DITOS
& DESDITOS - Nada disso que te contaram aconteceu, só existem teias de palavras,
frases, esse encantamento de cabeça para baixo de um sonho... Trecho extraído da obra Les désancrés (Gallimard,
2013), da escritora de Maurícia, Marie-Thérèse Humbert. Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU - Dizem-me que sou cúmplice da Comuna! Certamente que sim, já que a
Comuna queria antes de tudo a revolução social e a revolução social é o meu
mais caro desejo. Mais ainda, tive a honra de ser uma das promotoras da Comuna…
Já que parece que todo o coração que bate pela liberdade, só tem direito a um pedaço
de chumbo, reclamo um desses pedaços! Se não são covardes, matem-me… Pensamento
da escritora, enfermeira e professora anarquista francesa Louise Michel
(1830-1905), apelidada de Enjolras, filha ilegítima de uma criada e do
filho do patrão. Dedicou grande parte da sua vida à luta pela igualdade na
educação. Foi expulsa do ensino público por recusar o juramento de fidelidade a
Napoleão III. Em 1869, tornou-se secretária da Liga Democrática de Moralização,
destinada a ajudar as operárias de Paris. Foi eleita presidente do Comité de
Vigilância Cidadã do 18º Bairro. Presidiu o Club de La Revolution. Foi soldado
no 61º regimento de Montmartre. Julgada em Conselho de Guerra, foi deportada em
regime de recinto fechado fortificado para Nova Caledónia. Abandonou o blanquismo
para se unir aos anarquistas durante a Comuna de Paris e defendeu a necessidade
de uma ofensiva a Versalhes. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
O ESTUDO E A RODA DE FIAR – [...] desde há dois séculos, uma feminista é uma mulher que não deixa a ninguém
o cuidado de pensar no seu lugar, na sua vez, de pensar, simplesmente, e não
particularmente de pensar o que é a condição feminina ou o que ela deveria ser. [...] o projeto filosófico e o projeto de reflexão feminista têm em
comum uma estrutura fundamental, algo como uma arte de voltar o olhar, de objetivar
e de analisar os pensamentos. [...] uma das grandes nervuras dos
“saberes” da nossa modernidade sendo uma certa linha de partilha, sempre colocada,
muitas vezes refinada ou rebordada, mas nunca interrogada – a que assegura a
diferença homem/mulher é fundamental e fundadora –, então dar a ver este
epistema profundo que rege a nossa maneira de pensar poderia perfeitamente
inscrever-se no projeto arqueológico; [...] deve-se no entanto notar uma
curiosa omissão, a investigação não assinalada que as ditas ciências humanas não
tratavam tanto de um objeto (“o homem”) como trabalharam para marcar todas as
diferenças possíveis, e de facto todas as hierarquias, no conceito geral de humanidade.
Elas interessaram-se nomeadamente em produzir uma oposição subordinada entre a
“mulher” e “os homens [...]. Trechos extraídos da obra L'étude et le
rouet: Des femmes, de la philosophie, etc. (Seuil, 1989), da filósofa
francesa Michèle Le Dœuff. Veja mais aqui e aqui.
PALAVRAS &
COISAS – [...] O que conta nas coisas ditas
pelos homens não é tanto o que eles pensam aquém ou além delas, mas o que logo de
entrada as sistematiza para os tempos a seguir, indefinidamente acessíveis a
novos discursos e à tarefa de os transformar. [...]. Trechos extraídos da
obra Les mots et les choses (Gallimard, 1990), do
filósofo, historiador, filólogo, teórico social e crítico literário francês Michel Foucault (1926-1984). Veja mais
aqui, aqui e aqui.
