terça-feira, julho 22, 2008

VALUNA, CORDEL DE ATHAYDE, BAKHTIN, JANE AUSTEN, JUDITH ROSSNER, ABILIO ESTÉVEZ & MARIE FOX


 
A arte de Marie Fox. Veja mais abaixo

VALUNA: SOU RIO & A CIDADE É A MULHER... UNADIA, DIAUNA - Sou um como muitos e muitas são, as gotas, uma a uma, lado a lado, se criam e brotam do chão, descem para onde der caminho. Primeiro me fiz poça entre tantas outras gotejantes, parecia mais reunião de família. Do posseiro, volume se dilatando cada vez, outros que chegam e a gente esborra em expansão. Assim, nasci no outono, quase invernada. Quase nem sei quem sou, apenas em Capoeiras o que me fiz no Sol da manhã, além do meio dia pelo crepúsculo.  Sou entre tantos pingos a mais que implodem e escorrem pelo chão abaixo. As estrelas me seguem, percebo tudo ao redor, o vento, a poeira, as pedras no caminho e não sei mesmo para onde vou ou vamos: olho d’água que fui ao brotar no agreste. Avultado, despenco aos tombos em corredeira ao mais fundo dos fundos, sou quase um brejo e o Bom Destino me abraça forte ao recepcionar o célere Gurjão que era o Mel, um atalho do Mocambo, para que eu não fosse um só na travessia. Seguimos de mãos dadas e o Mimoso era o denodo que juntava Maniçoba e Alegre, com as boas novas de Pau Ferro. Os pés em Cajarana e o batismo da Pracinha, o veio Fundo e era o raso nem tanto, o Mel do Meio dava para São Pedro a festa da Praça e quando a noite chegou, já era alta a madrugada: meu peito era só poesia na Serra do Quati. Já reluzia a manhã, o espetáculo: assim como em cima, é embaixo. E ela mãe me abriga em seu ventre de janeiro pro resto da vida, para que eu nasça rio a banhá-la de ternura e devoção. Quantas Marias e tantos outros nomes, todas são dela e mais há de ser a cada amanhecer. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui, aqui & aqui.

 A arte de Marie Fox. Veja mais abaixo.

DITOS & DESDITOSQuanto mais vejo o mundo, mais fico insatisfeito com ele; e todos os dias confirmam minha crença na inconsistência de todos os personagens humanos e na pouca dependência que pode ser colocada na aparência de mérito ou sentido. Muitas vezes perdemos a possibilidade de felicidade de tanto nos prepararmos para recebê-la. Por que então não agarrá-la toda de uma vez? Tempo ou oportunidade não determinam a intimidade, apenas a disposição. Conheça sua própria felicidade, só precisa de paciência... ou dê-lhe um nome mais fascinante, chame-a de esperança. Pensamento da escrito inglesa Jane Austen (1775-1817). Veja mais aqui.

ALGUÉM FALOU: O amor é o oposto do ódio. Por definição, é algo que você não consegue sentir por mais do que alguns minutos de cada vez. Então, que merda é essa de amar alguém pelo resto da vida? Pensamento da escritora estadunidense Judith Rossner (1935-2005). Veja mais aqui.

DA CULTURA POPULAR – [...] No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura cômica popular) o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo. No realismo grotesco, o elemento material e corporal é um principio profundamente positivo, que nem aparece sob uma forma egoísta, nem separado dos demais aspectos da vida. O principio material e corporal é percebido como universal e popular e como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente da terra e do corpo. O corpo e a vida corporal adquirem simultaneamente um caráter cósmico e universal. Não se trata do corpo e da fisiologia no sentido restrito e determinado que possuem em nossa época; ainda não estão completamente singularizados nem separados do resto do mundo. [...] cada um dos atos da historia mundial foi acompanhado pelos risos do coro. Mas nem todas as épocas tiveram um corifeu da envergadura de Rabelais. E, embora ele tenha sido o corifeu do coro popular do Renascimento, revelou com tal plenitude a língua original e difícil do povo que a sua obra ilumina a cultura popular das outras épocas. [...]. Trechos extraídos da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (Hucitec, 2010), do filósofo e pensador russo teórico da cultura e das artes Mikhail Bakhtin (1895-1975). Veja mais aqui & aqui.

