domingo, novembro 09, 2025

CRISTINA RIVERA GARZA, ISABEL WILKERSON, NADYA TOLOKONNIKOVA & NATARA NEY

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns CinePoesia (2020), A Mil Tons (2017), Cartas brasileiras (2006) e Quinteto (1999), da compositora, arranjadora e flautista Léa Freire (Léa Silvia de Carvalho Freire).

 

Elegia à catábase de Simone... - Ao despertar, aquela era a mais perfeita das manhãs e ela recendia iluminada pela satisfação, aspirando o sublime aroma de uma felicidade indestrutível, indizivelmente feliz. Transpirava às voltas com seus êxtases sentimentais e compreendia por si, sem que precisasse de maiores explicações. Era professora desde nascença, brincava ensinando os deveres às bonecas, dava aulas para aves e árvores do quintal, ou quem aparecesse às suas tranças na face rosada, fulgurava pelo ondulante canavial da paisagem, sentada à murada da cacimba, com suas fantasias eloquentes. Ali naquele quintal vestia-se hierática de todas as saudades, com o frescor adorável de imaculadas rosas nos canteiros de flores. Parecia viver numa fabulosa névoa onírica, o sorriso atravessava a primavera e nela o pássaro havia por toda parte. Quando não se fazia deliciosamente acolhedora pelas venerações outonais, pela casa toda, herdada dos pais, desde o terraço antigo dos inumeráveis momentos das risadas perduráveis no calor estival, em que ressoavam os ecos de sua infância, a intimidade invernosa de sua adolescência na visagem de seus antepassados flutuantes e dali o amor a fizera solitária, porém feliz. Assim todos os dias desde que se entendeu por gente e, obstinada, perseguia seus propósitos, como se nadasse um oceano imenso às braçadas por atravessá-lo triunfante, inteiramente alegre e segura. Inebriava com sua lindeza irrepreensível e ao seu modo, mesmo quando as nuvens roçavam a colina e a noite cobria todo o lugar, as pálpebras úmidas sobressaiam ao fechar os olhos contida, com as crepusculares sensações do dever cumprido. Estendia a mão às ocasiões e espargia condecorações e entusiasmos. Comoventemente formidável seguia seu caminho serena e imponente, o senso de justiça e a sinceridade à toda prova, feliz com o corpo que habitava esgueirando-se pelo tumulto das ruas, os transeuntes no tráfego, a dignidade extrema, a força do próprio esplendor. Conhecia as pessoas por instinto e delas aprendera o tanto quanto havia chorado no quarto, a perda dos pais e a perpétua sensação na ênfase da pulsação ressoante pelas boas recordações. Com ela tudo era digno de nota e desconhecia o quão perigoso era viver. Tinha de sair e assim o fez. Aprontou-se, ganhou o mundo. Ao retornar de Porto de Galinhas depois do meio dia, recolheu-se ao quintal e revivia, deparando-se consigo mesma: um lance de dados e o inescrutável, quem estorvaria? Nem passava pela cabeça a malquerença duma câmara de furiosos evangélicos se passando por tirânicos parlamentares, vingativos legionários dementadores possuídos pelo ódio do deus deles, aos berros propagadores de um inexorável Jesus armado até os dentes, implicados em escusas malversações do erário público da edilidade, em conluio com gestores municipais desse Brasilzão do Fecamepa. O ressentimento deles à flor da pele e tudo estava perdido. Subitamente ela empalideceu, o mistério roçava e por um imprevisível segundo o petardo do fuzil desfigurou sua face. Nem deu tempo ao sobressalto, aterrorizada, o braço pendente, a dor física e o arrepio, quedou com os vastos sonhos desabando desprevenidos pelo silêncio. Foi às profundezas como se fosse Marielle no meio da tarde e, como o escândalo de Ângela, ela caiu Mendietta, a vida interrompida e nem deu tempo de entoar Loalwa: “Chorando se foi”... Não se despediu feito Sharon, outra Grammont se calara... E era só a professora Simone de Ipojuca, uma Marques da Silva incluída às estatísticas de cada 10 minutos. A fisionomia esmagada no quintal, a identidade irreconhecível seria talvez a recompensa, só Deus sabia, o enorme golpe, a vida violada, o sangue esguichando, a brusca realidade e o sonho se dissipava ausente, chegava a hora irrevogável e o último suspiro: a estase se confundia com as trevas, como se fosse o quanto a dizer no seu cortejo. Até mais ver.

 

Bell Hooks: O amor verdadeiro raramente é um espaço emocional onde as necessidades são instantaneamente satisfeitas. Para conhecer o amor, precisamos investir tempo e comprometimento... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Liane Moriarty: Muitos segredos dolorosos são melhores ficando guardados. O problema é que as pessoas acham tão difícil mantê-los... Veja mais aqui & aqui.

Scholastique Mukasonga: Os livros eram túmulos de papel que eu tinha que construir para minha família e para cada vítima que, perdida no anonimato do genocídio, permanece sem sepultura. Como esse túmulo tinha que ser digno delas, sempre me preocupei em escrever bem... Veja mais aqui & aqui.

 

A GEOLOGIA DO LOCAL

Imagem: Acervo ArtLAM.

Antes da destruição e da poeira roxa pálida \ antes do início daquele lento ajuntamento de \ ruínas feridas \ antes que os edifícios de San Antonio Abad \ se transformassem em bolos de vários andares de um estilo rococó distante. \ antes de percebermos que o Trovador de Tampico \ jazia algures debaixo de La Roma \ Só se ouvia ruído. \ Esse barulho. \ Um tremor áspero, \ um gemido tuberoso que vinha de longe e de dentro, \ o estertor de um longo e sufocado bocejo, \ um facão polido, \ uma voz sem voz. \ o som perseguindo-se dentro da própria \ garganta. \ Assim nasceu o antes e assim nasceu o depois. \ Uma desgraça inaugural com um anel de morto no dedo. \ E assim nasceram os quebrados. \ E nasceram as formigas que carregaram os restos \ pouco a pouco. \ E renasceram as baratas iridescentes voando \ de canto a canto. \ Os cantos nasceram. \ Ângulos de luz onde a luz se tornava sinistra. \ Nichos gotejando sêmen e ozônio. \ Esse era o contexto. \ Ali, todos nós nascemos \ caindo. \ Lascas espiraladas de hélio. \ Rodeada por soldados \ de um cinza único, \ a cidade era um corpo encolhido em forma de bola no amplo \ leito do seu vale, \ repleto de dor \ e carregado de milagres, \ como uma mulher que sangra por baixo.

