UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO
DOS PRAZERES DE CLARICE LISPECTOR – [...] E ali estava a mulher, de pé,
o mais ininteligível dos seres vivos. [...] Ela tivesse a
intenção de um dia dar-se, pois sabia que teria de dar a alguém o que ela era,
senão o que faria de si? [...] E era isso o que estava lhe faltando: o
mar por dentro como o líquido espesso de um homem. [...] Às vezes de
noite acordava em sobressalto sentindo a falta de Ulisses, como se tivesse
alguma vez dormido com ele. E não conseguia readormecer porque o desejo de ser
possuída por ele vinha forte demais. [...] sabia no entanto que o fato
de desejá-lo tão intensamente não queria dizer ainda que ela avançara. Pois
antes também desejava os seus amantes e não se ligara a nenhum deles. [...]
Então, como tudo ia acabar, em imaginação vívida, pegou a mão livre do homem, e
em imaginação ainda, ao prender essa mão entre as suas, ele doce ardia, ardia,
flamejava. [...] E por enquanto ela não tinha nada a lhe dar, senão o
próprio corpo. Não, nem o próprio corpo: pois com os amantes que tivera,
ela como que apenas emprestava o seu corpo a si própria para o prazer, era só
isso, e mais nada. [...] Foi nesse estado sonho-deslumbre que ela sonhou
vendo que a fruta do mundo era dela. Ou se não era, que acabara de tocá-lo. Era
uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço escuro,
brilhando de uma quase luz no espaço escuro. E que no ar mesmo ela encostava sua
boca na fruta e conseguira mordê-la. [...] Eles se haviam possuído além do que
parecia ser possível e permitido, e no entanto ele e ela estavam inteiros. A
fruta estava inteira, sim, embora dentro da boca sentisse como coisa viva a
comida de terra. Era terra santa porque era a única em que um ser humano podia
ao amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um. [...] Ele se
interrompeu beijando demoradamente sua carne perfumada. E ela de novo caiu na
vertigem que a tomou, e era de novo feliz como um ser pode morrer de
felicidade. E de novo pela quarta vez eles se amaram. [...] Foi um
sobressalto que ela sentiu a mão dele pousar no seu ventre. Não havia nesse
momento sensualidade entre ambos. Embora ela estivesse cheia de maravilhas,
como cheia de estrelas. Ela estendeu então a própria mão e tocou-lhe o sexo que
logo se transformou. REFERÊNCIA: LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem, ou o livro
dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
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