OS PALÁCIOS DISTANTES – [...] Havana nunca é igual e sempre é igual. O amanhecer em Havana possui infinitas formas de se mostrar sempre idêntico, diverso e exato, com a cor confusa do céu, tonalidades duvidosas que andam por detrás das nuvens brancas, baixas, precisas, velozes; e a brisa dos amanheceres, sempre escassa, mas que mesmo assim se abre como um imenso pássaro benfeitor sobre a cidade. [...] Molha o pão velho no café aguado e com gosto de trapo. O paladar registra a triste mistura. Fecha os olhos e chega à conclusão de sempre: não pode haver no mundo ninguém mais infeliz. Nem sequer a princesa de Mônaco, nem Dalai Lama, a despeito do sorriso bondoso com que sempre se apresenta, nem madre Tereza de Calcutá, já morta, a muito caridosa, nem sequer o Papa, nem a calamitosa rainha da Inglaterra, com sua expressão de severidade. Sim, é verdade, é bem verdade: o café tem gosto de pão velho, gosto de caixão. Pensa mais uma vez que nenhuma satisfação jamais surgirá desse quarto, nem da rua, nem sequer de Havana. [...] Cai sobre Havana esse véu sujo, poeirento, difuso, que é o anoitecer. A noite escura (do corpo e da alma). Sempre que anoitece, Havana começa o seu rápido processo de desaparição. Cortam a eletricidade. A vida parece suspender-se, ou se suspende realmente, o tempo se detém. Só resta a espera. [...]. Trechos da obra Os palácios distantes (Globo, 2004), do escritor cubano Abilio Estévez, uma reflexão poética sobre a decadência de Cuba e a luta de seus habitantes para sobreviver, contando a história de um homossexual solitário de 46 anos que vive em um cortiço em Havana.


HISTÓRIA DA PRINCESA DA PEDRA FINA

João Martins de Athayde

No Reino da Pedra Fina
Havia uma princesa
Misteriosa, encantada
Uma obra da natureza
Com ela duas irmãs
Que eram a flor da beleza.

Naquela linda princesa
Só era em que se falava
Nesse lugar também tinha
Um pobre que trabalhava
Com três filhos no roçado
Com isso se sustentava

Chamavam-se os três meninos
João, Antonio e José
José que era o caçula
Do tamanho dum bebé
A sua mãe lhe estimava
Nunca deu-lhe um cafuné

Disse o marido à mulher:
- vou trabalhar no roçado
os meninos também vão
pra ajudar-me doutro lado
você cá mate um franguinho
apronte-o, leve-o guisado.

Estando o velho cansado
Com os filhos a trabalhar
Às duas horas da tarde
Diz ele: - Vou descansar
Meus filhos tenham paciência
Não tarda mamãe chegar.

Pegou Antonio a brincar
Fazendo riscos no chão
Dizendo: - Estou com vontade
De comer muito feijão
Misturadinho com bredo
Acho melhor do que pão

Aí respondeu João:
- Eu desejava comer
muita banana com casca
até a barriga encher
ambos mandaram José
dar também seu parecer.

De modo misterioso
Respondeu o Cazuzinha:
- O que tenho no pensamento
nenhum dos dois adivinha
então será um segredo
ou do rei ou da rainha.

Disse José: - Eu descubro
Creio que não me incrimina
Não é pra mim bem vocês
É pra quem Deus determina
Eu queria ver as penas
Das moças da Pedra Fina

- Oh! Atrevido menino!
(respondeu o pai deitado)
e levantou-se dizendo:
- Cachorro, bruto, safado
não respeita as princesas
querer morrer enforcado?

Levantou-se o velho irado
Dizendo por este jeito:
- Você ainda acha pouco
os males que me tem feito?
Assim nós todos iremos
Sofrer pelo seu respeito!

Aí deu umas lapadas
No seu caçula Zezinho
Nisto foi chegando a velha
Que já vinha no caminho
- Meu velho, pra que fez isto?
Pra que deu no bichinho?

- Porque foi muito atrevido
minha velha Umbelina
ele buliu com as pessoas
tão altas que nos domina
desejando ver as pernas
das moças da Pedro Fina.

- Se eles souberem disso
nos mandariam chamar
nos metiam na prisão
mandavam a ele matar
eu só deu essas lapadas
para o exemplo ficar.