Poema da premiada escritora e professora mexicana Cristina Rivera Garza. Veja mais aqui.

 

LEIA & REVOLTE-SE – [...] Não queremos ser pessoas passivas e conformistas, falsas e entediantes, seduzidas pelo conforto e presas a um ritual repetitivo e interminável de consumo, que continuam comprando porcarias que nos são jogadas como migalhas, que esquecem como fazer perguntas honestas e importantes, que apenas tentam sobreviver ao dia a dia. [...] Os sistemas atuais falharam em fornecer respostas aos cidadãos, e as pessoas estão buscando alternativas fora do espectro político tradicional. Essas insatisfações estão sendo exploradas por políticos de direita, nativistas, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e alimentar toda essa situação agora oferecem a salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de desfinanciar um programa ou agência reguladora que desejam eliminar, para depois usar a ineficácia resultante como prova de que precisa ser extinto. [...] Quero intensificar minha vida. Quero atingir a densidade máxima, viver nove vidas em uma só. É uma busca por vidas, não por experiências. [...]. Trechos extraídos da obra Read & Riot: A Pussy Riot Guide to Activism (Coronet, 2020), da musicista, escritora, artista conceitual e ativista russa Nadya Tolokonnikova (Nadejda Andreevna Tolokonnikova). Veja mais aqui & aqui.

 

CASTA: AS ORIGENS DOS NOSSOS DESCONTENTAMENTOS – [...] Na nossa era, não basta ser tolerante. Você tolera mosquitos no verão, um barulho estranho no motor do carro, a lama cinzenta que se acumula na faixa de pedestres no inverno. Você tolera aquilo com que preferiria não ter que lidar e que gostaria que desaparecesse. Não há honra em ser tolerado. Todas as tradições espirituais ensinam a amar o próximo como a si mesmo, e não a apenas tolerá-lo. [...] A empatia radical significa dedicar-se a se educar e a ouvir com humildade para compreender a experiência do outro a partir da perspectiva dele, e não da forma como imaginamos que nos sentiríamos. A empatia radical não se trata de você e do que você pensa que faria em uma situação que nunca vivenciou e talvez nunca vivencie. É a conexão profunda, baseada em um conhecimento profundo, que abre seu espírito para a dor do outro, tal como ele a percebe. A empatia não substitui a experiência em si. Não podemos dizer a uma pessoa com uma perna quebrada ou um ferimento a bala que ela não está sentindo dor. E as pessoas que nasceram em uma posição privilegiada não têm o direito de dizer a uma pessoa que sofreu sob a tirania do sistema de castas o que é ofensivo, doloroso ou humilhante para aqueles que estão na base da pirâmide social. O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê outra pessoa sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta dominante pode fazer é não piorar ainda mais a dor do outro. [...] Um sistema de castas é uma construção artificial, uma classificação fixa e enraizada do valor humano que estabelece a suposta supremacia de um grupo em relação à suposta inferioridade de outros grupos. [...] O sistema de castas é insidioso e, portanto, poderoso, porque não se trata de ódio, nem é necessariamente algo pessoal. São os hábitos arraigados de rotinas reconfortantes e expectativas irrefletidas, padrões de uma ordem social que existem há tanto tempo que parecem a ordem natural das coisas. [...] O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê outra pessoa sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta dominante pode fazer é não piorar ainda mais o sofrimento. [...] Somos responsáveis pela nossa própria ignorância ou, com o tempo e uma busca sincera pelo conhecimento, pela nossa própria sabedoria. [...] Escolher não olhar, porém, é por sua própria conta e risco. O dono de uma casa antiga sabe que aquilo que você ignora nunca desaparecerá. O que quer que esteja à espreita continuará a se deteriorar, quer você escolha olhar ou não. A ignorância não oferece proteção contra as consequências da inação. Aquilo que você deseja que desapareça continuará a te atormentar até que você reúna a coragem para enfrentar o que preferiria não ver. [...] A escravidão não foi meramente um acontecimento infeliz que atingiu as pessoas negras. Foi uma inovação americana, uma instituição americana criada por e para o benefício das elites da casta dominante e imposta por membros mais pobres da casta dominante que vincularam seu destino ao sistema de castas em vez de à sua consciência. [...]. Trechos extraídos da obra Caste: The Origins of Our Discontents (Randon House, 2020), da premiada jornalista estadunidense Isabel Wilkerson. Veja mais aqui.

 

A ARTE DE NATARA NEY

A arte da montadora, roteirista e diretora de cinema Natara Ney, que já montou e roteirizou 20 longa-metragens, 5 séries para TV e diversos videoclipes. Ela dirigiu os filmes Elza Infinita (2021), Um outro ensaio (2010), Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020), Cafi (2021) e Quem Ela Pensa que É? (Série de TV - 2024). Já roteirizou Divinas Divas (2016), O curioso (2010), Além Hamlet (2007), entre outros. Veja mais aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.

 


sábado, novembro 01, 2025

ISABELLE STENGERS, JACKIE KAY, SAMANTHA SHANNON & VAL MARGARIDA

 Imagem: Acervo ArtLAM.

A cor muda com cada modulação, mas a cor dominante é a da tonalidade em que a peça é escrita. Não acontece sempre que tocas ou ouves música e não ajuda necessariamente a memorizar a música, mas é, no entanto, uma coisa bonita de experimentar...

