grande, aprumando no lajeiro pra singrar lá por Barreiros, enfim errando de tudo antes que a vida puna arriar ao mar na Várzea do Una. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava. O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara. Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo. Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade. A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. [...] E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança... O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso. Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos. Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos. A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico. Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade! Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles! [...] Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico. A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado. Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse. O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa era possível. À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados—toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. [...] evolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta... A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..." De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existencia. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro. Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito—ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
Trechos do conto A nova Califórnia, extraído da obra Clara dos Anjos (Mérito, 1948), do escritor Lima Barreto (1881-1922). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

A ARTE DE ELENA ZOLOTNITSKY
A arte da artista russa Elena Zolotnitsky.

AGENDA:
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