Ai a velha zangou-se
Começou logo a chorar:
- Vamos pra casa meu filho
para seu pai não lhe dar
inda a princesa sabendo
não lhe manda degolar.

José sempre se lembrava
Do pai o que tinha feito
Dizendo que a família
Sofria por seu respeito
Saiu vagando no mundo
O qual por Deus foi aceito.

Esse inocente menino
Saiu, só levou um pão
Não tinha um vintém no bolso
Só quis do pai o perdão
Da sua cara mãezinha
A sua santa benção.

A mãe partida de pena
Abençoou o menino
Vendo o filho tão pequeno
Sair como um peregrino;
- Rogo a Deus como bom pai
que zele por teu destino.

O Cazuzinha era novo
Porem era destemido
Já fazia mais de um mês
Que ele tinha saído
Chegou na beira de um rio
Medonho e desconhecido

Ficou com bastante medo
No atravessar do rio
Só ouvia urros de fera
No pé dum monte sombrio
Porem tinha pouca água
Por ser tempo de estio

Ele atravessou o rio
Quando em terra pisou
Sentiu que estava com sede
Água no chapéu tirou
No chapéu veio uma pedra
Que muito lhe admirou.

Era um brilhante encantado
Mas ele não conhecia
Julgando não ter valor
Pouca importância fazia
Depois guardo-o no bolso
E pensou no que fazia.

Saiu por ali afora
Quando foi no outro dia
Entrou num grande reinado
Que ele não conhecia
Sem ter um vintém no bolso
Tomou uma hospedaria

O rapaz aperreado
Já vendo a hora sofrer
Tirou a pedra do bolso
Começou a oferecer
Dizendo: - Quem quer comprar?
Eu tenho é pra vender.

José muito aperreado
Sem jeito com que passar
Deu a pedra a um lojista
Perguntando: - Quando dá?
Respondeu: - É um brilhante
Eu não a posso comprar.

- Em todo este reinado
(lhe respondeu o caixeiro)
o senhor vá procurando
até pelo estrangeiro
para comprar esta pedra
bem poucos terão dinheiro.

Disse também o lojista?
- Esta jóia é um primor
só quem a pode comprar
é o nosso imperador
só ele terá dinheiro
com que pague o seu valor.

O rapaz saiu pra rua
Com a tal pedra na mão
Assim que o rei a viu
Ficou com tanta ambição
Mandou chamar o rapaz
Comprou-a por um milhão.

Deu-lhe mais um palácio
E um posto de capitão
Pelo seu merecimento
Todos lhe davam atenção
Era um estrangeiro nobre
Filho de outra nação.

Na corte tinha um barbeiro
Que no reinado vivia
Também era conselheiro
Em tudo se intrometia
Disse logo a todo mundo
Que a pedra o rei a possuía.

O rei mandou colocar
A pedra em sua coroa
Como era um brilhante
De uma espécie muito boa
Servia de ornamento
Pra sua nobre pessoa.

O barbeiro quando viu
Disse muito admirado
- Isso só ficava bem
tendo outra em cada lado
tendo mais uma na frente
fica um rei mais respeitado.

Lhe disse o imperador:
- Aonde vou encontrar
outra pedra como esta?
É asneira procurar....
- O moço que lhe vendeu
é quem pode lhe arranjar.

- Rei senhor, mande chamar
ele não dirá que tem
lhe mostre pena de morte
veja se a pedra não vem
pois ela não há de tê-la
só rei senhor, mais ninguém.

- Sim senhor, está muito bem!
Mandou logo procurar
Dali saiu o barbeiro
Ver se podia encontrar
Quando encontrou foi dizendo:
- Rei senhor manda chamar.

Veio o moço e o barbeiro
Para a presença do rei
Lhe disse o imperador:
- sabes pra que te chamei:
porque preciso outra pedra
igual a que te comprei.

Disse o rapaz ao rei:
- Outra eu não posso arranjar
ainda eu tenho dinheiro
não tenho aonde comprar
eu achei esta no rio
porém sem nunca esperar.

- O senhor vá ver a pedra
me chegue aqui qualquer dia
peça por ela o que quiser
não resgatei a quantia
porém chegando sem ela
morrerá no mesmo dia.

Saiu José muito triste
Pensando de qual maneira
Poderia se livrar
Dessa cena traiçoeira
Foi sair no mesmo rio
Aonde achou a primeira.

