segunda-feira, junho 10, 2019

PAGU, PATRICK MODIANO, JACQUELINE DU PRÉ, BRIGID BERLIN & A NOITE DO RECIFE


A NOITE DO RECIFE – O meu lugar pés no chão e o mundo escorre minhas mãos pela areia de Boa Viagem, a mansidão da plaga pretérita e lembro o tempo menino, era um só eu e o mar e o litoral, a moradia, sempre como a primeira vez ainda hoje, o cheiro do sargaço página inteira do meu diário que nem lembro ter escrito na areia da praia e grafado nalgum recôndito da memória e nas comissuras dos lábios, como nos versos que perdi na Praça da Paz de Afogados. Minhas pseudosílabas erravam ao pé da letra a me regalar por não ter palavra apurada nos mangues que não são vistos por trás das desgraças em que tudo é nada e não é e ai de quem perguntar onde fica qualquer coisa, porque agora a ameaça salta aos olhos na foto em close difuso, não era assim. Não se parece mais o meu rincão e me sinto deserdado e quem nasceu para isso e quem não, as bizarras acontecências me assaltam e seja lá o nome que se dê a quem agora não mais, só catinga das imundícies, fedores urinários, excreções amontoadas nos meus olhos arregalados, peso nas têmporas, olheiras, dilatações, mãos ao coração, cabelos aos ventos, sonhos apodrecidos, conciliábulos, endereços, pescarias, luzes e obscuridade, tudo para o naufrágio da paisagem com o mesmo impacto de antes no meu peito, ah, não mais. Sou capturado pelo nariz como sempre, o sangue no paladar, garganta seca com o fumaceiro irresponsável do lixo amontoado nas faces severas dos irmãos agora inimigos, quantas promessas sequer cumpridas, encontros amantes, litígios e desavenças. Ainda guardo o tempo que vivi Imbiribeira e quase morri, renasci na manhã de Pinheiros com fugas por Piedade e Candeias, passeios a desaguar pelo sumidouro das fêmeas de Olinda nos meus olhos acesos. Eu me via solto qual Capibaribe e parte do que sou Beberibe no Cais do Apolo para que eu fosse ubíquo vestido do Recife e a herança nas legendas diárias para fingir espectador de tudo ao redor e além do roteiro imprevisível e solitário, sem destino, anoitecia o momento indiferente, eu que não era o mesmo de antes e a lua intensa entre nuvens outonais que parecem primaveris ou estivais, nunca se sabe nas âncoras perdidas do que me fiz. Agora é tudo tão deserto, mesmo que pareça tão vitalizado pelas luzes, tudo isso me comove e vivo, falsos remorsos que não sei nem reconheço, o que fizeram com meu povo, a minha cidade quase erma na pracinha do Diário, tudo tão amedrontador, não era assim na minha ingenuidade, mudou e o pior no pálido horizonte, não era assim, o estremecimento dos temores, hesitações, comovente cenário, apreensão do perigo no ar: a noite é dos que atacam e matam a cidade arruinada. Não era assim, com as sombras nem parece, basta amanhecer e se denuncia a miséria, o instante é muito inseguro e eu me ilumino na escuridão do que sou Guararapes e vivo para que eu seja o Recife dos meus sonhos sequestrados. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Todos esses rostos contemplados uma última vez antes que a noite os engolisse... alguns não podiam nem imaginar que eu o abandonava. Outros me encaravam com olhos vazios. [...] Lembro-me também dessas curiosas pontadas no coração a cada vez que olhava o relógio: esperam há cinco, dez, vinte minutos. Denunciar é muito mais fácil. Nada mais do que alguns segundos, só o tempo de entregar nomes e endereços com precipitação na voz. Alcaguete. Tornar-me-ia assassino até, se eles quisessem. Em seguida, contemplaria seus óculos, chaveiros, lenços, gravas – pobres objetos que só têm importância para os seus donos e que me comovem ainda mais do que o rosto dos mortos. Antes de matá-los não tiraria os olhos de uma das partes mais humildes das pessoas: os sapatos. Engana-se quem crê que a excitação febril das mãos, as mímicas do rosto, o olhar, a entonação da voz, sejam as únicas coisas capazes de comover imediatamente. O patético, para mim, encontra-se nos sapatos. E quando sentir remorsos de tê-los matado, não pensarei nem no seu sorriso, nem nas suas qualidades morais, mas nos seus sapatos. [...].
Trechos extraídos da obra Ronda da noite (Rocco, 2014), do escritor francês Nobel de Literatura de 2014, Patrick Modiano.

A MÚSICA DE JACQUELINE DU PRÉ
Precisamos dar um ao outro o espaço para crescer, para sermos nós mesmos, para exercitar nossa diversidade. Precisamos dar um ao outro espaço para que possamos dar e receber coisas tão belas quanto ideias, abertura, dignidade, alegria, cura e inclusão.
A música da violoncelista britânica Jacqueline Du Pré (1945-1987), vítima de esclerose múltipla que a impediu, aos 28 anos de idade, de atuar nos palcos. A sua história foi transformada em filme, Hilary e Jackie (1998), dirigido por Anando Tucker, contando a sua vida e a rivalidade com a sua irmã flautista Hilary, até perder a sensibilidade dos dedos em 1971 e encerrando a carreira depois do último concerto, em 1973. Suas derradeiras imagens foram ocultadas, estava ela transfigurada, atrelada a uma cadeira de rodas e falecendo aos 42 anos de idade. Veja mais aqui.

A ARTE DE BRIGID BELIN
Minha mãe queria que eu fosse uma socialite magra e respeitável. Em vez disso, me tornei uma desordeira com excesso de peso.
A arte da fotógrafa e artista visual estadunidense Brigid Berlin, também apelidada de Brigid Polk e que se tornou estrela das obras de Andy Warhol, entre eles Chelsea Girls (1966) e Ciao! Manghattan (1972), Pecker (1998), entre outas. Sobre ela foi realizado o documentário Torta no céu: a Brigid Berlin Story (2000), no qual ela conta sua história de vida.

A OBRA DE PAGU
Tenho várias cicatrizes, mas estou viva. Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respira.
A obra da escritora, diretora de teatro, desenhista, jornalista, militante comunista e musa do Modernismo brasileiro, Patrícia Galvão, ou simplesmente Pagu (1910-1962) aqui, aqui & aqui.