DELURITO DESALMADO
OU STENDHAL SE REPETE... – Delurito nasceu como seu nome:
estranhamente. A mãe o pariu no dia que o pai foi emboscado e morto. Entre padrastos
ocasionais e outros invasores noturnos ganhou uma penca de irmãos. Cresceu para
liderar todos, inclusive os primos da vizinhança e vingar a morte paterna.
Contudo, por conta de uma simpatia oculta por uma das primas, era então
dominado por eles: o saco de pancada. Apelidos e mangações infernizavam sua
vida. Rosnava, apenas, nem ousava morder. Fulminava, deixava quieto e se acovardava.
Só caiu em si quando levou um fora da primamada ao falar namoro. Terrivelmente
abalado e prestes ao alistamento militar, gemeu inconsolável. Tombou morto de
ciúmes – ela preferiu outro. Foi à forra: ingressou no exército e nunca mais
deu as caras. Aí transformou-se. Que raio de nome é esse? Seguiu firme
engolindo humilhações nem advogou retificação de nome – isso em homenagem ao
pai assassinado. Um dia vingaria, destá. E começou quebrando o dente de um cabo,
inaugurou a cadeia. Começava aí sua fama desalmada. Ao longo dos anos ganhou
uma mudez implacável afora a reputação de invencível. Um olhar profundo de
arrepiar à covardia qualquer rival, tremiam todos na base. Tomou forma,
músculos expostos e uma crueldade sem precedentes, só aplacada pelos superiores
graúdos: Ainda chegarei a general. Bufava. Esbofeteou civil e patentes, passou
mais tempo preso, obrigado a mudar de conduta. Enganou todo mundo, silente,
aplicado. Chegou à patente de capitão quando resolveu dar o ar da sua graça aos
parentes. Quantos anos, quase duas décadas. Quase tudo. Não previu que ao bater
de cara com a paixão recolhida entraria em erupção. As vistas no namorado dela:
salafrário comunista. Pegou-lo pelo gogó e esmurrou de deixá-lo bambo, quase
sem vida. O pai da moça interveio e não deu outra: pediu de chofre a mão da
filha em casamento. Ou casava ou morria, escolham! Se não for minha, não será
de mais ninguém. Armou a cilada. O coitado paterno desamparado tremeu na base e
titubeou com o safanão levado de deixá-lo estendido ao chão, desacordado. Na
hora acuou a moça: Ou dá ou desce ao cadafalso! Bufou e todo mundo só no ó! Ora,
o tempo passou, ele já coronel e ela reprimida de anos: o medo pelas costelas,
dele mortes tantas nos costados. Às vésperas de se tornar general, foi dar as
boas novas pra ela: o flagra! Não era o que pensou, mas não aliviou vingado. Descarregou
sua fúria e munição da arma de deixar o suposto amante peneirado com sangue
saindo pelo ladrão. Não ouviu qualquer explicação dela, arrancou o pênis da
vítima e partiu pra cima dela, agarrando-a pelo pescoço, castigando-a de
tiquinho só pra vê-la gemer e gritar de dor: arrancou um dedo, depois dois, um
por um, todos, isso bem devagarinho, queria deixá-la em carne viva. Ela gritava
tentando se explicar e nada. Tome, safada! Arrancou as vestes e com um golpe de
quase decapitá-la torou o bico e amputou um seio, depois o outro. Quebrou-lhe
os dentes aos murros, sob ordem de cuspi-los fora; rasgou-lhe a boca – Vou
virá-la pelo avesso, desgraçada! Fraturou as clavículas dela com um caratê
mortal, deixou-la maneta; partiu um braço em bandas, depois o outro; desentranhou
na marra uma e todas as unhas, torando em seguida cada um dos dedos dos pés e
das mãos; destruiu-lhe os tornozelos, fraturou-lhe as pernas aos chutes; sacou
os joelhos fora; partiu as coxas ao meio; esfaqueou a vagina fora, furou-lhe os
olhos, um a um; quebrou-lhe o nariz, de puxá-lo até jogar fora; desfigurada
completamente e ao tê-la bamba aos farrapos, arrancou-lhe o coração e sacudiu longe.