Foi pelo mesmo lugar
Aonde tinha passado
Seguiu pelo rio adentro
Procurando com cuidado
Uma pedra que igualasse
A que ficou no reinado.

Ele já estava cansado
De por ali procurar
Bebeu água sem ter sede
Nada de poder encontrar
Desenganado da vida
Pegou sozinho a falar.

Dizia ele consigo:
- Eu sei que vou morrer
essa pedra que procuro
é impossível obter
me acabo aqui afogado
não dói gosto ao rei me ver.

José pegou a ouvir
Uma coisa que estrondava
Chegando ao pé da serra
Ainda mais intimidava
De repente viu o fogo
Que perto dele brilhava.

De repente aquele fogo
Transformou-se num leão
Brigando com uma serpente
Troando que só trovão
Saia fogo dos dentes
De faiscar pelo chão.

José nem pode falar
Vendo aquela tempestade
O leão falou com ele
Pedindo por caridade:
- Mata-me esta serpente
que dou-te a felicidade.

Respondeu sem ter maldade
A serpente: - Criatura
Mata o leão que dou-te
O que tu andas à procura
Depois te farei feliz
Que sou uma virgem pura.

Ele atirou no leão
Aquela fera valente
Com um tiro muito certeiro
Morrei instantaneamente
Morto que fosse o leão
Desencantava a serpente.

Era uma moça encantada
Uma excelente menina
A origem do encanto
Foi para cumprir a sina
Era essa a tal princesa
Do reino da Pedra Fina.

Ele com ela abismou-se
Somente pela beleza
Perguntou-se: - Quem sois vós?
Disse ela: - A princesa do
Reino da Pedra Fina
Que venho em tua defesa.

Dali saiu a princesa
Com José acompanhando
Desceram de rio abaixo
Ambos juntos conversando
No lugar que procurava
Ela parou lhe falando:

- Se teu ferro está cortando
anda cá, vem me ferir
corta este dedo ao meio;
mas ele não quis ouvir
disse ela: - Corta logo
que o sangue vem te servir.

José sem querer cortar
Julgando ser uma asneira
Mas quando cortou-lhe o dedo
Corria sangue em biqueira
Do sangue saíram duas pedras
Do formato da primeira.

Disse ela: - Está ao
O que você procurava
Esteve aqui há pouco
Procurando e não achava
Porque estava brigando
E o leão me arranhava.

Daí foram para casa
Que o rei tinha lhe dado
Ia em companhia dela
Porem muito embelezado
Pela sua formosura
Esqueceu-se do mandado.

Passando mais alguns dias
A princesa lhe falava:
- José, vai levar a pedra;
o rei a tempo esperava
José respondeu a ela:
- Eu disso nem me lembrava.

Ele aí pegou a pedra
Foi levar ao rei senhor
Que gratificou a ele
Com dois tantos do valor
E lhe fez mais um presente
De um titulo superior.

O rei disse ainda a ele
(quando entregou-lhe o dinheiro)
- Como eu te considero
inda mais que um conselheiro
vou mandar-te fazer a barba
pelo meu próprio barbeiro.

No palácio de José
Quando o barbeiro chegou
Entrou respeitosamente
Dizendo o cumprimentou:
- Vim fazer a vossa barba
que o monarca mandou.

Estava fazendo a barba
Quando a princesa sorriu
O barbeiro admirou-se
Da formosura que viu
Assim que findou a barba
No mesmo instante saiu.

Quando chegou no palácio
Foi dizendo: - Rei senhor
Agora vi uma moça
Mais linda que uma flor
Na casa do coronel:
Pra mim tem todo valor!

- Rei meu senhor, se apronte
não perca esta ocasião
vá lá no palácio dele
e preste bem atenção
pois a moça que vi lá
faz render um coração.

O rei mandou vir um carro
E perguntou: - Como é?
Você me diz essas coisas
Porem eu não tenho fé;
À tarde foi passear
Onde morava José.

Passando o carro por baixo
Avistou logo a princesa
Debruçada na janela
Em traje de camponesa
Deu um ataque e caiu
Quando viu a boniteza.

Ai pegaram o rei
Pensando que ele morria
Deram-lhe medicamento
Porem ele nem bebia
Levaram ele pra corte
Foi tornar no outro dia.

