A CARTOMANTE
& O MAGO – Noite ádvena dos momentos mais impróprios, ela me apareceu
do mais improvável. Não sabia nem quem era e me serviu com um sorriso de afeto.
Dá licença? À vontade. Sentou-se mais familiar que gentil a me contar do quanto
precisava falar comigo. Nunca vira quem mais simpática e me deixei levar. Na segunda
dose já nos identificávamos como conhecidos de décadas, às risadas pelas
coincidências. Na terceira, já estávamos confidentes: segredando coisas de
arrepiar qualquer ouvinte. Na quarta, nos tornamos mãos bobas, alisados e ôpas às
desculpas pelo descuido ou adiantamento. Bateu de cara, acertou em cheio. Nada mais
côncavo no encontro convexo das afinidades, encaixante. Mais três ou quatro,
sei lá, perdi a conta, hora de ir embora. Vamos? Prazer. Nos despedimos, porém
saímos juntos e pelo corredor, porta afora, rua a nos levar. Moro aqui. E um
convite, a saideira. Fui de cabeça pro desconhecido. Chave à porta, adentramos.
Luz acesa pro mistério: convidou-me à mesa ilustrada pelos quatro naipes do
Tarô e logo dei de cara com a inscrição hermética “Assim como embaixo é em
cima” inscrita ao longo da toalha. Duas taças, vinho branco, seco. Tlin,
tlin! E me apontou no centro da parede The Magician: Olha você ali! Eu? Nesta
parede reproduções de Chagall. Muitas. Ao lado do quadro central estava Les mariés de la Tour Eiffel, entre outras
ilustrações eróticas do pintor e, ornando o ambiente, caramanchões,
lírios e rosas. Gostou? Aconchegante. No lado esquerdo da porta, uma pequena
estátua do Le Captif de Michelângelo e várias outras miniaturas de
estátuas femininas eróticas distribuídas em prateleiras nas demais paredes.
Parei a vista numa pequena estante que me aguçou a curiosidade. Levantei-me e
fui até lá: clássicos da literatura erótica, desde Safo a poemas de Hilda
Hilst, Drummond, Henry Miller, Bataille. Aprecio. Também gosto, a certidão das
coisas que mutuamente nos apraziam. Voltei a sentar-me folheando Afrodite
de Isabel Allende, nunca tinha lido. Tem mais. Eu sei. Quer conversar? Sim? Não
precisa falar, Le Bateleur, sei que você é um labirinto de contradições e, por
isso mesmo, quero o encantamento das suas múltiplas facetas. Como assim? Aí ela
mostrou-se mais misteriosa: Isto é um encontro com o insólito! Hein? E que fora
convidada para ser acolhida por mim com muito prazer para o espetáculo cósmico.
Então, levantou-se e sumiu. Ao retornar, trouxe-me uma túnica de variegadas
cores vibrantes: É pra você! E fez questão de arrodear a mesa e se aproximar:
Dá licença? Aquiesci. E fez-me levantar. E me desnudou para vesti-la. Vi-me um
estranho comigo mesmo. E, depois, colocou sobre minha cabeça um chapéu com duas
elipses unidas por uma grande corcova e que mais parecia a Lemniscata de
Bernoulli, com a curva do sinal vermelho da aba, como um oito deitado de lado
com o símbolo chinês Tai Chi no centro – a interação de yin e yang. Afastou-se,
conferiu-me e fez um sinal: nos trinques! Disse-me: Gigantescos óculos das
lentes que não são cor-de-rosa, essa a sua coroa. Vejo agora a cabeça da
Medusa! Quem? Começou a falar dando-me a impressão de que me ligava ao seu
antepassado e que eu era Hermes, o deus das revelações. Eu? E veio com um papo
sobre o processo alquímico dos poderes mágicos de Mercúrio, pedindo-me para
ensiná-la. Queria que eu fizesse ritos místicos para que eu a levasse ao mundo
transcendental. Nem me mexia. Pensei: Será que ela é louca? Nem deu tempo
pensar direito e já foi me dizendo que eu era um viajante amadurecido e
pediu-me demonstrações. De quê? E interrogou-me: quais eram os meus planos para
ela. Dei de ombros e ela já foi logo dizendo que estava disposta a ser minha
cúmplice e a colaborar com a minha missão. Sabia-me um profissional sério, um
artista dedicado: Você é o trunfo número 1! O quê? E ajoelhou-se diante de mim,
mãos postas sobre minha virilha sob a túnica: Oh, Mago de Marselha, dá-me a
moeda de ouro escondida na outra mão! Suas mãos são o momento fugaz da criação
que nunca para! Aí meteu as mãos por baixo da túnica, alcançando meu pênis e o segurou
com a mão esquerda, como se fosse a sua varinha mágica. Ao apalpá-lo começou a
dizer em voz alta, impostada: La flûte
enchantée de Chagall, a realizadora de todos os prodígios! E
começou a felar enquanto entre uma abocanhada e outra ronronava: “Benditos
são os que saciam a fome e a sede”. E segurando- o como se fosse um
microfone entoou: É esta a batuta que me conduzirá! E estou pronta para minha
cooperação consciente, porque sou afeiçoada por aquele que me levará ao pódio.