Pensamento ao som do álbum Water (Deutsche Grammophon, 2016), da pianista francesa, Hélène Grimaud (Hélène Rose Paule Grimaud), com peças de piano de autores como Berio, Ravel, Liszt, Debussy, Fauré, Albéniz, Janácek, Toru Takemitsu, Nitin Sawhney, entre outros. Ela é fundadora do Wolf Conservation Center, de New York, e autora dos livros Variations sauvages (Robert Laffont, 2003), Leçons particulières (Robert Laffont, 2005) e Retour à Salem (Albin Michel, 2013). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

 

Pavoa real, o arco-íris de plumas... - Céu azul de muitas nuvens na brisa da tarde e a lua quarto crescente na boca da mata: era a ilha de João Ubaldo. O arco-íris de Rubem Braga em confronto na relva: a Pavoa diante de uma cobra-de-veado sibilando freneticamente. A réptil poiquilotérmica armou-se como uma naja, tal atroz inimiga atiçando-a sarcástica, como na fábula de La Fontaine das queixas à Juno Hera. A insolência da rastejante fê-la inchar o papo colorido proeminente do Anambé-preto, com o canto grave do grande Pavó, no pescoço vermelho do Jacu-touro, no bico azul-claro do Jacupiranga. E assim invocava os poderes mágicos do sagrado Pavão Celestial para enfrentar todos os monstros míticos, todos os dilemas éticos, rios caudalosos, florestas densas e montanhas magistrais. A ave vaidosa deixou-se envolver pela sinistra, enroscando-se pelas escamas grossas de suas patas, como se olvidasse Paracelso: a ousada venenosa era seu alimento predileto, ofiófaga – não sabia dela o anjo Melek Taus, que criou todas as coisas e disso se arrependeu a chorar por 7 mil anos, para que suas lágrimas enchessem 7 jarras na extinção do inferno; muito menos de Tawûsê Melek, dos presentes de Salomão e de Oxum. A serpente agarrou-se ao tronco dela, quem perdoaria a picada e o pecado mortal do golpe píton. A emplumada bípede então piou de novo e os italianos disseram: era a voz do demônio na plumagem de anjo. E inflou incorporando em si o que era azul indiano, o verde asiático, o congolês, o Spalding, o leucístico, o papa-moscas do Pará, o arlequim, o dos ombros negros, brancos e albinos, até o de Taubaté. Assim abriu a cauda grave, recolorida e, penas arqueadas, suas garras longas e afiadas, velozes e ágeis, por trás da cabeça da víbora, a sacudí-la vigorosamente e cada bicada a dilacerá-la, até matá-la e digeri-la. Assim, um homem mata outro e quantos predadores devoram suas presas. A cena se repetia, a mesma de zis outras, revistas, repassadas. E quem testemunha sonhou como num filme em cartaz, deleite da plateia, divertido passatempo. Mas quem incrédulo presenciou o triunfo de vê-la ao Natyadharmi, guardando os seus 100 olhos de Argos Panoptes num poema de Ovídio. Viu-me ali e abriu o coração com o mantra da compaixão do Bodisatva: Om mani padme hū, Avalokiteshvara. Fez o ritual do acasalamento na dança de Krishna, enquanto transmudava na guerreira Kaumari, girando para mostrar-se deusa Santoshi, e sucessivamente era Yashumin, era Lakshmi, enfim Iemanjá com a sua paz de jardim do éden. Aproximou-se para me levar sonâmbulo à Cachoeira dos Andrades, no Vale do Mucuri. Chegando lá me levou à formosa Pedra do Lambuza e já era mais de meia noite, lua cheia de sexta pela Lagoa do Come Calado, pulsante refulgia e o ser alado levitava ao meu lado. Acomodou-me no seu privado valhacouto, com a profusão de seus insondáveis abismos na dignidade do silêncio e em mim fez um mundo povoado de lembranças secretas. Até mais ver.

 

Cecília Meireles: Adestrei-me com o vento e minha festa é a tempestade... Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Anne Sexton: Cuidado com o intelecto, porque ele sabe tanto que não sabe nada e te deixa de cabeça para baixo, balbuciando conhecimento enquanto seu coração cai da sua boca... Aproxime o ouvido da sua alma e ouça com atenção... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Erika Mann: As ações podem ser julgadas de acordo com o tempo e o lugar, e seus valores podem mudar; mas o estilo e a linguagem (além do conteúdo) são cristalizados no momento em que são criados... Veja mais aqui & aqui.

 

DELA

Imagem: Acervo ArtLAM.

Já me falaram dela. \ Como ela sempre, sempre. \ Como ela nunca, nunca. \ Eu observei e ouvi, \ mas ainda assim me apaixonei por ela, \ como ela sempre, sempre. \ Como ela nunca, nunca. \ Na pequena noite corajosa, seus lábios, momentos de borboleta. \ Tentei pegá-la e ela riu uma gargalhada tão alta \ que me partiu em duas, \ mas então me contaram sobre ela, \ como ela sempre, sempre. \ Como ela nunca, nunca. \ Nós duas ouvimos o vento. \ Nós duas galopamos a passos largos. \ Nós duas, para cima e para longe, \ para longe, para longe. \ E agora ela se foi, como disse que iria. \ Mas então me falaram sobre ela \ – como ela sempre, sempre iria.

Poema extraído da obra Life Mask (Bloodaxe, 2005), da escritora e dramaturga britânica Jackie Kay (Jacqueline Margaret Kay), autora de obras como Other Lovers (1993), Trumpet (1998) e Red Dust Road (2011). Veja mais aqui.

 

O PRIORADO DA ÁRVORE LARANJA - [...] Podemos ser pequenos e jovens, mas abalaremos o mundo por nossas crenças. [...] Não consigo dormir porque tenho medo não só dos monstros que estão à minha porta, mas também dos monstros que a minha própria mente consegue criar. Aqueles que vivem dentro de mim. [...] Quando a história não consegue esclarecer a verdade, o mito cria a sua própria versão. [...] Algumas verdades são mais seguras quando enterradas. Alguns castelos são melhores quando permanecem no céu. Há esperança em histórias que ainda não foram contadas. [...] Mas quando o coração fica muito cheio, ele transborda. E o meu, inevitavelmente, transborda para uma página. [...]. Trechos extraídos da obra The Priory of the Orange Tree (Bloomsbury Publishing , 2020), da escritora inglesa Samantha Shannon, autora de obras como The Song Rising (2017), The Mime Order (2015) e The Bone Season (2013).