No outro dia o barbeiro
Foi ao rei aconselhar
Dizendo: - Não desanime
Eu tenho jeito pra dar
Tenha mais perseverança
Que sempre vem a gozar.

Disse o barbeiro ao rei:
O moço, seu coronel
Talvez com essa invenção
Nos caia a sopa no mel
Mande ele no reinado
Das laranjas de Babel.

- Diga que a sua esposa
desejou muito comer
uma laranja de lá
para o filho não perder
está grávida há seis meses
vive em tempo de morrer.

O rei tomou o conselho
Mandou logo chamar
Por esse mesmo barbeiro
Que o recado foi dar
Disse a José: - Apareça
Que o rei quer lhe falar.

- Uma laranja mimosa
quero que vá me buscar
no Reino das Laranjeiras
pra em dez dias chegar
se não fizer o que digo
eu lhe mando degolar.

O pobre banhado em pranto
Chorando em casa chegou
A princesa comovida
Depressa lhe perguntou:
- O que foi, José?
- Foi o rei que me mandou....

- O rei disse que fosse
uma laranja buscar
no Reino das Laranjeiras
como é que posso acertar?
Se não chegar em dez dias
Ele manda me matar.

- Não tenhas medo, José
descansa para jantar
enquanto eu existir
algum remédio hei de dar
vou te arranjar um cavalo
que ti possas viajar.

Pega ela a ensinar
Como devia fazer
Dizendo: - Pelas três horas
Você irá receber
De um moleque um cavalo
Que vem lhe oferecer.

Ele compreendeu tudo
Foi para o ponto esperar
Com pouco viu um moleque
Em um cavalo a saltar
Muito gordo e bem selado
Capaz dum homem montar.

Dizendo: - Quem quer comprar
Por cinco contos de réis
Um cavalo muito gordo
Calçado de mãos e pés?
Disse José: - Compro eu
Tu pedes cinco eu dou dez.

Ele pagou ao moleque
Aquela grande quantia
Porem todo privilégio
O cavalo possuía
O mesmo estava arreado
Da forma que ele queria.

A princesa chamou ele
Tornou a recomendar:
- Daqui lá só são mil léguas
numa hora hás de chegar
porem este teu cavalo
não é preciso açoitar.

- Basta que de hora em hora
você dê-lhe uma lapada
corra, siga à toda pressa
não te importes com nada
porem quando chegar lá
encontra a porta fechada.

- Fique ali bem escondido
pra ninguém o perseguir
quando bater meia-noite
o portão há de se abrir
entre sem fazer zuada
para ninguém não o vir.

- Dentro tem leões e lobos,
ursos, camelos urrando,
cobras, serpentes assanhadas
leão, leoa rosnando
pantera, porco do mato
sobre as laranjas avançando.

- Não te importes com nada
porque assim determina
quando entrar vá chamando:
Oh! Laranja tangerina
Me acompanha a um chamado
Do Reino da Pedra Fina.

José chamou a laranja
Ela veio, ele levou-a
Fez como a princesa disse
E não deu passada à-toa
Montando no seu cavalo
Corria como quem voa.

José dizendo as palavras
Todo bicho se mordia
Para tomar a laranja
Um puxava outro queria
José arribou com ela
Já acabou-se a porfia

Correu com essa laranja
Os bichos atrás pra tomar
Numa grande violência
Viu-se o portão se fechar
Nem a cauda do cavalo
Eles puderam pegar.

Não é preciso saber
Quanto o cavalo corria
Nem mesmo uma ave rapina
A favor da ventania
Basta dizer que tirava
Umas mil léguas por dia

José que vinha contente
Com a laranja na mão
Entregou ela à princesa
Ela prestou atenção
Disse José: - Veja bem
A laranja é esta ou não?

Disse ela: - Vou te mostrar
O poder da natureza
Pegou, partiu a laranja
Em cima de uma mesa
Saiu de dentro uma moça
Mais linda que a princesa

Disse a princesa a José:
- Esta é a minha irmã
que o leão carregou
um dia pela manhã
depois juntou as bandas
e a laranja ficou sã.

Chamava-se Romana
O corpo um tanto delgado
Olhos pretos muito vivos
Nariz bastante afilado
Dentes alvos, boca linda,
Rosto bem feito e corado.