Este o dedo indicador da Criação de Michelangelo di Buonarroti Simoni!
Ofereço-lhe a abóbada palatina da minha Capela Sistina. Levou tempo e o delírio
da sua dedicação não me deixou saber o que fazer. Completamente extasiada e
tomada pelo entorpecimento de seu ato, levantou-se e começou a se despir como
se orasse: Venha, meu maestro, orquestre em mim as energias! Quero transcender
meu ego, venha! Dê-me a água que Moisés tirou da rocha! Quero o líquido
milagroso! Diante da minha estupefação, agarrou-me e fez brandir meu cajado a
gritar: Rasgue-me os véus! Quero a energia inseminadora do Deus de Rodin, a
natureza mais bondosa de Ovídio! Estou tomada pelo sentimento de deveniridade e
quero saber o princípio criativo por trás da diversidade e aprender a como
manipular a natureza, como domesticar a energia e as cerimônias da fertilidade.
Venha, traga-me o Trismegisto e Tot, estou sentindo o ritmo circular do fluir
da água benta. E mais me introduzia no seu ser. E com voz diferente começou a apregoar:
Quero aprender as relações ocultas e a revelação do fundamental. Leve-me para
as profundezas da perfeição com todos os seus opostos e me conduza para a
manjedoura do milagre de Camelot. E enquanto mais remexia com meu membro
enfiado nela, mais delirava: Sinto-me habilitada ao Grande Círculo da Unidade e
A Separação dos Elementos de Goltzius, na dança dos Dervixes Rodopiantes, a coreografia das
revelações. E assim mais se escancarava no seu extase a sentir os calores
alquímicos, a interação dos Vinte e Dois Trunfos, os múltiplos orgasmos da
substância transformadora, a libertar o espírito mercurial aprisionado dentro
de si. E estertorou e mais se debateu, até cair arriada agarrada em mim. Ao meu
ouvido ouvi-lhe os suspiros de que obrei milagre nela criando maya
em seu íntimo com as dez mil coisas e que são uma só. E insistiu sussurrante
que eu era o Mestre da Mão. Eu me deliciava com tudo, mas, cá comigo: Ué,
o mago sou eu ou é você que é bruxa? Por sinal, fugindo dos estereótipos, bem
lindíssima. Mais agarrada em mim e já sonolenta se entregou: A sua tempestade é
maior que a shakespeareana e me lavou. Você é o meu Próspero e liberou a Ariel
que há em mim. Você revelou a minha sombra! Estou em Tao: "Somos da
mesma substância que os sonhos”. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS - A arte não vem do pensar, mas da resposta. Considere tudo um
experimento... A criatividade pertence ao artista que existe em cada um de nós.
Criar significa relacionar-se. A raiz do significado da palavra arte é
“encaixar” e todos nós fazemos isso todos os dias... É um enorme perigo fingir
que coisas terríveis não acontecem. Mas você precisa de esperança suficiente
para continuar. Estou tentando criar esperança. As flores crescem na escuridão...
Pensamento da freira, artista e educadora estadunidense Corita Kent (Frances
Elizabeth Kent, depois conhecida como Irmã Mary Corita Kent – 1918-1986). A
arte era seu ativismo, e através de seu trabalho social e espiritual, promovia
amor e tolerância.
ALGUÉM FALOU:
A floresta está perdendo capacidade de sequestrar carbono porque está
doente... Em 2003 e 2004 a floresta já estava bastante alterada, mas ainda não
tinha chegado próxima ao ponto de não-retorno. Pesquisas recentes mostram que o
ar sobre a porção leste da floresta está mais seco. Isso significa maior
vulnerabilidade ao fogo e maior mortalidade de árvores, portanto menor
capacidade de produzir serviços ambientais para o clima e menor resistência à
mudança climática. A floresta está perdendo capacidade de sequestrar carbono
porque está doente. A cada ano, a estação seca está ficando maior: antes a
chuva começava no final de setembro. Agora, em meados de novembro ainda não
começou a chover em grande parte da Amazônia... Pensamento do agrônomo,
biólogo e ambientalista Antônio Nobre.
