segunda-feira, agosto 25, 2025

VERA IACONELLI, RITA DOVE, CAMILLA LÄCKBERG & DEMOROU MUITO

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Tempo Mínimo (2019), Hoje (2021), Andar com Gil (2023) e Delia Fischer Beyond Bossa (2024), da pianista, cantora, compositora e arranjadora Delia Fischer. Veja mais aqui & aqui.

 

Escotoma onírico (ou o testamento que entrou pra história)... - Quem da praça da matriz, virado pra banda da metade meridional da cidade, bandeando-se pro leste, vai pro arruado da usina e passa por ali. Isso mesmo. Lá adiante mais umas léguas é o cemitério, mas basta dobrar à destra pela esquina, 3 prédios depois, ou quase, lá está sem identificação alguma. E nem precisa, não tem errada: pros lados de cá até que é bem grandinho, ocupando um terreno largo e comprido, alvenaria tomada por um imenso salão com cadeiras e mesas, muitas prateleiras pelas paredes desbotadas quase sem reboco, todas preenchidas com garrafas numeradas e ao redor dum balcão enorme envidraçado, com a oferta de produtos e divisando o ambiente um tanto anacrônico, mas é ali mesmo. Logo verá um freguês se adiantado a soar seu sincero pedido e é lá que ele mesmo está, aquela figura de gente austera, perfunctório, aboletada na porta e nem um pouco extravagante: o dono da Carne-de-Sol de ZéMago. O próprio, sujeito franzino, cabeleira rala grisalha deixando à mostra a quase calvície, os olhos desconfiados, o bigode raspado embaixo da venta, sobressaindo-lhe apenas por sobre o beiço superior, a voz de soprano com sua modesta indumentária impecável, apesar de solteirão convicto – é que tirou sentido das coisas de amor depois de já madurão e foi o que-não-sei, coisa de coração enjaulado, olhos findantes e ela a dita era o caos e nunca mais. Até debaixo d’água sofreu a dor de amor e se refez nas espumas de espremido caracol: Em casa de amorante, solidão é o fim do mundo. Triste de quem foi e de lá voltou. Era ele praquela, nunca mais. No fundo do imóvel via-se duas portas pros sanitários e uma outra, mais estreita, com um cartaz garatujado: PRIVADO – Proibida a entrada de enxeridos. É lá, cochichavam, a cozinha da bruxa de fala fina. Logo na entrada parecia o cicerone aboletado no caixa-recepção, no qual pediam, pagavam e já pegavam, ao seu comando, a comida no prato, seguindo para se aboletar em qualquer mesa. Outra advertência: não fale fiado. Isso evita pandemônio de vitupério. Todo dia, às 11 em ponto, o povo chegava de faro atiçado pelos sabores acesos, tudo figurinha carimbada de décadas e até séculos – como Zalfredim encostado num canto a berrar: Tomara que dê uma cheia pra levar os cornos daqui! A esponsal dele, Bastiana, da janela vizinha alertava: Cala boca, véio fresco, tu num sabe nem nadar! Gargalham fregueses assíduos, fidelizados pelo paladar e ronco da barriga. Eram pseudoutos e desinformados, poetastros e linguarudos, probos e lesados, fiéis e descrentes, mutreteiros e detratores, polêmicos fuxiqueiros pervertidos; agiotas, barnabés e puteiros, manipuladores e bem-mandados, cornos e aduladores - uma mundiça inconformada de chatos devoradores, gente insossa e mal-nutrida, arre égua! Todos apreciadores da graça rústica do local. Do tipo Zé Borreia que morreu um dia desse e todos lamentavam: Ah, quem mandou ele peidar na venta dum demônio, bem empregado: findou com estridente enfiado no boga! Entalado? Iapois. E a próxima vítima? Ninguém escapa, meu. Os folgados pediam: Frango assado, Zé! Vá pedir à quenga da sua mãe! E uma cerveja gelada: Vá pedir ao corno do seu pai! Bora, bora! Quero meu pedido! Vá pro fim da fila pra deixar de ser entrão! Outros gaiatos pediam conhaque, rum, vermute, gin, cerveja ou até cachaça! Quando não fígado, peixes, crustáceos. Vão tudo se lascar! Modéstia à parte: aqui só tem o que é bom! Ah, vá sentar légua no cangote, seu fi-duma-égua! Magote de sonsos das matas finadas, mesmo assim, té hoje mando de cana mesmo sem ter quem moa. E tombávamos todos, gente de peripécia própria ou de diversificadas personas, diante do dicomer sustante, gostinho daquela comida caseira, todos servidos em pratos feitos de cascos de cágados, tartarugas e tatus; em cumbucas de barro, de pedra sabão ou louça cerâmica, coités, vasilhas, panelas, potes, tigelas, terrinas, cuias, o que tivesse à mão. Os talheres tudo de pau: garfos, facas, colheres. E todos matavam a sua fome às dentadas, engolidas, abocanhadas, cada garfada, colherada, facada; todo mundo já sabia, nem precisava de cardápio, expediente bem definido, a partir das 11 saía o rango: a afamada carne-de-sol é servida acompanhada de feijão-de-corda, com arroz, vinagrete e uma lapada de cortesia da abrideira Teibei – a segunda, por conta do freguês, acende o candeeiro; a terceira, paga por antecipação, pega o jipe de sair riscando tudo até desenvultar! Basta, então, a primeira golada e a ineivada entra rasgando tudo, do de cujus estalar os dedos, alvoroçado, sentir a fisgada no osso do mucumbu, do retrato da identidade se arrepiar todo. Aí o cabra entra em