A NOITE DO RECIFE – O meu lugar pés no chão e o mundo escorre
minhas mãos pela areia de Boa Viagem, a mansidão da plaga pretérita e lembro o
tempo menino, era um só eu e o mar e o litoral, a moradia, sempre como a
primeira vez ainda hoje, o cheiro do sargaço página inteira do meu diário que
nem lembro ter escrito na areia da praia e grafado nalgum recôndito da memória
e nas comissuras dos lábios, como nos versos que perdi na Praça da Paz de
Afogados. Minhas pseudosílabas erravam ao pé da letra a me regalar por não ter
palavra apurada nos mangues que não são vistos por trás das desgraças em que
tudo é nada e não é e ai de quem perguntar onde fica qualquer coisa, porque
agora a ameaça salta aos olhos na foto em close difuso, não era assim. Não se
parece mais o meu rincão e me sinto deserdado e quem nasceu para isso e quem
não, as bizarras acontecências me assaltam e seja lá o nome que se dê a quem
agora não mais, só catinga das imundícies, fedores urinários, excreções
amontoadas nos meus olhos arregalados, peso nas têmporas, olheiras, dilatações,
mãos ao coração, cabelos aos ventos, sonhos apodrecidos, conciliábulos,
endereços, pescarias, luzes e obscuridade, tudo para o naufrágio da paisagem
com o mesmo impacto de antes no meu peito, ah, não mais. Sou capturado pelo
nariz como sempre, o sangue no paladar, garganta seca com o fumaceiro
irresponsável do lixo amontoado nas faces severas dos irmãos agora inimigos, quantas
promessas sequer cumpridas, encontros amantes, litígios e desavenças. Ainda guardo
o tempo que vivi Imbiribeira e quase morri, renasci na manhã de Pinheiros com fugas
por Piedade e Candeias, passeios a desaguar pelo sumidouro das fêmeas de Olinda
nos meus olhos acesos. Eu me via solto qual Capibaribe e parte do que sou
Beberibe no Cais do Apolo para que eu fosse ubíquo vestido do Recife e a herança
nas legendas diárias para fingir espectador de tudo ao redor e além do roteiro imprevisível
e solitário, sem destino, anoitecia o momento indiferente, eu que não era o
mesmo de antes e a lua intensa entre nuvens outonais que parecem primaveris ou
estivais, nunca se sabe nas âncoras perdidas do que me fiz. Agora é tudo tão
deserto, mesmo que pareça tão vitalizado pelas luzes, tudo isso me comove e
vivo, falsos remorsos que não sei nem reconheço, o que fizeram com meu povo, a
minha cidade quase erma na pracinha do Diário, tudo tão amedrontador, não era
assim na minha ingenuidade, mudou e o pior no pálido horizonte, não era assim, o
estremecimento dos temores, hesitações, comovente cenário, apreensão do perigo
no ar: a noite é dos que atacam e matam a cidade arruinada. Não era assim, com
as sombras nem parece, basta amanhecer e se denuncia a miséria, o instante é
muito inseguro e eu me ilumino na escuridão do que sou Guararapes e vivo para
que eu seja o Recife dos meus sonhos sequestrados. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Todos esses
rostos contemplados uma última vez antes que a noite os engolisse... alguns não
podiam nem imaginar que eu o abandonava. Outros me encaravam com olhos vazios.
[...] Lembro-me também dessas curiosas
pontadas no coração a cada vez que olhava o relógio: esperam há cinco, dez,
vinte minutos. Denunciar é muito mais fácil. Nada mais do que alguns segundos,
só o tempo de entregar nomes e endereços com precipitação na voz. Alcaguete. Tornar-me-ia
assassino até, se eles quisessem. Em seguida, contemplaria seus óculos,
chaveiros, lenços, gravas – pobres objetos que só têm importância para os seus
donos e que me comovem ainda mais do que o rosto dos mortos. Antes de matá-los
não tiraria os olhos de uma das partes mais humildes das pessoas: os sapatos. Engana-se
quem crê que a excitação febril das mãos, as mímicas do rosto, o olhar, a
entonação da voz, sejam as únicas coisas capazes de comover imediatamente. O patético,
para mim, encontra-se nos sapatos. E quando sentir remorsos de tê-los matado,
não pensarei nem no seu sorriso, nem nas suas qualidades morais, mas nos seus
sapatos. [...].
Trechos extraídos da obra Ronda da noite (Rocco, 2014), do escritor francês Nobel de
Literatura de 2014, Patrick Modiano.
A MÚSICA DE JACQUELINE
DU PRÉ
Precisamos
dar um ao outro o espaço para crescer, para sermos nós mesmos, para exercitar
nossa diversidade. Precisamos dar um ao outro espaço para que possamos dar e
receber coisas tão belas quanto ideias, abertura, dignidade, alegria, cura e
inclusão.
A música
da violoncelista britânica Jacqueline Du Pré (1945-1987), vítima de esclerose múltipla que a
impediu, aos 28 anos de idade, de atuar nos palcos. A sua história foi
transformada em filme, Hilary e Jackie (1998), dirigido por Anando Tucker, contando
a sua vida e a rivalidade com a sua irmã flautista Hilary, até perder a
sensibilidade dos dedos em 1971 e encerrando a carreira depois do último
concerto, em 1973. Suas derradeiras imagens foram ocultadas, estava ela
transfigurada, atrelada a uma cadeira de rodas e falecendo aos 42 anos de
idade. Veja mais aqui.
A ARTE
DE BRIGID BELIN
Minha mãe queria que eu
fosse uma socialite magra e respeitável. Em vez disso, me tornei uma desordeira
com excesso de peso.
A arte da fotógrafa e artista visual estadunidense Brigid
Berlin, também apelidada de Brigid Polk e que se tornou estrela das obras
de Andy Warhol, entre eles Chelsea Girls (1966) e Ciao! Manghattan (1972),
Pecker (1998), entre outas. Sobre ela foi realizado o documentário Torta no
céu: a Brigid Berlin Story (2000), no qual ela conta sua história de vida.
A OBRA DE PAGU
Tenho várias cicatrizes, mas estou viva.
Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respira.
A obra da escritora, diretora de teatro, desenhista,
jornalista, militante comunista e musa do Modernismo brasileiro, Patrícia
Galvão, ou simplesmente Pagu (1910-1962) aqui, aqui & aqui.