O CERTO & O ERRADO NO REINO DAS IDEOLOGIAS - Lembro-me bem quando menino sapeca, aos quatro anos de
idade, aprendendo o alfabeto, a saudosa prima-tia ensinava a ler e escrever,
ajeitando meus garranchos no caderno. Primeiro ela colocava a sua caligrafia formosa
e arredondada para eu preencher por cima e, depois, copiar embaixo tudo que ela
havia escrito. Lindo o seu olhar azulado e seu sorriso reluzente ao conferir a
tarefa cumprida: tudo a maior seboseira. Ela caía às gargalhadas, parecia mais
que eu já dava sinais de que não tinha jeito. Até ali, tudo que aprendera fora
imitando os pais, familiares, parentes e achegados. Dois anos depois das lições
dela toda tarde, fui fazer o primário na escola maçônica da Fraternidade
Palmarense, na qual a não menos fascinante professora Hilda, me encantava em
cada manhã de aula – tanto que pra ela diariamente escrevia uns versinhos que
foram publicados no suplemento Júnior, do Diário de Pernambuco. Eu já queria
ser poeta, pode? Queria. Daí pro ginasial, o trajeto do meu aprendizado: o nome
das coisas, a história dos vencedores, a forma como se comportar, conteúdos
muitos e diversos que iam desde a gramática e leitura das ciências e
matemática, tudo para que eu soubesse o que era certo ou errado. Os tempos eram
de Moral e Cívica na leva do Brasil ame-o ou deixo-o. Cá comigo eu desconfiava
muito de certas convicções que exacerbavam na retidão do caráter, valorizando a
virtude e o amor à Pátria, quando eu não entendia muito bem o significado de
virtude ou caráter, justiça ou direito, só somar, subtrair, multiplicar ou
dividir, sim senhor, sim senhora, responder às perguntas e ver grafado na prova
uma nota pros meus equívocos. Muitos professores não facultavam a possibilidade
de qualquer questionamento, devia prestar bem atenção e não perguntar nada, se
não entendesse que levasse a dúvida até o dia em que uma alma caridosa
resolvesse esclarecer. Por conta disso, não entendia muito bem a razão da
escola em si e de ali estudar, era tudo muito confuso: toneladas de informações
depositadas goela abaixo, disciplinas de todo tipo com conteúdos forçados e que
asseveravam ser inarredavelmente o certo a ser seguido por todos. Ou aprendia,
ou era burro. Todos os meus colegas não perguntavam nada, não queriam se passar
por iletrado jumento, só eu metido e cheio das pregas inventava de questionar pra
levar um toque de arrodeio com um riso sarcástico na minha cara: preste
atenção! E ali, como em qualquer lugar que chegasse, sempre identificava de um
lado a turma que rasgava elogios pras coisas e, do outro, a acerba trupe dos
insatisfeitos. Nessas ocasiões de confronto se fazia uso de costume adquirido
na escola: só balançar a cabeça. Quanto mais se esforçava para aguçar o
discernimento, mais a coisa se complicava. Como eu sempre quis ser um metido maior
do que sou, havia aquela minha intrometida insolência de adiantado e linguarudo
em saber o porquê dos porquês. Evidente que por causa disso eu não era bem
visto e excluído entre os da minha faixa etária, me dando mais com os mais
velhos, quando, na verdade, eu mais me sentia na relação, tanto com uns como
com outros, um peixe fora d’água. Ou eu não entendia nada, ou estavam todos me
enrolando. Foi na adolescência que eu dei um chega para lá: peraí, como é que é
mesmo, hem? Por conta própria comecei a folhear e pregar a vista em livros e
mais livros, coleções, enciclopédias, dicionários. Uns diziam isso, outros
diziam aquilo, maniqueístas de plantão; e como era farta a tuia de papagaios
tagarelas e sectários, quanto mais arremedo, maior algaravia. Quando não era o
bem e o mal, era o bonito e o feio, o bom e o mau, direita ou esquerda, pra lá
ou pra cá, pra cima ou pra baixo, de banda ou de lado, pra frente ou pra trás,
e por aí vai, cada um que puxasse destilando sua persuasão. Bastava qualquer
indagação para o que se parecia claro e exato se tornar bastante nebuloso,
fonte de discussões acaloradas de findar entre tapas e bofetes pela imposição
do ponto de vista desta ou daquela preferência. Entender que era bom, nada. Quanto
mais me diziam o que era certo, mais eu me convencia de que estava errado.
Quanto mais impunham o correto, mais se mostrava o equívoco. Muitas vezes
cheguei a desconfiar na constatação de que um era o outro: o certo errado e o
errado certo e, ainda por cima, vice-versa, até aprender que, na verdade, nem
existem, são só convencionados. É que no reino das ideologias ambos se definem,
se misturam e se estabelecem de acordo com a conveniência. Da minha parte
aprendi que além do 1 tem o 2, o 3, o 4 e... o infinito. Eu, hem? Vamos aprumar
a conversa. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
Curtindo a arte musical do compositor japonês
Nobuo Uematsu.
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DESTAQUE: HELIO PELLEGRINO
Caminha errante o velho rei da terra,
sangrando a cada passo o seu desterro.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.
Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.
Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte
desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.
Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.
Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte
desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente.
A cegueira de
Édipo,
poema extraído da obra Minérios Domados: Poesia Reunida (Rocco, 1993),
do psicanalista e escritor Hélio
Pellegrino (1924-1988).
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte do pintor francês Raoul Dufy (1877-1953).
DEDICATÓRIA:
A edição de hoje é dedicada à amiga Danicleci Matias Souza & Park kids Locadora
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra:
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.