QUEM É ELA DAS 5 ÀS 7 – Ela era Florence, a
menina no quintal da primavera. Quando era verão ela tinha sonhos na brisa onírica,
o espelho a fazer-lhe protagonista para transformar-se em Cléo Victorie. E se
viu como Níkē tes Samothrakes, moldada pelos deuses para ser simplesmente
a deusa Nice nas ruínas do santuário. Bailava pra si como se fosse a Cléo de Mérode,
reinava como se fosse Cleópatra aos egípcios, era como se entoasse Caetano, pronta pra cantar. E sabia: enquanto bonita
viveria para sempre. A beleza estonteante, um misto entre angelical e demoníaco,
envolventemente sedutora a atrair além dos olhares mais cobiçosos e até desavisados.
O talento abundante na voz magnética tocando fundo o coração alheio, o jeito
elegante do canto, os meneios do corpo, o olhar penetrante, as poses da magia
atrativa cativando reféns nos quatro cantos do mundo. Ninguém poderia mais
saber de sua infância e nem de sua adolescência inquieta. Fez-se apenas bela
apagando o passado pra um futuro mais que promissor e agora, o apogeu da glória
e todos aos seus pés. A vida lhe dera a maior das grandezas, redimindo o que
vivera, tudo de mal sucedido ficara apenas pra trás, devidamente enterrado para
nunca mais. O tempo se fez outro: tons e danças, dias e sucesso, glamour e êxito,
tudo dava certo e pra sempre dará. O mundo todo é a plateia a mimá-la com bens
e aplausos, ampliando a consquita por novos espaços e caminhos além das
gratidões. Sabia: quando se cai na graça, tudo só pode dar certo. Há sempre uma
mão pra servir, há sempre quem queira colaborar, há sempre um ombro e nenhuma
dificuldade, todos os entraves são removidos num instante, etapas que apagam os
óbices superados. A vida é um mar aberto, nada a deter. A vitória vira constume
de tão usual, basta estalar o dedo e tudo se transforma. O mundo é feliz e é
para todos, o seu sorriso em todas as direções, o seu olhar para todos os
admiradores, o seu dom além das fronteiras. A vida é magia. Lá se vão décadas,
o espelho é outro, orbitam as cartas da cartomante e não fosse um simples exame
aplacar essa onírica situação, suspeitando-se de doença terminal que aterroriza
sua beleza suprema, que enfrenta seu canto enfeitiçante, que coage seu corpo
sedutor, que ameaça seu jeito cativante, que alarma sua vida vitoriosa. A jovem
falante que lhe diz do futuro, ela se via e era vista. A impaciência e o choro com
Angèle no café e se vê condenada no que de frívola se fez como o chapéu de pele
preto em plena terça-feira, pelo qual será admoestada que não é de bom alvitre.