Puxou-lhe a pele e a esquartejou. Depois saiu arrastando aos urros insanos os
restos mortais dela pela rua afora. O povo escondido por trás das janelas: Bem
empregado. Nunca mais se soube dele, dizem: morreu espumando a fúria de sua
ruindade! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS - Nosso mundo contemporâneo apresenta
atitudes que estão arreigadas em traumas históricos, recalcados, transformados
em comportamentos de violência, guerras, destruição de semelhantes. Essas
atitudes repetem-se revelando feridas sociais ocultas. Se não lidarmos com os
efeitos dessas dicotomias dominação-submissão, abundância-pobreza, cuidando dos
traumas subjacentes por elas gerados, não se poderá encontrar uma forma de
convívio social saudável. O nosso mundo atual, onde a violência, a guerra e o
desrespeito á natureza fazem parte de um ciclo vicioso que revela a desconexão
do ser humano com sua natureza amorosa e com a qualidade autorreguladora da
própria natureza. Pensamento da
professora e arteterapeuta antroposófica Lael Keen.
ALGUÉM FALOU - O humor
desarma os poderosos e capacita os oprimidos, tornando a verdade inegável e
impossível de ignorar... Pensamento do humorista, comediante, ator
e escritor estadunidense George Carlin (1937-2008), que no monólogo Seven
Dirty Words (Class Clown, 1972) pelo
qual foi preso expressa: Merda, porra, foda, buceta, filho da puta, cuzão e
cacete. Essas são as sete palavras pesadas. Essas são as que vão infectar sua
alma, curvar sua coluna e impedir que o país ganhe a guerra. Em outro monólogo ele ironiza as pessoas que visitam Las
Vegas: Pessoas que vão para Las Vegas, é preciso questionar a
porra do intelecto delas para começar. Viajar centenas ou milhares de
quilômetros para essencialmente dar seu dinheiro a uma grande empresa é meio
idiota. Isso é o que eu sempre recebo aqui, esse tipo de gente com uma porra de
um intelecto muito limitado. Durante o show Life
is Worth Losing, ele expressou: Eu vejo as coisas desta forma... Durante séculos, o homem tem feito tudo o
que pode para destruir, contaminar e interferir na natureza: desmatando
florestas, minando montanhas, envenenando a atmosfera, pescando excessivamente
nos oceanos, poluindo os rios e lagos, destruindo pântanos
e aquíferos... então, quando a natureza contra-ataca e dá um tapa na cabeça
dele e lhe dá um chute nas bolas, eu gosto disso. Não tenho absolutamente nenhuma
simpatia pelos seres humanos. Nenhum. E não importa que tipo de problema
os humanos enfrentem, seja ele natural ou provocado pelo homem, espero sempre
que piore.Por
fim, em sua apresentação You Are All Diseased, ele disse ao
público: Eu sempre estive disposto a me colocar em grande perigo pelo bem do
entretenimento. E eu sempre estive disposto a colocar vocês em grande perigo
pelo mesmo motivo! Arrisquem-se! Ponham um pouco de diversão em suas vidas! A
maioria dos estadunidenses são moles e medrosos e sem imaginação, e eles não
percebem que existe uma coisa chamada diversão perigosa, e eles certamente não
reconhecem um bom espetáculo quando veem um.