Elas ficaram falando
Em tudo que se passou
Que o rei queria a laranja
Como de fato, chegou
José foi levar no dia
Que o tempo completou.

O rei ficou satisfeito
E lhe deu muito dinheiro
Deu-lhe mais uma medalha
Com honra de brigadeiro
Depois tirou-lhe também
Para ser seu conselheiro.

José foi com o barbeiro
Este voltou na carreira
Dizendo ao rei: - Vi agora
Outra moça verdadeira
Lá na casa do José
Mais linda que a primeira!

Disse o barbeiro ao rei:
- Todas elas são donzelas
eu nunca vi neste mundo
duas figuras tão belas
rei meu senhor faça tudo
para gozar todas elas.

- Ainda temos outro jeito
rei senhor mande chamar
José pra ir no reinado
Das limeiras de Tupar
Ele indo essa viagem
Nunca mais há de voltar.

José seguiu para a corte
Fingindo ter paciência
Para acudir o chamado
Que vinha com muita urgência
Cumprimentou os vassalos
Cheio de benevolência.

Disse o monarca: - José
Esta vez é a terceira
Para buscar-me uma lima
No Reinado das Limeiras
Já que tiveste coragem
De voltar das Laranjeiras
Disse a princesa: - José
Eu lhe hei de proteger
Preste-me bem atenção
Repare o que vou dizer
Ensinou tudo a José
Como devia fazer

Saiu ele à toda pressa
Correndo por uma estrada
Saiu de casa ao meio-dia
Foi chegar de madrugada
Achou o portão fechado
Esperou pela entrada.

Chegou, ouviu o sussurro
De muitos bichos que havia
Ele morrendo de medo
Porem não se remexia
Até o próprio cavalo
De medo também tremia

Quando batiam seis horas
Ia o portão se abrindo
Ele entrou e foi vendo
Feras de dentes rangendo
Debaixo da limeira
Tinha um leão dormindo.

Ele entrou e foi chamando
Pela lima camponesa
- Eu venho aqui te buscar
obrigado a natureza
preciso que não me faltes
ao chamado da princesa

José agarrou a lima
Com uma mão segurou
As feras partiram em cima
Porém José se livrou
Quando ia chegando perto
Ai o portão se fechou.

Como ele correu com medo
Não podia ter demora
Chegando, entregou a lima
Na mão de sua senhora
Disse ela: - Quero ver
O que vão inventar agora.

No reinado tinha uma
Do Reino das Laranjeiras
Depois chegou a caçula
Do Reno das Limeiras
Era a caçula mais bela
Do que as duas primeiras.

A lima ficou partida
Ela com jeito fechou
Não tinha nenhum defeito
A José ela entregou
Depois que findou o prazo
Foi quando José voltou.

O rei recebeu a lima
Foi tratando de pagar
Deu tanto dinheiro a ele
Que não tinha onde botar
O barbeiro foi com ele
Para seu cabelo cortar.

Chegou junto com José
O barbeiro conhecido
Quando viu as três princesas
Foi correndo espavorido
E sem poder dizer nada
Do que tinha acontecido.

Disse ele: - Rei senhor
Eu lhe digo com franqueza
Fui à casa de José
E lá vi outra princesa
Que aquela só sendo feito
Pela mão da natureza.

- Pra rei senhor gozar nelas
outro conselho vou dou
mande José ao inferno
dizendo que precisou
de saber noticia certa
do finado seu avô.

- Rei meu senhor mande logo
fazer um grande alçapão
dizendo: - É este o caminho
vai por debaixo do chão
quando entrar, feche a porta
morrerá sem remissão.

Mandaram chamar José
Ele depressa chegou:
- Quero que vá no inferno
o monarca assim falou:
- Para levar um oficio
ao finado meu avô.

- Traga noticia de lá
e volte pra me dizer
isto que estou lhe dizendo
o senhor tem que fazer;
volta José soluçando
na certeza de morrer.

A princesa disse a ele:
- O rei faça o que quiser
eles agora vão ver
a força duma mulher
ninguém judia contigo
enquanto eu vida tiver.

- Pega estas duas pedras
leva elas duas na mão
elas num lugar escuro
te servem de lampião
lá tu fazes um discurso
na porta do alçapão.