Observa os olhars e são todos distantes, sabia: amam a deusa, nunca a mulher
porque pode ser vencida por um malefício qualquer. Amam a sedutora artista, a
magnífica cantora, a estonteante fêmea no palco, nunca a que foi vencida ou na
precisão. A que sempre está na predileção, não a que pode ser surpreendida por
infortunios, mas a imagem vitoriosa. O trânsito e a vida giram, insinuam
suicídio. O táxi direto pro ensaio em casa – o rádio a tocar uma de suas músicas
enquanto a guerra retumba na Argélia. Isso causa-lhe enjoo, dificuldades pra
respirar, quase ao desespero. Um beijo apenas e o amor se vai com promessa pra
sexta: Sans toi. Atormentada por ser
apenas explorada como uma marionete no esquema industrial. Melhor sair e dar de
cara com o artista de rua engolindo sapos, uma ficha no jukebox: a sua música,
nenhuma reação dos presentes. Melhor Dorothée expondo-se nua pra escultores. Jamais
se permitiria esta exposição, seria imortalizada acaso fosse a Florence de Botticelli. O passeio de carro pelas ruas de Paris, a cena dos beijos
de Godard & Ana Karina, a morte é só vista pelos óculos escuros, a realidade
é outra: é só tirá-los. O espelho quebrado não quer dizer nada, ora. Apenas um
homem morto no café. O Parc Montsouris: a vida é uma escadaria com declive
interminável. Agora ela vê e não é vista. Lá está Antoine no dia mais longo do
ano, enquanto muitos são mortos por nada na guerra. Ela canta e se sente só. Fugir
para onde não há, agora é como se Corinne Marchand tivesse consciência de si
própria: o cartaz do filme com seu nome e efígie. Sentam-se no banco dos
jardins do hospital, aguardam o resultado da biópsia: a angústia da
enfermidade. Enfim, o medo de morrer desaparece e até pode dizer que está feliz,
aceitou sua mortalidade. Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Você tem que
inventar a vida. Se abrissemos as pessoas para cima, encontraríamos paisagens. A
ferramenta de cada autorretrato é o espelho. Você se vê nele. Transforme-se
para o outro lado, e você vê o mundo. Humor é uma arma tão forte, uma resposta
tão forte. As mulheres têm que fazer piadas sobre si mesmas, rirem sobre si
mesmas, porque elas não têm nada a perder. Pensamento da cineasta,
roteirista, fotógrafa e artista belga Agnès Varda (1928-2019), diretora de
filmes como Cléo de 5 a 7 ‘(1962), Les demoiselles ont eu 25 ans (1988)
e Quelques Veuves de Noirmoutier (2006), entre muitos outros
documentários, curtas e longas. Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: Palavras escritas também podem cantar. A condição das
mulheres numa nação é a medida real do seu progresso. Se a
pobreza fosse vendida hoje por três centavos, não posso comprá-la.
Comigo, é melhor nunca do que tarde... Pensamento do escritor e
dramaturgo queniano Ngũgĩ wa Thiong'o.
VIAJANTE
DO TEMPO – [...] Pois onde está todo amor, falar é desnecessário [...] Não tenha medo. Somos nós dois agora.
[...] Vós sois Sangue do meu Sangue e Osso
dos meus Ossos, Entrego-vos o meu Corpo, para que nós Dois possamos ser Um. Eu lhe dou meu Espírito, até que nossa vida seja concluída. [...] Eu mesmo posso suportar a dor, ele disse suavemente, mas
não poderia suportar a sua. Isso exigiria mais força do que eu
tenho.
[...] Eu tive uma última tentativa. "Incomoda você que eu
não seja virgem?" Ele hesitou por um momento antes de responder.
"Bem, não", disse ele lentamente, "desde que não te incomode o
fato de eu estar." Ele sorriu diante da minha expressão de queixo caído e
recuou em direção à porta. “Acho que um de nós deveria saber o que está
fazendo”, disse ele. A porta fechou-se suavemente atrás dele; claramente o
namoro havia acabado. [...] Há coisas que não posso lhe contar,
pelo menos ainda não. E não pedirei nada de você que não
possa me dar. Mas o que eu gostaria de pedir a
você é que quando você me disser algo, que seja a verdade. E eu prometo a você o mesmo. Não temos nada entre nós agora,
exceto respeito, talvez. E acho que o respeito talvez tenha
espaço para segredos, mas não para mentiras. Você concorda? [...] E eu pretendo ouvir você gemer assim novamente. E gemer e soluçar, mesmo que você
não queira, pois não pode evitar. Pretendo fazer você suspirar como se
seu coração fosse se partir, e gritar de desejo, e finalmente gritar em meus
braços, e saberei que o servi bem. [...]. Trechos extraídos da obra Outlander (Arqueiro, 1991),
da escritora estadunidense Diana Gabaldon. Veja
mais aqui.
