TRÍPTICO DQC: O trâmite da solidão - Ao som de From My Life - String Quartet N.1 in E minor, de Bedrich Smetana. – Cada qual seu
caminho, luzes acesas ou não, chuvadas ou estio, às tacanhices e reificações. Olho
para céu recorrentemente, piso o chão atento às esquinas e a finitude se
desenha nas estrelas inalcançadas e pelas estradas que não sei aonde vão dar.
Persigo na passada a me desprender da redoma do que sou, a ponto de ser-me tão
longe de sequer reconhecer-me. Ouso o impossível com a minha exiguidade, a
ouvir do escritor francês Georges
Bernanos (1888-1948): O acaso assemelha-se a nós. O pobre prefere
um copo de vinho a um pão, porque o estômago da miséria necessita mais de
ilusões que de alimento. Não me basta o que já foi percorrido, por mais andejo
tudo foi muito pouco. O futuro? Ah, melhor diz Nikolai Gogol: A única
coisa que vale a pena é fixar o olhar com mais atenção no presente; o futuro
chegará sozinho, inesperadamente. É tolo quem pensa no futuro antes de pensar
no presente. Quanto mais sublimes forem as verdades mais prudência exige o seu
uso; senão, de um dia para o outro, transformam-se em lugares comuns e as
pessoas nunca mais acreditam nelas. Sim, quantas mentiras que se passam por
verdade, incautos ou estúpidos que se deixam levar. Retomo a caminhada e não haverá nunca camisa-de-força ou limite territorial,
estou com Valery: Há momentos infelizes em que a solidão e o
silêncio se tornam meios de liberdade. E me recrio a cada instante enquanto voo
sozinho.
DOIS: A cena solidária - Ao som das Afinidades
Brasileiras (1985), do
compositor e flautista belga Mathieu-André Reichert (1830-1880),
na interpretação da concertista e flautista francesa Odette Ernest Dias e
da pianista Elza Kazuko Gushikem. – Sozinho, vida aberta, mãos
pelos bolsos, voo pelas calçadas. A noite é longa e deserta. De repente me
deparo com alguém talvez perdido que recita um poema afetuoso a um ouvinte das
ruas, assim me parece. Saúda a minha presença ali e sai por aí aos versos e
cantos. Sigo seus passos pelas praças e periferias a poetar cantante. Há algo
de íntimo de afinidade, como se fosse alguém que veio da caatinga e se tornou
um operário da arte. No arruado da beira do rio me fala do Teatro da Solidão Solidária: método
de inclusão social por meio da arte e da cultura da paz em prol da
solidariedade humana, em suma: um método de mediação de conflitos e inclusão
social através da arte, com a expectativa de protagonizar a interação entre
empresários, pessoas em situação de rua, policiais, ex-presidiários, advogados,
professores, estudantes, assistentes sociais, psicólogos, donas de casa, enfim,
um conjunto plural e diversificado de pessoas. Ou como ele mesmo reitera: Fiz uma imersão nas dores e na desesperança
de crianças, homens e mulheres em situação de rua numa pesquisa que durou dez
anos. E passava dias embaixo das pontes e marquises, esmolando pelos
albergues e recintos hospitaleiros. Ao percorrer o reino dos invisíveis nas
cidades que são minhas e dele: São
dezoito países da Europa, América Latina, além dos Estados Unidos, que vivencio
na prática as dores e a desesperança de pessoas em estado de exclusão extrema,
depois compartilho minha pesquisa com meus alunos de segmentos sociais
diversificados (empresários, advogados, artistas, psicólogos, médicos,
professores e estudantes) para juntos criarmos meios de amenizar as diferenças
e as desigualdades entre todos nós. Dele ouvi canções de Eus... da fúria à ternura (2018) e
poemas do seu Amor
Revolução Silenciosa (Kalango, 2019) e doutras suas
publicações poéticas mobilizando pessoas: para o socialmente mais justo e artisticamente mais pleno. E praticar
o bem, sem olhar a quem. Quem era? O poeta, dramaturgo e compositor Ivan Antônio: A solidão em mim se faz tão companheira desde a minha infância, mesmo
tendo ao meu redor pessoas que tanto amo e que sou amado, sinto uma “solidão do
mundo,” desde cedo, inexplicavelmente ela me acompanha e percorre os mais
submersos cantos da minha alma e a arte, a música tem sido ao longo da minha
existência uma amiga que aponta caminhos e que tornando-se farol pra mim, me
faz entender melhor esse processo de solidão. O interessante é que a mesma
música que me salva da tristeza do sentir-se só, foi motivo de desespero e
desesperança na minha infância (risos) por ser muito desafinado e mesmo assim amar
tanto o “cantar”, o bullying era a festa dos meus amiguinhos na infância e
depois na adolescência. No deserto da madrugada, era hora de voltar, me
despedi e ficamos de nos cruzar em qualquer encruzilhada da vida deste mundão
arrevirado e de porteira escancarada. Na volta para casa, me assustei com a
aproximação de alguém desconhecido. Precavido, quase mudo de calçada. Uma mão
ao meu ombro, temi pelo pior, dei de cara com o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000): O medo sempre foi um mau conselheiro. Na vida, se você quer
entender, realmente entender como são as coisas neste mundo, você tem que
morrer pelo menos uma vez. Para quem já havia morrido duas vezes na vida, uma
terceira morte seria um novo aprendizado para mim.