 

EM TEMPOS CATASTRÓFICOS: RESISTINDO À BARBÁRIE QUE SE APROXIMA - [...] Ao escrever este livro, situo-me entre aqueles que querem ser herdeiros de uma história de lutas travadas contra o estado de guerra perpétuo que o capitalismo impõe. É a questão de como herdar essa história hoje que me faz escrever. […] Esse ato primordial que torna o homem genuinamente ele mesmo precede todas as ações individuais; mas imediatamente após ser posto em liberdade exuberante, esse ato afunda na noite da inconsciência. Não se trata de um ato que possa acontecer uma vez e depois cessar; é um ato permanente, um ato sem fim e, consequentemente, nunca mais poderá ser trazido à consciência. Para que o homem conheça esse ato, a própria consciência teria que retornar ao nada, à liberdade ilimitada, e deixaria de ser consciência. Esse ato ocorre uma vez e imediatamente afunda novamente nas profundezas insondáveis; e a natureza adquire permanência precisamente por meio dele. Da mesma forma, essa vontade, posta uma vez no início e então conduzida para o exterior, deve imediatamente afundar na inconsciência. Só assim é possível um começo, um começo que não deixa de ser um começo, um começo verdadeiramente eterno. Pois também aqui é verdade que o começo não pode se conhecer. Esse ato, uma vez feito, é feito por toda a eternidade. A decisão de que de alguma forma deve realmente começar não deve ser trazida de volta à consciência; não deve ser revogada, pois isso equivaleria a ser retomada. Se, ao tomar uma decisão, alguém retém o direito de reexaminar sua escolha, nunca dará um passo adiante. […] É a barbárie que hoje é tristemente previsível. Mas o teste aqui é, mais uma vez, abandonar sem nostalgia nem desencanto o estilo épico e sua grande narrativa de emancipação, na qual o Homem aprende a pensar por si mesmo, sem precisar mais de próteses artificiais. Essa grande narrativa nos envenenou, não porque nos tivesse atraído com a perspectiva ilusória da emancipação humana, mas porque nos deu uma versão degradada dessa emancipação, marcada pelo desprezo por aqueles povos e civilizações que nossas categorias julgaram muito antes de nos comprometermos a trazer-lhes, com seu consentimento ou pela força, nossa iluminação. Não nos reconhecemos em seus rituais, suas crenças, seus fetiches, essas próteses artificiais das quais fomos capazes de nos libertar? […]. Trechos extraídos da obra In Catastrophic Times. Resisting the Coming Barbarism ( Open Humanities Press 2015), da filósofa e historiadora belga Isabelle Stengers. Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

A ARTE NAIF DE VAL MARGARIDA

A arte da artista e professora Val Margarida, que participou do Festival Internacional de Guarabira (FIAN); expôs na Feira de Arte de Goiás (Fargo) e foi selecionada para participar do Encontro Nacional de Arte Naif do Centro-Oeste-E BANCO/2019. Veja mais aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.


 

 

domingo, outubro 26, 2025

VINCIANE DESPRET, CRISTINA PERI ROSSI, MELBA ESCOBAR, THAÍS ALCOFORADO & PINTANDO NAS PRAÇAS

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Minha música foi revelada ao mundo através do lançamento do meu primeiro álbum e minha carreira musical começou a se desenvolver e crescer lentamente a partir daí. Foi uma progressão natural que eu alimentei, alimentei e continuei trabalhando duro para continuar seguindo em frente...

Pensamento ao som dos álbuns Becalmed (2010), Night Sky (2012), Wide Asleep (2016), Yonder (2017), Scattered on the Wind (2020), Echoes In The Valley (2021), A World Outside (2023) e Become the Sky (2025), da pianista e compositora australiana Sophie Hutchings.

 

A festa épica panapaná... – Era a vez do pastoril: Eu sou uma borboleta, pequenina e feiticeira, ando no meio das flores procurando quem me queira... E começou a encenação: Despertai ó humanidade: É a Festa do Sol no solstício de verão do nosso jardim repleto de paineira-rosa, caraguatás e gravatás, ora-pro-nobis e flor-de-fogo. Viva!!! A menina nasceu, Frei Gaspar, pra festa dos irmãos Valença. Viva!!! Despertai ó humanidade, chegamos desde o meio do Eoceno para celebrar o nosso Hanamatsuri! A orquestra de pau e corda está pronta com o terém-tém-tém da viola, o golpeado do pandeiro: potoc-toc-toc, o seu tremulado, o seu balançado. Viva!!! Vamos fazer as jornadas que a lua nasceu no Egito! E haja festa: É hora da louvação / louvem todas a voar / salves os vivos e mortos / e tudo mais vamos louvar! Louvemos a menina que nasceu! Viva!!! Louvemos a bem-aventurada Psiquê, que veio abençoar a natalidade! Viva!!! Louvemos as borboletas que, no Bhagavad Gita, é a mulher, o espírito viajante e a ressurreição. Viva!!! Louvemos o Tochmarc Étaíne dos Ulaide! Viva!!! Louvemos Itzpapalotl do paraíso de Tomoachan, com seu manto invisível de obsidiana. Viva!!! Louvemos os amantes Liang Shanbo e Zhu Yingtai! Viva!!! Louvemos a injustiçada rainha Lâmia! Viva!!! Louvemos Mariana, a protetora do lago do Pará e as irmãs turcas, Jarina, Herondina e Mariana! Viva!!! Louvemos Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota! Viva!!! Louvemos a pedra do fogo ctoniano oculto, o número do centro do mundo, o Sol do tempo da guerreira no céu das águias! Viva!!! Louvemos o trâmite do ovo, a pupa, a crisálida e a imago! Viva!!! É a hora do Auto dos Trovadores, a Gaia Ciência no XIV soneto de Cláudio Manoel da Costa: Quem deixa o trato pastoril amado \ Pela ingrata, civil correspondência, \ Ou desconhece o rosto da violência, \ Ou do retiro a paz não tem provado... E viva os brincantes: a Pavão-escarlate é a Mestra; a Azul-de-cauda-longa é a Contra-mestra; a Monarca é a Diana; e a Oitenta-e-oito, a Capitão-do-mato, a Olho-de-pavão, a Olho-de-coruja e a Zebra juntam todas as pastorinhas. Viva!!! E vamos pra longa viagem! Não tem homem nesta festa, não? Doro logo adiantou-se invocando Aguinados e Aurelianos pros Villancicos! Alto lá, adiantado, já vimos suas presepadas. E ficou na plateia entre floricultores, lepidopterista, entomólogos, taxidermistas, borboletários, mariposas, bichos da seda, mandrovás, lagartas, taturanas, besouros, joaninhas, marimbondos, abelhas, vespas e moscas. Nada de puçá nem motefobistas, nem orioles, aranhas, louva-a-deus, formigas, sapos, lagartixas e vespas, viu? Logo apareceu o velho Rabeca com uma glíptica asteca, fazendo mesuras em honra ao imortal jardineiro Yan-k'o. Viva!!! A menina nasceu! Viva o cordão azul! Viva!!! Viva o cordão encarnado! Viva!!! Quem é a mais bonita? Vamos pro baile das flores de Itapipoca! Bora!!! E todas exibiram seus diademas e tiaras, suas fitas e requebros, seus cintos e seus coletes decotados. “Quem quiser que se remexa / para ver se não apanha / minha volta é cruel / o encarnado é quem ganha!”. Logo surgiu a Borboleta Azul que invocou os seus simpatizantes. A festa corria solta e foi a maior disputa, cada qual a preferida de muitos. Com o impasse do empate, deu-se a despedida, quando soou o alarme: Beija-flor! Foi a maior correria, todas buscando abrigo. Psiquê interviu: Pare! Nobre deusa, quanta honra, minhas reverências! Você não é bem-vindo! Como assim? Este é um festejo privado! Ah, a senhora não sabe? Sou Coacyaba, vim ver minha filha Guanamby, encontrar minha noiva e anunciar meu casamento! A deusa então sorriu, pois sabia que fora Tupã quem a transformou, para que pudesse salvar sua filhinha aprisionada numa flor. E como ela está? Vou vê-la agorinha mesmo, majestade! Então, traga-a pra gente comemorar juntas e carregar os sonhos! E o trupé recomeçou até a apoteose depois de raiar o dia. Até mais ver.