LEITURA: A
CRÔNICA NA SALA DE AULA – Na obra O narrador (Brasiliense, 1994), o
filósofo alemão Walter Benjamin expressa: [...] O cronista que narra
os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta
a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido na
história. [...]. Já o escritor Carlos Heitor Cony, no seu artigo A
crônica como gênero e como antijornalismo (Folha de São Paulo. 16 de
outubro de 1998), expressa que: [...] temos a crônica esportiva, a social, a
policial, a política, a econômica. Elas se diferenciam do artigo porque são centradas
num eixo permanente: o “eu‟
do autor. Daí que o gênero é romântico por definição e necessidade [...]. No estudo da
professora Margarida de Souza Neves, Uma escrita do tempo: memória, ordem e
progresso (Unicamp/FCRui Barbosa, 1992), ela considera que: [...] A
crônica, pela própria etimologia − chronus/crônica −, é um gênero colado ao tempo.
Se em sua acepção original, aquela da linhagem dos cronistas coloniais, ela
pretende-se registro ou narração dos fatos e suas circunstâncias em sua ordenação
cronológica, tal como estes pretensamente ocorreram de fato, na virada do
século XIX para o século XX, sem perder seu caráter de narrativa e registro,
incorpora uma qualidade moderna: a do lugar reconhecido à subjetividade do
narrador. [...]. No estudo da professora Ana Cristina Coutinho Viegas,
intitulado Para o início de uma conversa – a crônica na sala de aula (Pensares
em Revista, 2013), consta em suas reflexões que: [...] Constitui papel
fundamental de a escola ampliar e aprofundar a convivência dos alunos com a
variedade e a complexidade dos gêneros textuais, entre os quais se encontram os
gêneros literários. [...] A experiência com o texto literário pode
ocorrer por meio de uma leitura que dá asas à imaginação e envolve
emocionalmente o leitor, uma leitura crítica que possibilita discernir questões
éticas, ideológicas, além de uma leitura capaz de perceber a construção do
texto. Esses diferentes modos de ler podem e devem ser experimentados desde o
Ensino Fundamental, visando à formação de um leitor autônomo. [...] Nesse
caso, destacamos outra faceta do emprego das crônicas como material didático.
No Ensino Fundamental, a preocupação dos professores se concentra na leitura e
em breve caracterização do gênero, visto que as discussões literárias só
aparecem mais formalmente no Ensino Médio. Por outro lado, esses jovens
leitores já possuem um repertório que lhes permite criar suas próprias
crônicas. Para incentivar essa produção, nada melhor do que proporcionar
leitores para essas crônicas que não se restrinjam aos professores. [...] o
principal argumento para se continuar a ensinar literatura na contemporaneidade
é o de que a leitura literária é um direito de todos desde a infância. Ainda
que o aluno não tenha interesse pelos textos literários, negar o contato com
qualquer tipo de representação artístico-literária é privá-lo de exercer sua
humanidade plenamente. E as crônicas, esses pequenos textos aparentemente
despretensiosos, podem cumprir papel de grande relevância para esse exercício.
[...]. Por fim, o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade esclarece sobre a
crônica que: Crônicas escritas há mais de cem anos estão hoje vivas como
naquele tempo. Os acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu.
Ela surge inesperadamente como um instante de pausa para o leitor fatigado com
a frieza da objetividade jornalística. De extensão limitada, essa pausa se
caracteriza exatamente por ir contra as tendências fundamentais do meio em que
aparece. E se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é
subjetiva e pessoal. Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a
crônica é impressionista e lírica. Veja mais aqui, aqui e aqui,
FILOSOFIA
AFRICANA - [...] Podemos falar em liberdade, quando falamos da
possibilidade do ser humano poder agir sem coerção ou impedimento, poder determinar-se
a si mesmo com base na sua consciência e, acima de tudo, após uma reflexão [...]
