O XOTE NO AUTO
DE NATAL – Desde o início do ano passado que Jesus vinha
numa embalagem só: solitário, ignorado, triste, endividado. Não lhe sobrara
nada dos últimos anos, só a roupa do couro e uma mão na frente, outra atrás.
Tanto trabalhara, correra e se ocupara, tanto fizera para superar as
dificuldades, não conseguira: ninguém para estender-lhe a mão, antes portas
fechadas. Era noite de natal, mais uma vez sozinho, não tinha nada para fazer
nem para onde ir. Mesmo assim, resolveu caminhar. Deparou-se com a encenação de
um Auto do Presépio e ficou ali entretido com a representação, emocionando-se
com a história, a ponto de algumas lágrimas escorrerem por suas faces. Ao final
constatara: um Jesus tal como ele, também sofrera revezes. Saiu, então,
enchendo as ruas de pernas, quando tropeçou num cotoco de craíba. Ao invés de
maldizer daquilo, tomou às mãos e seguiu seu caminho. Teve uma ideia: com
aquele graveto ia fazer a sua própria árvore. E pensou: não era um pinheiro,
mas dava bem pra fazer de contas. Nada mais tinha para tal e ficou pensando
como fazer o que pretendia. Aí juntou umas metralhas com barro e fez a base.
Com alguns retalhos começou a revestir e a dar forma ao seu intento. Ao seu
modo, ficou uma beleza de árvore de natal e ficou contemplando. Nem dera por
conta da aproximação de uma bela mulher, muito formosa e elegante que disse: - Não
se entristeça, veja como foi feliz quando criança. – Quem é você? Sou Clotilde,
a Mulher da Sombrinha, aquela que traz de volta o seu passado. Aprenda e refaça
o seu presente. Disse-lhe isso e desapareceu. Realmente, quando criança fora
muito feliz com seus pais, agora não mais, órfão no mundo, sem ter com quem
dividir seus momentos de existência. Revivendo suas belas imagens da infância e
juventude com sua família, percebeu a presença de um besouro zunindo ao seu
redor. Agoniado com a presença daquele indesejável inseto, logo tentou
espantá-lo para longe, quando ficou maravilhado ao perceber que se transformara
numa linda mulher que lhe falou: - O passado construiu o presente. O futuro se
faz agora. – Quem é você? Sou Coatilicue, o seu presente e que me conhece como
Cumade Fulôzinha, acompanho sua vida como o besouro Mãe do Sol. Dito isto, ela
novamente se transformou no besouro e saiu voando. Ele, então, ficou consigo
pensando como construir o futuro agora, já que não tinha nada nem sabia por
onde começar. Já estava se aborrecendo com a sua falta de sorte, sua
incompetência, sua completa falta de senso para mudar sua vida noutra diferente,
quando surgiu uma terceira mulher, muito mais bonita e mais alta que as demais,
com um vestido branco que iluminava prateado e transparente, mostrand0-lhe as
suas sedutoras formas, sem que jamais distinguisse suas faces cobertas com seus
negros e longos cabelos. - Quem é você? -, perguntou-lhe. – Sou a Uiara do Una,
a Mãe d’Água, Iemanjá, o seu futuro e morte. Os olhos dele quase pulavam fora
diante de tanta formosura, temendo ter um troço diante de ser tão majestoso e
bater as botas na hora. – Quer fazer um futuro diferente? Sim, evidente que
quero, mas como fazer? Comece sorrindo e ofereça essa rústica árvore que você
mesmo construiu a uma criança que encontrar, logo saberá como construir o
futuro no presente. Dito isto, ela sumiu da mesma forma que aparecera. Ele
olhou dos lados, tomou a sua criação entre as mãos e à primeira criança que
encontrou ele a oferecera. E quando viu o lindo riso da criança, ele sentiu
pela primeira vez na vida que nada seria mais valioso. Aquele sorriso fora a
motivação que precisava para fazer muitas outras árvores com cotocos de craíbas,
metralhas e retalhos e, com isso, pode fazer muitas crianças felizes. E com a
felicidade delas ele aprendeu a verdade e, a partir de então, nunca mais se
vira sozinho nem triste nem desolado, estava ele feliz na noite de natal, ao
embalo de um trio pé-de-serra no maior trupé, e quando olhou direito, cada uma
daquelas mulheres estava disfarçada de músicos, cada uma na sanfona, no triângulo
e na zabumba, o xote da trindade natalina. © Luiz Alberto Machado. Veja mais
aqui.
Curtindo o Box Ernesto Narzareth (Laranjeiras Records, 2016 - 12 cds) com a obra
completa do pianista e compositor Ernesto
Nazareth (1863-1934), na interpretação da pianista Maria Teresa Madeira. Veja mais aqui.
Veja mais sobre:
Renascendo das cinzas na véspera de natal, Goethe, Federico Fellini, Zygmunt Bauman, Harvey Spencer Lewis, Ana Maria Machado, Olivia
Byington, Yuri Krotov, Nikolaj Wilhelm Marstrand, Da Priapeia, Clara Redig & Maria Eduarda Rodrigues aqui.
E mais:
Crônica natalina, John
Keats, Lampedusa, Gregório
de Matos Guerra, Betinho, Chet Baker, Paulo Cesar Sandler, Franco
Zeffirelli, Willy Kessels, Hans Makart & Teatro Renascentista aqui.
&
DESTAQUE: CONTO DE NATAL DE RUBEM BRAGA
Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou
alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame
farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis
anos.
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca.
Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar
deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se
zangado:
— Porcaria...
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o
moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O
homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos
um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí...
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela
foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme
barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui...
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para
cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna
direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de
cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca o homem
ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado
de suor.
— Péra aí...
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de
quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e
sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os
lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa
para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam
faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que
não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
— Não...
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando
começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher...
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme.
Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus...
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados
de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e
relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da
várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a
cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito...
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se
arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que
tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia
tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene
para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas
velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido.
O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava
embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe
adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente
riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério
que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os
dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente
voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava
comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê...
— Uai! Péra aí...
O menino Jesus Cristo estava morto.
Conto de Natal (Nós e o Natal – AGGS, 1964),
do escritor Rubem Braga
(1913-1990). Veja mais aqui, aqui e aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte
do pintor dinamarquês Wilhelm Marstrand
(1810-1873)
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra:
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.