Nesta hora por ali
Fica tudo admirado
Afrouxes as pedras da mão
E dás um pulo de lado
O fogo que sai das pedras
Deixa tudo encandeado.

José compreendeu tudo
Aprontou-se pra sair
Quando o réu deu o oficio
Pegou ele a discutir
Pulou dentro, saiu fora
Sem ninguém o pressentir.

Todos disseram: - Aquele
Nunca mais há de voltar
Que só do pulo que deu
Viu-se o fogo brilhar
Labaredas do inferno
Na porta veio encontrar.

José no mesmo momento
Pra sua casa voltou
Chegando mais que depressa
Em um quarto se trancou
A mulher pegou a roupa
No fumeiro desprezou.

Todo dia ela queimava
Muito enxofre no fumeiro
Porem sempre às escondidas
Fazia muito ligeiro
Assim foi continuando
Completou um ano inteiro.

José como quem está preso
Seu cabelo não cortava
Não lavava pés nem mãos
As unhas nunca aparava
Um banho nunca tomou
Nem nunca se barbeava.

Vou dizer o que fazia
O rei com seu barbeiro
Que mostrava no seu carro
Na roupa só tinha cheiro
Iam visitar as moças
Só chegavam no terreiro.

No palácio de José
Quando o rei ali saltava
A princesa na janela
Mas nem o cumprimentava
Se o rei subia a calçada
O palácio se fechava.

O rei andava de novo
Começava a rodear
Ela deixava a janela
Procurava outro lugar
Depois de desenganou
E não quis mais passear.

Vamos tratar de José
De qual forma se arranjou
Lhe disse a princesa um dia:
- Eu vou ver que jeito dou
para o barbeiro passar
pelo que você passou.

Quis a princesa vingar-se
Do que o barbeiro fazia
Escreveu uma resposta
Com grande aristocracia
Com letras feias e gregas
Que só o diabo sabia.

Dizendo: “Meu caro neto
Eu aqui estou sossegado
Fiquei ciente de tudo
Que me foi participado
Pelo mesmo portador
Lhe comunico o passado.

Eu aqui sou um guerreiro
Não me sujeito a ninguém
Mande sem falta o barbeiro
Que por hora aqui não tem
Para cortar meu cabelo
E minha barba também”.

Vinha na carta dizendo:
“as suas ordens estou
mande cá o seu barbeiro
bem sabe que lá não vou
aceite mil saudações
do finado seu avô”.

Aí José se vestiu
Com a roupa esfarrapada
Fedendo muito a enxofre
A espada enferrujada
Com os cabelos de monge
A barba toda assanhada.

Botou a carta no bolso
No mesmo instante levou
Antes de chegar na corte
Ele com a um praça encontrou
Ele era um general
E o praça não se importou.

Ele repeliu o praça
Com muita benevolência
Dizendo: - Sou general
Conheço a jurisprudência
Vá mudar de roupa nova
Pra me fazer continência.

José entrou no palácio
Foi logo avisando o rei
Que de longe perguntou-lhe:
- Que és que até me espantei?
- Sou o general da carta
que do inferno cheguei.

- Ontem cheguei de viagem
ele mandou um oficio
receba ele esta aqui
pra trazer fiz sacrifício
só não fui mal na viagem
porque lá vi um patrício.

Quando ele leu o oficio
Pelo assunto primeiro
Viu logo que seu avô
Mandou chamar o barbeiro
Disse o rei: - Vá se aprontar
Pra ir no mesmo roteiro.

- É pra seguir amanhã
não deixe mais demorar
meu avô manda chamá-lo
e eu não posso negar
é para fazer-lhe a barba
e seu cabelo cortar.

Disse ele: - Sigo já
Como o general seguiu;
Fez também o seu discurso
Quando o alçapão abriu
Ele, navalha e tesoura
No grande abismo caiu.

Ele morreu de repente
Daquela morte fatal
Ficou José descansando
De quem lhe fez tanto mal
Depois morreu sempre o reis
Ficou sempre o general.

José que era o rei
De toda aquela nação
A princesa disse a ele:
- Teu pai está na prisão
tua mãe também está presa
junto com o teu irmão.

- Pois é bom que saia cedo
vai para aquele lugar
espera pelo teu povo
que eles têm que passar
e os toma dos soldados
quero com eles falar.