O processo da intersubjectivação da filosofia (pensamento) africana passa
necessariamente pela criação de valores e atitudes que levem ao reconhecimento
do outro como um interlocutor válido, como um sujeito com dignidade e
conhecimento [...] precisa desenvolver uma atitude filosófica para com
as tradições no sentido de ver e aprender com que conceitos e referenciais as
tradições em causa constroem a segunda natureza [...] como uma condição
que unicamente o ser humano possui, o de agir livremente. Este agir livremente
significa sempre «consciência da necessidade», isto é, a liberdade de agir na
base do conhecimento que possui sobre as leis que condicionam a sua acção
perante a Natureza, para agir consoante a sua vontade [...] sempre
«consciência da necessidade», isto é, a liberdade de agir na base do
conhecimento que possui sobre as leis que condicionam a sua acção perante a
Natureza (por exemplo a lei da queda livre dos corpos); para agir consoante a
sua fantasia (tempo livre), agir consoante a sua vontade (decisão sem
constrangimentos). [...] Há duas formas ou dimensões principais de
reconhecimento do Outro: trata-se do Outro colectivo, portanto como uma
categoria social, e o Outro individual, portanto como uma categoria ontológica,
enquanto ser humano antes de ser um ser social [...]. Trechos extraídos da
obra Referenciais da Filosofia Africana: em busca da intersubjectivação
(Ndjira. 2010), do filósofo moçambicano José Castiano.
BOSQUES DAS
RENAS - [...] As pessoas devem ser confiadas com suas próprias vidas. As pessoas devem ser
independentes em todos os aspectos. Ninguém deveria possuir nada. A propriedade
deveria ser gratuita como as pessoas. As estradas não devem pertencer a nenhuma
pessoa, para impedir que alguém cobre pedágios dos viajantes. Um padre não deveria
cobrar caro pelas orações. Um lavrador não deveria cobrar caro pelos
frutos da terra. A companhia telefônica não deveria cobrar
caro pelas conversas. Totalmente gratuito, como se o tempo do
feto dentro da mãe continuasse a ser após o seu nascimento [...]. Trecho
extraído da obra Children in Reindeer Woods (Open Letter, 2012), da escritora e dramaturga
islandesa Kristín Ómarsdóttir. Veja mais aqui.
DOIS POEMAS
- POEMA 14 - O amor invalida nosso
reflexo \ para transformá-lo em cúmplice submisso. \ Estupor, desafio antigo, \
humilhação em ambientes encantados \ onde os tocados, os tímidos, os perplexos \
sofrem culpa e sentem o cheiro do paraíso \ Esta ainda é \ uma paz perturbada
pelas lágrimas. \ Este era eu: um \ aluno molhado, aberto e ansioso. \ Devo ser
isso: chorar, enquanto viver. \ Um soluço ereto me levanta, \ me faz caminhar
pelos picos, me encaminha \ para a montanha azul. \ E lá está o sorriso \ como
uma flor silvestre esperando por mim. \ Verei a flor branca e ela será minha, \
minha!, e terei, chorando, de arrancá-la \ do fundo do meu ser, pequena e quente, \ do alto do cume, pura e
branca. \ Meu! E as lágrimas correm pelo meu rosto \ para que eu mereça sua fragrância. PRECE - Não te posso nomear. Não tens nome.
És o que se sente. Nunca o que se explica. Oh meu Amado Absoluto, a quem
descubro agora sem que nenhuma forma o limite! Perdoa-me a antiga reflexão. \ Não
és o que se pensa. És o que se ama. Não és conhecimento, mas apenas
estupefação. Não és o perfil, mas o assombro. Não és a pedra, mas o inaudito.
Não és a razão, mas o amor.\ Pela mão do Anjo, ascendi ao teu encontro, que
nunca é um tesouro concreto, mas continuamente uma descoberta inenarrável. O
Anjo, ao meu lado, também sentiu intensamente, mais intensamente do que nunca,
mais intensamente do que com algo ou alguém, essa visão de imensidão. Como com
ninguém, não porque cada caso é singular, mas porque aquele ato foi mais
profundo do que todos os seus, como se recebêssemos de repente um advento de
infinito.\ E é inútil pensar em te encarnar. És o que nunca se pode encarnar ou
nomear, porque apenas nos fazes juntar as mãos e dobrar os joelhos.\ Deixa-me
sentir-te, oh infinitude, oh zona imensa, dimensão sobre-humana, oh meu Deus,
sempre com a pele deslumbrada a ponto de o corpo se tornar luz! Deixa-me
perplexa, arrebatada, e permite-me vibrar para sempre com a minha palpitante e
íntima pulsação.\ Quisera ser aquela que permanece, atônita, diante de ti. A
que não conhece o teu nome, a que não conhece a tua forma, uma ignorante
estremecida. E que assim seja. Poema da escritora, dramaturga e jornalista venezuelana Ida
Gramcko (1924-1993).
PSICOTERAPIA
& HUMOROUTRAS DICAS