A arte do artista post-art conceitual e teórico de arte estadunidense Joseph Nechvatal.
SONHAÇÕES – Quando sonhei o que eu seria menino dos olhos
inquietos além do quintal, era tudo imenso na carreira da rodagem com pássaros
e árvores ao alcance da mão. E sonhava a alegria do que não era de noite, tudo
tão perto quanto mais longe de não caber no sorriso nem na ideia. Quando sonhei
o que eu seria adolescendo de tarde o que era outro dia, tão mais inquieto
quanto o que fosse impossível na força e coragem, enquanto o que via era outra
coisa e não era nem nunca foi tão diferente. Quando sonhei o que eu seria
maduro das coisas já não eram mais tão perto de longe, entendia tão pouco do
que sabia o menino para cima e pra baixo, como se perdesse a real liberdade de
se imaginar além do que podia. Quando sonhei o que eu seria já quase sem sonhos
dos muitos perdidos, havia a manhã ensinando que eu não era mais que os olhos inquietos
além do quintal esquecido. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui aqui e aqui.
A arte
do artista post-art conceitual e teórico de arte estadunidense Joseph
Nechvatal.
DITOS & DESDITOS – A evolução
é o processo no qual os organismos se tornam seres com suas formas e
capacidades particulares e, mediante suas ações ambientalmente situadas,
estabelecem condições de desenvolvimento para seus sucessores. Seres humanos
são tão aprisionados neste processo quanto os organismos humanos. Crianças,
assim como os jovens de muitas outras espécies, crescem em ambientes providos
pelas gerações anteriores, e assim como fazem, carregam as formas de seus modos
de vida em seus corpos - nas habilidades específicas, sensibilidades e
disposições. Trecho extraído de A
evolução da sociedade (Edusc, 2003), do antropólogo britânico Tim Ingold.
ALGUÉM FALOU: Era
uma vez uma tigela de sopa em que uma menina de olhos enormes brincava de
pescar letras com uma colher. –María Teresa, mais uma vez você é a última a
comer, você está castigada! –A freira que cuidava da cantina da escola gritou
muito brava. "Sinto muito, mas estou escrevendo com as letras da
sopa", respondeu Maria Teresa sem tirar os olhos do prato. - E o que é tão
importante que você escreve? Perguntou a freira em tom astuto. - Escrevo a
palavra mais importante do mundo, aquela que ninguém deve esquecer: LIBERDADE.
E assim que ela disse isso, ela pegou o prato com as duas mãos, levou-o à boca
e de um gole bebeu a sopa. Aprendeu aquela palavra de que tanto gostava em casa
com seus tios Ramón Menéndez Pidal e María Goyri. Ambos estudavam e liam muito
e tinham uma grande biblioteca. María Teresa passou dias inteiros naquela casa
que cheirava a papel. Ela admirava muito sua tia, María Goyri, porque foi a
primeira espanhola a obter o doutorado em Filosofia e Letras. “Quero ir para a
universidade como minha tia Maria e ser escritora”, Maria Teresa costumava
protestar na escola. Como ela estava quase em silêncio sobre o que estava
pensando, os professores ficaram muito bravos com ela e eventualmente a
expulsaram da escola. Seus tios estavam bastante felizes, mas seus pais, por
outro lado, não achavam nada divertido, então decidiram ir de Madrid a outra
cidade, a Burgos, para ver se aquelas idéias lhe saíam da cabeça. Mas em Burgos, María Teresa não se curou de querer
ser escritora e, para escrever sem medo, deu-se um nome falso, Isabel
Inghirami, a heroína de um livro de que gostava muito. "Agora ninguém vai
me proibir de dizer o que penso", disse ela a si mesma, lembrando-se de
sua palavra favorita de oito letras. Você se lembra que palavra era? (LIBERDADE!)
Em Burgos, muitas outras coisas aconteceram com ela. Conheceu um professor
universitário e logo se casou com ele. Ela tinha apenas dezessete anos na
época, era quase uma menina, mas seus pais achavam que talvez assim ela parasse
de escrever coisas estranhas. Pouco depois de se casar, ela era mãe de um
menino, Gonzalo. E com a idade de cinco anos seu segundo filho, Enrique,
nasceu. Ela os amava muito, cantava canções para eles e lia muitas histórias
para eles, algumas delas escritas por ela. Mas María Teresa queria estudar
mais, encontrar pessoas que lhe ensinassem história, literatura, ciências... “-
Em Burgos não aprendo nada. Tenho que sair daqui”, disse ela com muita tristeza
um dia ao marido. "Se você quiser ir embora, você o fará sozinha, sem mim
e sem os filhos", respondeu o marido, muito zangado. "Isso é o que
mais me dói", disse ela. E ela começou a chorar. Mas vou seguir meu
caminho. Quando as crianças crescerem, explicarei o que aconteceu. Naquela
época, as mulheres não podiam se divorciar de seus maridos e, se o fizessem,
por qualquer motivo, perderiam seus filhos. Finalmente ela voltou para Madrid.