TRÊS: A Deusa da Lua - Imagens:
a arte do fotógrafo japonês Nobuyoshi
Araki, ao som do Konzert für Streichorchester
und Zheng (2015), do
compositor chinês Tan Dun, com a Frankfurt
Radio Symphony Orchestra, Yuan Li & regência de Julian Kuerti. – Retomei a
caminhada de volta para a casa e percebi
que algo se movia no céu entre as nuvens carregadas. Estava prestes a chover e
algo minimamente brilhante contornava o espaço aéreo. Era um ponto fulgente
que, a cada volta, ampliava suas dimensões e ziguezagueava justamente acima do
trajeto que eu percorria. Havia uma certa aproximação a cada giro, a ponto de
atravessar a rua e pousar próximo na calçada na qual eu seguia. Logo foi se
transformando em uma coisa parecida com uma árvore de cores vermelhas e,
mais se transformando, por fim, tornou-se uma linda mulher de pele macia e
vestido longo transparente com tonalidades de azul e prateado. Saudou-me e me
disse ser Chang. Abraçou-me dizendo:
Espero o meu amado há muito tempo, lá na Lua, sozinha. E contou-me que trouxe
uma porção do elixir da eternidade que a Rainha Mãe do Monte Kunlun lhe dera
para mim. Para mim? Sim, eu mesma tive que ir até ela, atravessando o Rio das
Águas Afogadoras e a Montanha das Chamas Ardentes. Foi ela que me apontou e me
mandou até você. Não beba toda a Poção da Imortalidade, só a metade, senão
ficará condenado a subir ao céu como um imortal. Eu mesma derivei desolada para
a Lua, onde passo o resto dos meus dias em meu palácio solitário, na companhia
apenas do coelho de Jade. Foi a Rainha Mãe quem me indicou você: a minha
salvação e não precisarei mais retornar para lá. Tome. Desconfiado, olhei pros
lados e ela insistente: Tome. E mais se explicou ser a deusa guardiã da Lua e
logo sentou ao meio fio, me puxou deitando minha cabeça sobre seu colo para
contemplar tudo e todas as coisas. Vi-a acenar não sei para quem e riu com meu
ar de interrogação: É o Coelho de Jade que está nos saudando de lá da lua,
retribuí o gesto. E rimos. Acariciou meus cabelos, tateou minhas faces e me
disse Ding Ling: Encontramos a felicidade lutando no meio de uma
tempestade violenta, não tocando alaúde ao luar, ou recitando poesia no meio
das flores. Olhou-me
atentamente, alisou meus lábios e me beijou demoradamente. Depois levou-me a
face aos seios e falou do escritor afegão Khaled
Hosseini: De todas
as dificuldades que uma pessoa tem de enfrentar, a mais sofrida é, sem dúvida,
o simples ato de esperar. E seguir tocando a vida. Porque, no fundo, sabia que
era tudo o que podia fazer. Viver e ter esperanças. E me
beijou novamente por dias e noites sem fim. Acenou para mim de lá da Lua,
jogando-me beijos e fazendo gestos de que vela por mim a todo instante.
Chamei-a e veio, está aqui agora, amém. Até mais ver.
IANDÉ DE LAYZA PEREIRA
Iandé é um projeto desenvolvido pela fotógrafa Layza Pereira, que remete a “nós” e
compartilha saberes ancestrais retratados no cotidiano e vivência da comunidade
indígena Potiguara, da Paraíba. As obras da exposição foram destinadas à
promoção de condições de vida para as famílias da etnia. Veja mais aqui e aqui.