 

Niki de Saint Phalle: Meu destino é criar um lugar onde as pessoas possam vir e ser felizes: um jardim de alegria... Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

Shere Hite: Considere a escolha entre ir atrás de dinheiro ou de ideais. Há tanta pressão para ir atrás de dinheiro que o idealismo tem pouca visibilidade. Faça algo que signifique algo para você... Veja mais aqui, aqui & aqui.

Roseanne Barr: Com tempo suficiente e sem outras opções, posso me adaptar a quase tudo... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

SALVE-SE QUEM PUDER

Imagem: Acervo ArtLAM.

Se fui amarga foi pela pena \ O capitão gritou, “salve-se quem puder” \ e eu, sem pensar, lancei-me à água \ como ávida nadadora, \ como se sempre tivesse esperado esse momento, \ o momento supremo de solidão \ em que nada pesa \ nada resta \ senão o desejo impostergável de viver; \ me lancei à água, é fato, sem olhar para trás. \ Se olhasse talvez não tivesse me lançado. \ teria vacilado olhando teus grandes olhos tristes. \ sinistros remorsos teriam me impedido \ de saltar ao espaço \ tocar a fria umidade do ar \ o noturno sereno \ e cair \ como recém-nascida \ na flutuante superfície do bote \ onde tudo haverá de continuar \ não se sabe onde. \ Se tivesse olhado para trás, \ teus grandes olhos tristes \ a vela suspendida \ os cabos soltos \ as câmaras inundadas \ como as memórias salgadas do mar. \ Se tivesse olhado para trás, \ “Salve-se quem puder” \ gritava o capitão. \ De ter olhado \ de ter voltado os olhos \ como Eurídice \ já não poderia saltar \ pertenceria ao passado \ ancorada entre as redes do barco, seu capitão, a ferrugem das cadeiras \ os versos que consumíamos nas noites de vigília \ tua preguiça de saltar, \ tua vingança de correr, \ presa entre as famosas trepadeiras dos versos preferidos, \ caso tivesse respirado mais o ar salino \ nem visto aparecer o sol; \ era um caso de vida ou morte. \ “Salve-se quem puder” \ tinha gritado o capitão, \ a vida era uma hipótese de salto, \ permanecer, uma morte segura.

Poema da escritora, professora, ativista e tradutora uruguaia Cristina Peri Rossi, que assim se expressou no seu autoexílio: Estritamente não se pode voltar porque é um tempo que já não existe... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

QUANDO ÉRAMOS FELIZES, MAS NÃO SABÍAMOS - [...] Maturidade também é um corpo, um gesto, uma careta, um passado mais do que um futuro. Maturidade é um personagem que apaga os limites do etéreo para desenhar com um cinzel e apagar toda aquela promessa. Maturidade é o desaparecimento progressivo de linhas inacabadas. É se tornar uma pessoa específica, determinada. No meu caso, é ser quem eu sou, ter uma compreensão cada vez mais clara disso e estar disposto a abraçá-lo, para o bem ou para o mal. [...]. Trecho extraído da obra Cuando éramos felices pero no lo sabíamos (Ariel, 2022), da escritora e jornalista colombiana Melba Escobar (Melba Escobar de Nogales), autora de obras como La Mujer que Hablaba Sola (2019), Bogotá Sueña. La Ciudad Por Los Niños (2007), Duermevela (2010) e Johnny e o mar (2014), entre outros. Veja mais aqui e aquí.

 

