sábado, dezembro 24, 2016

RUBEM BRAGA, ERNESTO NAZARETH & TERESA MADEIRA, PERRON, WILHELM MARSTRAND & XOTE DE NATAL


O XOTE NO AUTO DE NATAL – Desde o início do ano passado que Jesus vinha numa embalagem só: solitário, ignorado, triste, endividado. Não lhe sobrara nada dos últimos anos, só a roupa do couro e uma mão na frente, outra atrás. Tanto trabalhara, correra e se ocupara, tanto fizera para superar as dificuldades, não conseguira: ninguém para estender-lhe a mão, antes portas fechadas. Era noite de natal, mais uma vez sozinho, não tinha nada para fazer nem para onde ir. Mesmo assim, resolveu caminhar. Deparou-se com a encenação de um Auto do Presépio e ficou ali entretido com a representação, emocionando-se com a história, a ponto de algumas lágrimas escorrerem por suas faces. Ao final constatara: um Jesus tal como ele, também sofrera revezes. Saiu, então, enchendo as ruas de pernas, quando tropeçou num cotoco de craíba. Ao invés de maldizer daquilo, tomou às mãos e seguiu seu caminho. Teve uma ideia: com aquele graveto ia fazer a sua própria árvore. E pensou: não era um pinheiro, mas dava bem pra fazer de contas. Nada mais tinha para tal e ficou pensando como fazer o que pretendia. Aí juntou umas metralhas com barro e fez a base. Com alguns retalhos começou a revestir e a dar forma ao seu intento. Ao seu modo, ficou uma beleza de árvore de natal e ficou contemplando. Nem dera por conta da aproximação de uma bela mulher, muito formosa e elegante que disse: - Não se entristeça, veja como foi feliz quando criança. – Quem é você? Sou Clotilde, a Mulher da Sombrinha, aquela que traz de volta o seu passado. Aprenda e refaça o seu presente. Disse-lhe isso e desapareceu. Realmente, quando criança fora muito feliz com seus pais, agora não mais, órfão no mundo, sem ter com quem dividir seus momentos de existência. Revivendo suas belas imagens da infância e juventude com sua família, percebeu a presença de um besouro zunindo ao seu redor. Agoniado com a presença daquele indesejável inseto, logo tentou espantá-lo para longe, quando ficou maravilhado ao perceber que se transformara numa linda mulher que lhe falou: - O passado construiu o presente. O futuro se faz agora. – Quem é você? Sou Coatilicue, o seu presente e que me conhece como Cumade Fulôzinha, acompanho sua vida como o besouro Mãe do Sol. Dito isto, ela novamente se transformou no besouro e saiu voando. Ele, então, ficou consigo pensando como construir o futuro agora, já que não tinha nada nem sabia por onde começar. Já estava se aborrecendo com a sua falta de sorte, sua incompetência, sua completa falta de senso para mudar sua vida noutra diferente, quando surgiu uma terceira mulher, muito mais bonita e mais alta que as demais, com um vestido branco que iluminava prateado e transparente, mostrand0-lhe as suas sedutoras formas, sem que jamais distinguisse suas faces cobertas com seus negros e longos cabelos. - Quem é você? -, perguntou-lhe. – Sou a Uiara do Una, a Mãe d’Água, Iemanjá, o seu futuro e morte. Os olhos dele quase pulavam fora diante de tanta formosura, temendo ter um troço diante de ser tão majestoso e bater as botas na hora. – Quer fazer um futuro diferente? Sim, evidente que quero, mas como fazer? Comece sorrindo e ofereça essa rústica árvore que você mesmo construiu a uma criança que encontrar, logo saberá como construir o futuro no presente. Dito isto, ela sumiu da mesma forma que aparecera. Ele olhou dos lados, tomou a sua criação entre as mãos e à primeira criança que encontrou ele a oferecera. E quando viu o lindo riso da criança, ele sentiu pela primeira vez na vida que nada seria mais valioso. Aquele sorriso fora a motivação que precisava para fazer muitas outras árvores com cotocos de craíbas, metralhas e retalhos e, com isso, pode fazer muitas crianças felizes. E com a felicidade delas ele aprendeu a verdade e, a partir de então, nunca mais se vira sozinho nem triste nem desolado, estava ele feliz na noite de natal, ao embalo de um trio pé-de-serra no maior trupé, e quando olhou direito, cada uma daquelas mulheres estava disfarçada de músicos, cada uma na sanfona, no triângulo e na zabumba, o xote da trindade natalina. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui

 Curtindo o Box Ernesto Narzareth (Laranjeiras Records, 2016 - 12 cds) com a obra completa do pianista e compositor Ernesto Nazareth (1863-1934), na interpretação da pianista Maria Teresa Madeira. Veja mais aqui.

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Renascendo das cinzas na véspera de natal, Goethe, Federico Fellini, Zygmunt Bauman, Harvey Spencer Lewis, Ana Maria Machado, Olivia Byington, Yuri Krotov, Nikolaj Wilhelm Marstrand, Da Priapeia, Clara Redig & Maria Eduarda Rodrigues aqui.


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DESTAQUE: CONTO DE NATAL DE RUBEM BRAGA
Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
— Porcaria...
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí...
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui...
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
— Péra aí...
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
— Não...
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher...
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus...
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito...
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê...
— Uai! Péra aí...
O menino Jesus Cristo estava morto.
Conto de Natal (Nós e o Natal – AGGS, 1964), do escritor Rubem Braga (1913-1990). Veja mais aqui, aqui e aqui.

CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte do pintor dinamarquês Wilhelm Marstrand (1810-1873)
Veja aqui e aqui.

CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na Terra: 
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.
Veja  aqui e aqui.