VOLTE PARA A PRAIA DA ALMA LATINA - América do
Sul. \ Verão. \ Ano Novo. \ No dia 31 de dezembro, \ os mais jovens acampam nas
praias, \ queimando bonecos \ com os rostos de seus governantes em fogueiras. \
Aqueles que migraram para o hemisfério norte \ verão suas vidas mudarem \ à
medida que as datas dos solstícios forem invertidas. \ Seu verão se
transformará em inverno \ e, com muita sorte e determinação, \ seu inverno se
transformará em verão. \ Enquanto do outro lado do oceano \ suas famílias, \ tudo
o que antes chamavam de raízes, \ celebram o Inti Raymi, \ a festa do sol para
o mundo andino, \ na Europa chega o ano novo, \ mas também a longa e dura \ estação
fria \ que nem merece um foguete no céu. \ É por isso que a festa de San Juan \
é a coisa mais próxima \ que um latino-americano encontrará na Catalunha \ daquele
cativante ritual pagão \ de mudança de ano. \ Espanha. \ São João. \ Junho de
2010. \ Eles cruzam os trilhos do trem \ para encontrar esse novo começo. \ As
praias de Castelldefels lembram muito \ as amplas planícies costeiras do
Pacífico. \ Saíram de lá \ nesse mesmo trem desesperado. \ Doze pessoas de
origem sul-mexicana. \ As pessoas acreditam que nascer no Sul da América \ é
como ser adolescente \ em um vagão de trem à meia-noite. \ Repita a definição
de migrar: \ Atravesse e morra. \ Atravesse ou morra.\ Nos jornais chamavam-nos
de \ latinos imprudentes, latinos tolos, incivilizados, inconscientes.\ Menores
\ com menos de 25 anos \ atropelados por um trem \ no festival de San Juan \ Vou
na próxima \ Com Jéssica (18), Peruana, Daniela (16), Colombiana, \ Melanie
(19), Equatoriana, Diana (17), Espanhola, \ Leslie (17), Equatoriana e
Chamaquito (18), Equatoriana. \ E um bebê em um carrinho, \ a filha de Melanie \
mamando entre cigarros. \ Tit de seu top adolescente sexy. \ A festa é em
Castelldefels, \ em El Gran Caymán, \ salsa e reggaeton. \ Chamaquito conta que
um amigo de um amigo vai ter a perna amputada. \ Nessa idade você corre com uma
perna só. \ Nós os assustamos, Bili me disse quando chegamos. \ Eu não tinha
percebido: \ Temos medo deles \ Israel tem medo deles \ Jéssica tem medo deles \
Chamaquito tem medo \ deles Eu tenho medo deles \ Cripta de Israel O Filósofo, \
o único que pensa, \ aquele que canta a desgraça. \ As mãos de Israel: \ pequenas
armas que disparam para o alto. \ Correntes, bonés e tênis brancos sob os
trilhos. \ Eles já cruzaram os trilhos de um trem? \ Isso está claro. \ Mas não
é apenas uma coisa latina, mijita. \ Chineses, negros, brancos e crianças
violam a lei. \ Crypt raps: \ “A vida sempre continua / o tempo não para / não
importa quantas coisas digam / não adianta para você. \ Agora meus amigos estão
presos. Não sei quando voltarão / mas aqui no meu coração / estão guardados.” \
O bebê cai mas não chora: \ “Essa menina nunca chora, é incrível”. \ País
subdesenvolvido \ Pessoa subdesenvolvida \ Incompleto. \ O pai de Israel é
cozinheiro e sua mãe limpa casas. \ Os pais de David estão desempregados. \ William
não sabe o que seus pais fazem. \ O pai de Chamaquito em uma casa de repouso. \Somos
filhos de quem limpa sua avó \ Somos filhos de quem coloca sua filha para
dormir \ Somos filhos de quem constrói sua casa \ Somos filhos de quem anda seu
pai. \ Próxima parada: \ praia de Castelldefels. \ “Temos que pintar nossos
lábios.” \ A parada escura, \ pequeno altar de flores. Poema da
jornalista e poeta peruana Gabriela Wiener.