VIVENDO COMO UM PÁSSARO - [...] Se há territórios que querem ser cantados ou, mais precisamente, que só querem ser cantados, se há territórios que querem ser marcados pela potência dos simulacros da presença, territórios que se tornam corpos e corpos que se estendem em lugares de vida, se há lugares de vida que se tornam canções ou canções que criam um lugar, se há potências do som e potências dos cheiros, há, sem dúvida, muitos outros modos de ser, de habitar, que multiplicam os mundos. Que verbos poderíamos descobrir que evocassem essas potências? Poderiam existir territórios dançados (potência da dança a ser concedida)? Territórios amados (que só querem ser amados? Potência do amor), territórios disputados (que só querem ser disputados?), compartilhados, conquistados, marcados, conhecidos, reconhecidos, apropriados, familiares? Quantos verbos e quais verbos podem fazer território? E quais são as práticas que permitirão que esses verbos proliferem? Estou convencido, junto com Haraway e muitos outros, de que multiplicar mundos pode tornar o nosso mais habitável. […] Eu digo "habitar", eu deveria dizer "coabitar", porque não há maneira de habitar que não seja, antes de tudo, "coabitar". [...] Não esquecer que essas canções estão desaparecendo, mas que desaparecerão ainda mais se não lhes dermos atenção. E que com elas desaparecerão múltiplas formas de habitar a terra, invenções da vida, composições, partituras melódicas, apropriações delicadas, modos de ser e importâncias. Tudo o que faz territórios e tudo o que torna territórios animados, ritmados, vividos, amados. Habitados. Viver em nosso tempo, chamando-o de "Fonoceno", é aprender a prestar atenção ao silêncio que o canto de um melro pode trazer à existência, é viver em territórios cantados, mas também não é esquecer que o silêncio pode se impor. E que o que também corremos o risco de perder, por falta de atenção, será a coragem cantante dos pássaros. [...] Primeiro, era um melro. A janela do meu quarto tinha sido deixada aberta pela primeira vez em meses, como um sinal de vitória sobre o inverno. Seu canto me acordou ao amanhecer. Cantava com todo o coração, com toda a força, com todo o seu talento de melro. Outro respondeu um pouco mais longe, provavelmente de uma chaminé próxima. Eu não conseguia mais dormir. Esse melro cantava, como diria o filósofo Étienne Souriau, com o entusiasmo do corpo, como os animais podem fazer quando completamente absortos em brincadeiras e simulações de faz de conta. 2 Mas não foi esse entusiasmo que me manteve acordado, nem o que um biólogo rabugento poderia ter chamado de uma conquista ruidosa da evolução. Foi a atenção constante desse melro em variar cada série de notas. Fiquei cativado, desde o segundo ou terceiro chamado, pelo que se tornou um romance audiofônico, cada episódio melódico do qual eu chamava com um silencioso "e o que mais?". Cada sequência diferia da anterior, cada uma se inventava na forma de um novo contraponto. Daquele dia em diante, minha janela permaneceu aberta todas as noites. A cada crise de insônia que se seguiu naquela primeira manhã, eu me reconectava com a mesma alegria, a mesma surpresa, a mesma expectativa que me impedia de voltar (ou mesmo de desejar voltar) a dormir. O pássaro cantava. Mas nunca o canto, ao mesmo tempo, pareceu tão próximo da fala. [...]. Trechos extraídos da obra Habiter en oiseau (Babel, 2023), da filósofa, professora e psicóloga belga Vinciane Despret, autora da obra Au bonheur des morts (2015), na qual questiona: Ainda temos incerteza suficiente para manter um pouco de esperança no possível? Ainda temos imaginação suficiente, hábito suficiente para ver vaga-lumes brilhando no escuro?

 

A TORRE DE THAÍS ALCOFORADO

Como a construção \ A catástrofe também demanda paciência \ Ainda assim, o momento exato do desabamento \ Parece sempre repentino \ Os acontecimentos teriam sido devastadores \ Se eu não tivesse começado a me preparar \ Sem suspeita \ Justo a tempo \ Para todo tipo de emergências \ Tudo que veio antes, um ensaio \ Tudo o que vier depois, uma réplica \ Do choque primordial.

Poema Hefesto, extraído da obra A Torre (Primata, 2025), da escritora, advogada e trabalhadora humanitária, Thaís Alcoforado, que ao lançar a obra expressou: Percebi que quanto mais se escreve, mais se torna urgente e inevitável escrever. Agora, minha meta é manter aberto esse canal, criando espaços intencionais para que a escrita exista dentro da vida cotidiana. Veja mais aqui.

&

PINTANDO NAS PRAÇAS

Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.


 


domingo, outubro 19, 2025

ANA PAULA TAVARES, ELIF SHAFAK, ALAA MURABIT & CLARICE FALCÃO

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns O corpo do som (2002), O seguinte é esse (2005), Corpo de som ao vivo (2010), Tum pá (2012), Ayú (2015) e Só mais um pouquinho (2018), do grupo de percussão corporal, Barbatuques, criado em 1995, pelo músico Fernando Barba e formado por André Hosoi, Marcelo Pretto, André Venegas, Giba Alves, João Simão, Lu Horta, Heloiza Ribeiro, Mairah Rocha, Maurício Maas, Renato Epstein, Charles Raszl e Lu Cestari. O grupo propõe música a partir do batuque com o próprio corpo, como palmas, batidas no peito, estalos com os dedos e a boca, assobios e sapateados, resultando ritmos que vão do samba ao rap, mostrando o resultado da coletividade e da brasilidade como tema. Veja mais aqui.

 