Começou a visitar bibliotecas, a encontrar outros escritores e escritoras, a ir
ao teatro, a visitar os tios, a inventar histórias... Um dia foi apresentado a
um poeta andaluz; seu nome era Rafael. Enquanto se cumprimentavam, ele exclamou
com sotaque de Cádis: -Seus olhos são duas estrelas! Você vai me deixar tomar
banho neles? O poeta era Rafael Alberti e ele queria se conectar com ela. Então
ele começou a recitar versos e versos e mais versos até que a lua virou sopa,
as estrelas bocejaram e só gatos correram pelas ruas de Madrid. Meio
adormecida, María Teresa explicou: –Eu também escrevo contos, peças, novelas...
Eu sou um escritor, morreria sem escrever. –Bem, porque podemos trabalhar
juntos e iluminar o mundo com novas ideias. -Bem, você já deslumbra, Rafael,
você dá tanta luz quanto um cometa. Eu poderia ser a cauda do cometa ao seu
lado –María Teresa apontou. A partir daqui, a história se torna o conto dos
dois escritores. Juntos aprenderam, juntos publicaram livros, juntos viajaram
por muitos países, juntos apoiaram os soldados republicanos na guerra civil
espanhola, juntos protegeram as pinturas do Museu do Prado das bombas, juntos
descobriram o comunismo e juntos foram para o exílio, juntos eles tiveram uma
filha, Aitana... Juntos eles viveram suas vidas inteiras e se amaram muito.
Rafael ficou muito famoso. Por outro lado, María Teresa, que escrevia tanto
quanto ele, vivia em sua sombra, ajudando o poeta em seu trabalho, cuidando de
sua filha, cuidando para que nada lhes faltasse. Isso significava ser a cauda
do cometa! Fique na sombra. Porque aos poucos María Teresa León, que era seu
nome completo e porque ela autografava seus livros, passaram a chamá-la
simplesmente de "esposa de Alberti", apesar de ela escrever muito e
muito bem: peças, roteiros de filmes, histórias, ensaios, romances... Um dia,
enquanto Rafael dava as últimas pinceladas a um quadro, María Teresa, que
começava a esquecer muitas coisas por causa do Alzheimer, disse-lhe: - Eu quero
tomar sopa, aquela sopa de letrinhas que nos deram na escola. "Como você
pode se lembrar daquela sopa se já não se lembra de quase nada?" - Rafael
exclamou surpreso. - Eu sou uma mulher de letras, Rafael, por isso escrevo
todos os dias da minha vida. Nunca se esqueça disso, mesmo que eu esteja me
esquecendo. Quero procurar novamente as letras da minha palavra favorita porque
sinto falta desse sabor. Trechos recolhidos da história da escritora espanhola María Teresa León Goyri (1903-1988).
JOGO DA AMARELINHA - Toco a sua boca,
comum dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como estivesse
saindo da minha mão, como se
pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para
desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca
que a minha não escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas,
com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu
rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com
a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha. Me olhas, de
perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope,
olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se
aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando
confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os
lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas
onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então,
as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a
profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca
cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se
nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver
simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva
e um só sabor de fruta, e eu te sinto tremular contra mim, como um lua na água. Trecho
extraído da obra O jogo da amarelinha
(Abril Cultural, 1985), do escritor argentino de origem belga Julio
Cortázar (1914-1984). Veja mais aqui,
aqui & aqui.
COM LICENÇA POÉTICA - Quando
nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar
bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada. /
Aceito os subterfúgios que me cabem, / sem precisar mentir. / Não sou tão feia
que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim, ora não,
creio em parto sem dor. / Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. / Inauguro
linhagens, fundo reinos / -- dor não é amargura. / Minha tristeza não tem
pedigree, / já a minha vontade de alegria,/ sua raiz vai ao meu mil avô. / Vai
ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.
Poema da poeta, filósofa e professora Adélia Prado. Veja mais aqui e aqui.