PREPARAÇÃO DO ROMANCE - [...] As atrações da subjetividade são melhores que as imposturas da objetividade.[...] o campo da Vita Nuova só pode ser a escrita: descoberta de uma nova prática de escritura [...] Por quê? Nesse nível, toda explicação de decisão é incerta, pois não se conhece a parte do inconsciente – ou: a verdadeira natureza do desejo empenhado. Direi, em plena consciência: porque há um sentimento de perigo [...] Poesia = prática da sutileza num mundo bárbaro. Daí a necessidade de lutar hoje pela Poesia. [...] Agora, enquanto o destino se aproxima e as horas respiram de leve, as areias do tempo se transformam em grãos de ouro. [...] Paradoxo que articula este curso, Proust e o haicai se cruzam: a forma mais breve e a forma mais longa. [...] O autor de haicais, o Homem do haicai: um budista imperfeito, relaxado, talvez astuto: um mestiço de Tao. Penso nesse apólogo: Bodhidharma (o introdutor mais ou menos mítico do Zen na China, por volta de 520) ele teria se retirado num mosteiro e aí teria passado nove anos numa cela, ‘olhando a parede’ (em Chinês, Pikuan): excluir do pensamento todo o desejo de agarrar [...] O Haicai não é uma ingenuidade, é antes uma terceira volta de parafuso dada à linguagem (linguagem sobre o fato). Eu me explico: uma parábola Zen diz, num primeiro tempo: as montanhas são montanhas; segundo momento (digamos de iniciação): as montanhas não são mais montanhas; terceiro momento: as montanhas voltam a ser montanhas → É uma volta em espiral → Poderíamos dizer: primeiro momento: o da Tolice (ela existe em todos nós), momento da tautologia arrogante, do antiintelectualismo, um vintém é um vintém etc; segundo momento: o da interpretação; terceiro momento: o da naturalidade. [...] Enorme condicionamento do Ocidente a dar, a todo fato contado, o álibi de uma interpretação: civilização de padres; nos interpretamos, não suportamos as formas curtas de linguagem. O haicai é impossível para nós. [...] Coloco-me realmente na posição de quem faz alguma coisa, e não mais de quem fala sobre alguma coisa: não estudo um produto, endosso uma produção; elimino o discurso sobre o discurso; o mundo já não vem a mim sob a forma de um objeto, mas sob a de uma escritura, quer dizer, de uma prática: passo para outro tipo de saber (o do Amador) e é nisso que sou metódico. [...]. Trechos extraídos da obra The Preparation of the Novel: Lecture Courses and Seminars at the Collège de France, 1978-1979 and 1979-1980 (Martins Fontes, 2005), do escritor, sociólogo, filósofo, semiólogo e crítico literário francês, Roland Barthes (1915-1980). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
KLEE WYCK – […] Os índios não impedem o progresso
dos seus mortos através do embalsamamento ou do caixão apertado. Quando o espírito se vai, eles
devolvem o corpo à terra. a terra acolhe o corpo - extrai dele
nova vida e beleza, apressa-se com aquilo que faz os homens estremecerem. A adorável erva tenra irrompe das
sepulturas, rapidamente, exultando com a corrupção. [...] No fundo, todos nós abraçamos alguma coisa. A grande floresta abraça o seu
silêncio. O mar e o ar abraçam os gritos
derramados das aves marinhas. A floresta abraça apenas o silêncio; seus pássaros e até mesmo seus
animais são mudos. Deve ter doído terrivelmente aos
índios ver as coisas em que sempre acreditaram serem pisoteadas e arrancadas de
seus abraços. [...] O velho serrou como se eras de tempo
estivessem diante dele, e como se todos os anos atrás dele tivessem sido
vagarosos e todos os anos à sua frente fossem igualmente ociosos. A vida havia adoçado o velho. Ele estava delicioso com o tempo,
como as frutas vermelhas da temporada dos morangos.[...] Trechos
extraídos da obra Klee Wyck (Douglas
& McIntyre, 2004), da escritora e pintura canadense Emily
Carr (1871-1945).
TRÊS POEMAS - I - Uso
uma língua \ de respiração incerta, \ pois não percorre\ nem a medula\ nem a
torção\ do verbo: já não sabe amputar os rostos \ ainda vivos nos retratos\ e
deserta em mim a voz. II - Eles não sabem que são anjos \ os anjos que vivem conosco no campo: \ acostumado a vasculhar o lixo \ Eles conhecem a fome do estômago, \ cãibras musculares. \ Eles agitam suas línguas \ como fruta caída podre no chão, \ na torre daquela babel horizontal aqui, \ onde o latim eslavo lança suas sementes \ pessoas que amadurecem tardiamente \ no fígado do dia nós destilamos nosso álcool. III - Somos uma espécie que migra,\
sem rastros nem restos na memória\ das gentes. Sombras, apenas,\ palavras em
mutação, segredos\ esses três pregos na fíbula do esqueleto.\ Um dia a
tempestade chega e nos pega\ na encosta, onde largamos as flechas.\ Animais
dormem dentro do tempo,\ enquanto mães cultivam hortas e facas.\ Logo surgem a
chuva e o medo. E voltamos\ à marcha, afastamos as nuvens,\ apenas um cão nos
segue, silente\ paciente, rumo ao norte. Poemas da poeta, tradutora
e professora suíça Prisca Agustoni.