A lebre e o coelho, o amor proibido... - A vida vai, corrente de rio, onda de mar, chuva que cai, nuvem que passa, a Terra gira e um reles sujeito, tipo Rabitt de Updike, segue sua vida vã esvaziada. Em suas andanças sem rumo conheceu o tapiti candimba dos Karitiana, Tupi-Arikém, que trazia uma gaiola com um preá e um porquinho-da-índia. Ali algo de interessante ocorrera. Curioso e atento ouvia sobre o Yùtù - O Coelho de Jade da China, que vivia na Lua esmagando ervas com seu pilão para fabricar um elixir da longa vida, enquanto acompanhava a deusa lunar Chang'e. Ficou maravilhado ao saber de Tsukimi no Japão, que se sacrificava queimando seu próprio corpo para alimentar qualquer um viajante esfomeado e, em recompensa, ter sua imagem impressa na Lua. Empolgou-se com a narrativa de Daltokki na Coreia, celebrado no Festival de Outono, Chuseok, o astuto trapaceador que roubou o fogo do Povo do Céu, no Festival do Milho Verde, para compartilhá-lo com sua gente hitchiti e ser celebrado entre os Hopi e o Shawnee, pelos cerimoniais dos Kiowa – a sociedade dos Kasowe e na dança dos Oneida. Ali mesmo presenciou a dança das máscaras cerimoniais dos Kwakwaka’wakw e dos rituais potlatch - um rito de passagem, no qual empunhavam a pata esquerda traseira do Br’er, um trickster e totem dum clã africano, um amuleto da sorte que curava doenças, um talismã que o hoodoo usava no espaço com terra vinda de túmulos. Não sabia que os astecas lançavam um coelho ao céu para encontrar a Lua. E aí teve um estalo diante do testemunho do Popol-Vuh dos Maia-Quiché: a deusa Lua estava em perigo, teria de ser socorrida e salva por um herói. Quem seria esse herói? Revestiu-se duma empáfia e se fez heroico demiurgo de um ancestral mítico. Era só saltar de um lado e outro para encontrar Menebuch dos algoquinos Ojibwa e dos sioux Winebago – porque ele é o possuidor do segredo da vida elementar e ensina as artes manuais para combater os monstros aquáticos das profundezas. Soube: foi ele que, depois de um dilúvio, recriou a terra e, ao partir, deixou-a no seu estado atual. Mesmo? E mais: É dele que receberia a graça do invisível Grande Manitu, do Sheshajataka, de quem terá Bodhisativa no Kampuchea das chuvas fertilizantes. Assim soube de tudo e passou a almejar a Lua para dar sentido à sua vida. Precisava alcançá-la e, para isso, teve de cruzar as águas das feras ululantes. Viu-se ali nu e só, seguindo pela terra de ninguém. Não havia pontes para a travessia e estava hipnotizado com as profundezas do fosso. Sentia-se proscrito, exaurido, se malograsse não valeria nada. E se quisesse privar da Mulher Estrela não poderia mais voltar atrás, havia de suportar a Noite Negra da Alma na Jornada Noturna do mar, como se estivesse na barriga duma baleia. E tudo suportou na cidade eterna: encarou o escaravelho egípcio e a lagosta de ouro da Costa Rica. Atravessou o inferno védico – o Reino de Yama, guardada por dois mastins; teve de enfrentar Cérbero, o cão tricéfalo, servindo-se apenas da lira de Orfeu. No meio do caminho uma sibila o conduziu pelo inferno até se sentir lunático e subiu a colina, era a serra da Prata e lá, mais do que nunca, o medo de morrer. A Lua então apareceu e se aproximou, nascia a paixão e ele enfeitiçado pela Deusa da Noite: era o seu renascimento. Diante dela sentiu-se desolado e ela fez-se sua estrela guia iluminando o céu. Nem mesmo o lado escuro dela não mais o aterrorizava e ela reuniu todas as lembranças jogadas fora e todos os sonhos esquecidos, guardando-os em sua taça de prata e, ao despontar da aurora, foram todos devolvidos à Terra como seiva dos orvalhos que brotavam de suas lágrimas, a nutrir e retemperar a vida no planeta e nada se perdia. Com as memórias repostas, ele soube do seu passado ignorado. Fez-se grato pela descoberta. Por que não estamos no paraíso? Ela então mostrou-se Luna para enlouquecer os homens; e se fez Circe para transformá-los em porcos; e foi Medusa, para petrificá-los. Aos seus olhos ela parecia Ártemis que aguardava o seu amigo camaleão para seguirem as caravanas. E logo encontraram Jacklope, a cornuda, com Jackrabbit que corria como louca. Deram notícias dos cuspes de Wolpertinger da Baviera e trouxeram a Raurakl austríaca, a rasselbock da Turíngia, a Elwedritsche do Palatinado e o Skvader de Sundsvall. Todas se aproximaram para o trabalho à sombra de uma figueira, moendo ervas medicinais num almofariz. E cantavam: Vi na Lua \ três pequenos coelhos \ que comiam ameixas \ bebendo vinho \ demais. Depois da cantoria estavam prontas para a celebração. Eis que apareceu Nanabozho e sua voz soou como uma maldição despótica: Lebre e coelho não são compatíveis, distinguem-se. Todas as cabeças baixaram misantropas, um balde de água fria no evento: estavam condenados a se amarem com os terrores abissais indestrutíveis da tradição, a fustigar seus corpos com os rumores nefastos da execração geral. E se sufocaram com o mormaço dançante aos voos das borboletas movendo o mundo e as correntes dos rios lavrando a terra com a brisa dos ventos amenos. Fitaram-se melancólicos como se indagassem um ao outro: como olvidar da atração fatal do amor que se eternizava, ah, que revolta, e se flagelaram desconsolados, e se revolveram inquietos, e se amarguraram da sina para, de repente, olhos fixos, se encaram destemidos: Por que não? E se desembaraçaram da convenção, com a cumplicidade dos amantes desgarrados e, diante de todos, ali mesmo contraíram as núpcias no mundo do grande mistério da vida que se refaz por meio da morte: a desobediência mútua e se viram felizes até então. Até mais ver.

 

Sylvia Plath: Lembre-se, lembre-se, isso é agora, e agora, e agora. Viva, sinta, apegue-se a isso. Quero me tornar profundamente consciente de tudo o que tomei como certo... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Trudi Canavan: Não só estou conversando comigo mesma, como agora me recuso a falar comigo mesma. Isso deve ser o primeiro sinal de loucura... Os mortais não precisavam de Deus para ordenar que se matassem. Eles eram perfeitamente capazes de encontrar razões para fazê-lo eles mesmos... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Doris Lessing: Só existe uma maneira de ler: folhear bibliotecas e livrarias, escolhendo livros que lhe atraem, lendo apenas aqueles, abandonando-os quando o aborrecem, pulando as partes que o arrastam — e nunca, nunca lendo nada porque você sente que deve, ou porque faz parte de uma tendência ou movimento. Lembre-se de que o livro que o aborrece aos vinte ou trinta anos lhe abrirá portas aos quarenta ou cinquenta — e vice-versa. Não leia um livro fora do seu tempo... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

NOVEMBER WITHOUT WATER

Imagem: Acervo ArtLAM.

Olha-me p’ra estas crianças de vidro \ cheias de água até às lágrimas \ enchendo a cidade de estilhaços \ procurando a vida \ nos caixotes do lixo. \ Olha-me estas crianças \ transporte \ animais de carga sobre os dias \ percorrendo a cidade até os bordos \ carregam a morte sobre os ombros \ despejam-se sobre o espaço \ enchendo a cidade de estilhaços. \ Chegas \ eu digo sede as mãos \ fico \ bebendo do ar que respirar \ a brevidade \ assim as águas \ a espera \ o cansaço.