José foi para o ponto
Com pouco avistou seu pai
Sua mãe e seus irmãos
Dando suspiro e ai
Diz ele às praças: - Este povo
Daqui pra diante não vai.

Os soldados responderam:
- Vão todos ao processados
os levamos para o juiz
para ser interrogados;
respondeu José com raiva:
- Dêem meia volta, soldados!

José levou todos eles
E entregou à princesa
Ela foi cortou-lhes as cordas
Sentou-se numa marquesa
Ficaram todos com medo
Quando chegaram na mesa.

Disse a velha: - Com certeza
Nós todos vamos morrer
Pois o réu não se ocupa
Beneficio nos fazer;
Disse o velho: - E é na forca
Pegaram a se maldizer.

Botaram o jantar pra eles
Pra Antonio, feijão com bredo
Pra João, banana com casca
Ficaram todos com medo
Disse a velha consigo:
- Está descoberto o segredo.

A primeira disse a ela:
- Vejo tudo amedrontado
minha velha sente-se aqui
me conte o que foi passado
senão disser morre tudo
de um por um degolado.

- A senhora me responda
quantos filhos já tem tido?
- Só tenho Antonio e João
outros já têm morrido;
- A senhora não tem outro
que está no mundo perdido?

- Conta a história direito
não é preciso negar,
quede José, seu caçula?
Deve inda se lembrar;
Disse a velha: - Essa história
Eu não preciso contar.

A velha morta de medo
Sempre lhe fez o pedido
Dizendo: - Eu tive José
Meu caçula querido
Faz dez anos que ele
Anda no mundo perdido

- Ele era inteligente
não sei se era por sina
pois desejou ver as pernas
das moças da Pedra Fina
meu marido teve medo
foi com ele à disciplina.

Disse a princesa: - O menino
Apanhar não merecia
Se por acaso a senhora
Visse ele conhecia?
Lhe disse a velha: - Conheço
Em qualquer hora do dia.

Ela perguntou à velha
(porem lhe mostrando agrado):
- A senhora conhece aquele
que se acha ali sentado?
Lhe disse a velha: - É o rei
Que governa este reinado.

José não agüentou mais
Partido de comoção
Abraçou-se com a velha
Chorando pediu perdão
Ajoelhou-se aos pés dela
Para tomar-lhe a benção.

José abraçou a todos
Como era bom irmão
Casou Antonio com Romana
A caçula com João
Foram viver no reinado
Na mais perfeita união.

Portanto devemos ter
O pensamento adiantado
José, um menino pobre
Trabalhando no roçado
Desejou ver a princesa
Por isso foi castigado.

Viveram todos felizes
Gozando mil maravilhas
José como uma estrela
Que no firmamento brilha
Mostrou que ele sozinho
Felicitou a família.

JOÃO MARTINS DE ATHAYDE – O poeta paraibano João Martins de Athayde, nasceu no dia 24 de junho de 1880, em Cachoeira da Cebola, no município de Ingá, Paraíba. Trabalhou como mascate e atraído pela febre da borracha, foi para o Amazonas onde teve 25 filhos com as caboclas das tabas indígenas. Retornou ao nordeste e transferiu-se para Recife, onde fez curso de enfermagem. Em 1921, já com bela fortuna amealhada, comprou o famoso projeto editorial de Leandro Gomes de Barros, tornando-se o maior editor de literatura de cordel de todos os tempos. Vendo que oitenta por cento dos folhetos vendidos nas feiras era de humor ou de pelejas, e tendo especial vocação para duelos verbais, inclinou sua pena para esse tipo de produção. Usando personagens reais e fictícias, escreveu mais de uma dezena de pelejas até hoje muito procuradas e lidas, como a de "Serrador e Carneiro". Ele é o príncipe dos poetas populares do Norte do Brasil. Um dos mais importantes cordelistas brasileiros, tornando-se um verdadeiro ídolo popular não apenas da gente pobre e humilde, semi-alfabetizada e mesmo analfabeta, do interior, mas da gente remediada e rica das zonas urbanas, capitais e cidades importantes, entre elas Salvador, Recife e Fortaleza.

FONTES:
CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1984.
______. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1984.
CAVALCANTI, Carlos Alberto de Assis. A atualidade da literatura de cordel. Recife: UFPE, 2007.
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, 2001.
MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril, 1980.
MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.

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