AS ALEGRIAS DA MATERNIDADE - […] Deus, quando você criará uma mulher que se realizará em si mesma, um ser
humano completo, e não um apêndice de qualquer pessoa? ela orou
desesperadamente. [...] Nnu Ego era como aqueles cristãos não
tão bem informados que, prometendo o Reino dos Céus, acreditavam que ele estava
literalmente ao virar da esquina e que Jesus Cristo viria no dia seguinte. Muitos deles
dificilmente contribuiriam com alguma coisa para este mundo, raciocinando:
"Qual é a utilidade? Cristo virá em breve". , eles até tiveram pena
deles e, em muitos casos, desprezaram-nos porque o Reino de Deus não era para
pessoas como eles. Talvez este fosse um mecanismo de
proteção concebido para salvá-los de realidades dolorosas demais para serem
aceitas. [...] Enquanto voltava para o quarto, ocorreu a Nnu
Ego que ela uma prisioneira: aprisionada pelo amor por seus filhos, aprisionada
pelo papel de esposa mais velha. Dela, não se esperava nem que pedisse mais
dinheiro para a família, essa atitude seria considerada inferior ao padrão
esperado de uma mulher em sua posição. Não era justa, ela achava, o modo como
os espertos dos homens usavam o sentido de responsabilidade de uma mulher para
escravisá-la na prática [...] Os homens nos fazem
acreditar que precisamos desejar filhos ou morrer. Foi por isso que quando
perdi meu primeiro filho eu quis a morte, porque não fora capaz de corresponder
ao modelo esperado de mim pelos homens da minha vida, meu pai e meu marido, e
agora tenho que incluir também meus filhos. Mas quem foi que escreveu a lei que
nos proíbe de investir nossas esperanças em nossas filhas? Nós, mulheres,
corroboramos essa lei mais que ninguém. Enquanto não mudarmos isso, este mundo
continuará sendo um mundo de homens, mundo esse que as mulheres sempre ajudarão
a construir. [...] Em Ibuza os filhos ajudam mais o pai do que a mãe. A alegria de uma mãe
está apenas no nome. Ela se preocupa com eles, cuida
deles quando são pequenos; mas na própria ajuda na fazenda, na manutenção do
nome da família, tudo pertence ao pai. [,,,] Quanto mais eu penso no assunto, mais me dou conta de que nós, mulheres,
fixamos modelos impossíveis para nós mesmas. Que tornamos a vida intolerável
umas para as outras. Não consigo corresponder a nossos modelos, esposa mais
velha. Por isso preciso criar meus próprios. [...]
Trechos extraídos da obra The Joys of
Motherhood (George Braziller, 2013), da
escritora nigeriana Buchi Emecheta
(Florence Onyebuchi – 1944-2017).
HÁ QUE BUSCÁ-LO - Na
eropsiquis plena de hóspedes então meandros de espera ausência \ enluadas coxas
de estival epicentro\ tumultos extradérmicos\ escoriações febre de noite que
burmua\ e aonda aonda aonda\ ao abrirem-se as veias\ com um peixelampo na nuca
do sonho\ há que buscá-lo\ o poema\ Há que buscá-lo dentro dos pressorvos de
ócio\ desnudo\ desqueixume\ sem raízes de amnésia\ nos lunihemisférios de
refluxos de coágulos \ de espuma de meduas de areias dos seis ou talvez em
ânditos com alento a raposino\ e a ruminante distância de santas mães vacas\ fincadas\
sem auréola\ ante charcos de lágrimas que cantam\ com um peixevéu em transe sob
a língua há\ que buscá-lo\ o poema\ Há que buscá-lo ignífero superimpuro leso\ lúcido
bêbado\ inóbvio\ entre epitélios de alvorada ou ressacas insones de solidão em
crescente\ antes que se dilate a pupila do zero\ enquanto o endoinefável
incandesce os lábios de subvozes que brotam do intrafundo eufônico\ com um
peixegrifo arco-íris na mínima praça da\ frente há que buscá-lo\ o poema. Poema do
poeta argentino Oliverio Girondo (1891-1967). Veja mais aqui.