Poema da poeta, antropóloga e historiadora angolana Ana Paula Ribeiro Tavares, autora das obras: Ritos de Passagem (1985), O Sangue da Buganvília (1998), O Lago da Lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), A cabeça de Salomé (2004), Os olhos do homem que chorava no rio (2005) e Manual para amantes desesperados (2007). Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

A ILHA DAS ÁRVORES DESAPARECIDAS[...] Porque na vida real, ao contrário dos livros de história, as histórias não chegam até nós na íntegra, mas em pedaços, segmentos quebrados e ecos parciais, uma frase completa aqui, um fragmento ali, uma pista escondida no meio. Na vida, ao contrário dos livros, temos que tecer nossas histórias com fios tão finos quanto as veias finas que correm pelas asas de uma borboleta. [...] é isso que as migrações e as mudanças de residência fazem conosco: quando você deixa sua casa para terras desconhecidas, você não continua simplesmente como antes; uma parte de você morre por dentro para que outra parte possa começar tudo de novo. [...] Vocês não compartilham uma língua, você pensa, e então percebe que o luto é uma língua. Nós nos entendemos, pessoas com passados conturbados. [...] Algum dia essa dor será útil para você. [...] Cartografia é outro nome para histórias contadas por vencedores. Para histórias contadas por aqueles que perderam, não existe. [...] Gostaria de ter dito a ele que a solidão é uma invenção humana. As árvores nunca estão solitárias. Os humanos acham que sabem com certeza onde termina o ser e começa o do outro. Com suas raízes emaranhadas e presas no subsolo, ligadas a fungos e bactérias, as árvores não abrigam tais ilusões. Para nós, tudo está interligado. [...] As pessoas presumem que a diferença entre otimistas e pessimistas é uma questão de personalidade. Mas eu acredito que tudo se resume à incapacidade de esquecer. Quanto maior a sua capacidade de retenção, menores as suas chances de ser otimista. [...] O amor é a afirmação ousada da esperança. Você não abraça a esperança quando a morte e a destruição estão no comando. Você não veste seu melhor vestido e coloca uma flor no cabelo quando está cercado por ruínas e cacos. Você não perde o coração em um momento em que os corações deveriam permanecer selados, especialmente para aqueles que não são da sua religião, não são da sua língua, não são do seu sangue. Você não se apaixona em Chipre no verão de 1974. Nem aqui, nem agora. E, no entanto, lá estavam eles, os dois. [...]. Trechos extraídos da obra The Island of Missing Trees (Bloomsbury Publishing, 2021), da escritora turca Elif Shafak, autora de obras como Honor (2011), The Bastard of Istanbul (2005), The Forty Rules of Love (2000) e The Gaze (2000). Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

SEM AS MULHERES OS OBJETIVOS GLOBAIS NÃO VERÃO A LUZ DO DIA – [...] Os dados comprovam que mulheres e meninas são realmente a chave para que essa agenda se concretize [...] Se falamos de ação contra as mudanças climáticas, a solução mais econômica e prática para as mudanças climáticas é a combinação da educação das meninas com os direitos reprodutivos das mulheres. [...] Temos de perceber que existe um recurso inexplorado e que a única forma de o podermos realmente aproveitar é através da educação e do empoderamento económico. […] Muitas vezes instrumentalizamos as mulheres [...] Raramente empoderamos e permitimos que as mulheres sejam capazes de arquitetar seus próprios projetos. E a única maneira de realmente fazer isso é por meio do empoderamento econômico, porque sabemos que, quando as mulheres são economicamente empoderadas, elas reinvestem 90% em suas comunidades. E a grande maioria desses 90% vai para saúde e educação, então estamos transformando completamente esse cenário para as gerações futuras. [...] Sem mulheres e meninas, essa agenda não verá a luz do dia – nem um pouco. [...]. Trecho de uma entrevista (SDGLive/ United Nations, 2025) concedida pela escritora e médica líbia-canadense Alaa Murabit, co-fundadora do The Omnis Institute, fundadora da The Voice of Libyan Women, co-autora da antologia Feministas não usam rosa (e outras mentiras) e autora de diversos artigos publicados no The Boston Globe, Wired, Carter Center, NewAmerica, Chime for Change, Huffington Post, The Christian Science Monitor e Impakter, contemplada com a Meritorious Service Cross.

 

A ARTE DE CLARICE FALCÃO

Nasci no Recife, com 4 anos vim pra São Paulo. Quando eu tinha 5 anos fomos pro Rio, aí fiquei. Minha mãe era muito paranoica, quer dizer, ela era ótima, mas era meio nervosa com tudo. Isso tem muito a ver com a história dela. Quando eu saía ela fica apreensiva, superpreocupada. Tinha um certo cuidado extremo. Mas ao mesmo tempo eu era muito livre para fazer minhas escolhas. Ela nunca olhou um boletim na vida, não sei se ela sabe como é um boletim... Nasci em uma família em que, se você não brincasse ou entrasse na onda, era engolido... Acho que cantar precisa de um pouco mais de tato, você se equilibra um pouco mais. Atuar é texto e fazer bem; música é atuar, interpretar, fazer bem, ter uma conexão com a plateia, as letras da música, as notas, o tempo. E ainda tem a banda que está junto. Mas adoro fazer os dois, e os dois dão o mesmo tipo de nervoso antes de entrar no palco - além da mesma dinâmica de você entrar mais nervoso do que sai... Ainda fico muito nervosa, mas é uma sensação nova e muito boa... Gosto muito de estar no palco, mas acho que é bom ficar nervosa, quando parar de ter frio na barriga vai ser meio chato...

Palavras da premiada cantora, atriz, compositora, humorista, roteirista e diretora Clarice Falcão (Clarice Franco de Abreu Falcão), que participou de diversos filmes como atriz, entre eles, Fica Comigo Esta Noite (2006), Primeiro Dia de um Ano Qualquer (2012), Eu não Faço a Menor Ideia do que Eu tô Fazendo Com a Minha Vida (2013), Desculpe o Transtorno (2016) e Música para Morrer de Amor (2020). Como diretora, produtora e roteirista trabalhou nos filmes O Segundo Minuto (2006), Dois Menos Dois (2006), Laços (2007) e Chamada em Espera (2008). Atuou também como atriz no Teatro, bem como como roteirista, em espetáculos como Confissões de Adolescente (2009), Inbox (2011) e Especial de Ano Todo (2017). Gravou os álbuns musicais de estúdio Monomania (2013), Problema meu (2016), Tem conserto (2019) e Truque (2023). Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.