combustão, baixa o santo e incorpora logo uma entidade sã fazendo vulto capaz de adivinhar o futuro e o prêmio bolada da loteira. U-hu! Me dá uma meiota dessa disgrama, vai! Nem um quartinho sequer, tá doido! Há a opção para quem corajoso queira se deliciar com a incendiária Queima Toba – uma pimenta malagueta preparada para aparentá-la àquela ardida X, mais esquentada que a Carolina Reaper, como se fosse o cruzamento das fuderosas Habanero e a Naga Bhut Jolokia. Ou melar tudo com manteiga de garrafa, outra especialidade da casa. O almoço é servido até às 15, quando todos os presentes, tendo ou não concluído o repasto, é enxotado. Porta arreada só reaberta às 17, pros achegados da sopa Esquenta Peito, também acompanhada duma modesta talagada grátis da Teibei. Dizem que o sucesso da sopa é por conta daquele misterioso Osso de Hermilo. Sabiam? E ele bota nomes de tacacá, tacapitu e buré. Tudo encerrado sumariamente às 19, arriando as portas quando a noite vai subindo pro descanso diário. A partir da meia noite começa o serão, para o qual acorrem atraídos paisanos, dados por notívagos ou desencaminhados. É a hora do milagroso Mingau de Cachorro. Ô Zé me dá logo a gosma do guenzo que eu quero dar um plantão numa frochosa de Cantochão! Quem bêbado fica sóbrio; quem doente, curado; quem mortificado, salva-se uma alma! Glória, Deus! E para quem boiou ou caiou a noite toda, doses cavalares da Teibei para levantar a crista e ferver o juízo. Uma recomendação do proprietário: Beba com moderação, senão você sai do riscado todo triscado! Da sexta pro sábado o turno encomprida e vira noite adentro por causa da feira: Ô povo morto de fome! Só arriando as portas lá por volta das 13 e só reabrindo meia noite com o Festival Corujão-pra-que-te-quero. Esse é o estopô calango! É quando emenda ao domingo de porta-arreada às 5, só a portinhola do pega-bêbo aberta. É a hora do rega-bofe domingueiro, das garrafadas e doutras gororobas encomendadas durante a semana e só entregáveis aos domingos. As garrafadas Frevo Arrepia – a que levanta defunto de 7º dia, são muito procuradas e são preparadas pros fraquejados famélicos que encomendaram durante a semana e entregues inadiavelmente na hora aprazada: Esse xarope tônico é para tomar em jejum, tiro e queda! Ô bicha boa! No cardápio dominical pros perdidos e desencontrados, ele serve para pagar, pegar e levar: sopa da cabeça de peixe (camurins, acaris, jundiás, pirambebas, piabas, traíras, tudo do seu criatório no quintal de casa – ninguém nunca viu, quem vê morre!), pituzada, buchada de bode, a farofa - farinha assada na carapaça de tartaruga; afora cuscuz, salada de legumes e verduras, cobertura de queijo de coalho banhado por manteiga de garrafa; sem contar com cuscuz, canjica, xerém, munguzá, angu; ensopado de jerimum no queijo coalho, inhame, macaxeira, batata doce; tudo colorido com saladas de pimentão gigante, sementes e casca de romã ralada, castanha de caju, caroço de abacate, amendoim, casca e coroa de abacaxi, coco ralado, cebola, alho, tomate, limão, gengibre, outras ervas silvestres para dar mais gosto, como alecrim pimenta, aroeira, macela, cumaru e quebra-pedra; mais coentro, cebolinha, tudo ralado em pós, afora a coleção de pimenteira da sua flora diversa, mais as fruteiras de encher os olhos: maracujá, cereja, jaboticaba, tamarindo, cupuaçu, jaca, pitanga, acerola, graviola, caju, umbu, mangaba, jambo, siriguela, cajá, murici, cajarana, araticum; também licores de jenipapo, berinjela, caldo de cana, bolo de rolo, passa de caju, cocada, tapioca, arroz doce, munguzá, arrumadinho, escondidinho de charque, caldinho de peixe, peixadas, coalhadas, tudo com seus temperos poderosos nas receitas de sua própria experiência gastronômica. No balcão dos pega-bêbos só a teibei e pra tira-gostos na hora são tripa de porco ou salame, ou mesmo frutas que estão por ali perdidas para adoçar o paladar do recalcitrante. Às 18 fecha tudo e só segunda reabre, que ninguém é de ferro. É quando largam, às escondidas, a cozinheira e os auxiliares – lavadoras das louças, faxineira, copeira, os sobrinhos e afilhados: acima dos 10 anos ficam muito sabidos! Roubam que só a peste! O anfitrião ali ouve tudo e de tudo sabe, mas diz que não. Besta, nada. Ao ser perguntado: Não sei nada nem tenho tempo pra fuxico: futrica é na outra esquina. Foi o que respondeu certa vez pro delegado, que, já acometido pelas dores de um fecaloma desgraçado, emputeceu-se e destampou a bronca, de quase prendê-lo incomunicável. Ôpa! Deixa disso. Caso esclarecido. Morreu de quê mesmo? Ao delongar o tempo que nunca parou e choveu de doer horas inteiras terrafora, sem remorso, o frio novo madrugava, já manhã clara, ele lá no seu tanto vivido soçobrou. Às antes matas levitavam no solúvel do seu íntimo e calaram nele ao pé da cruz. Entregou-se sabe-se lá seus motivos e queixas, como um grito lavado pela lama empoçada no barro batido da rodagem pantanosa do choro. Foi-se triturado pela moagem barulhando esmagadora na moenda e o caldo do bagaço escorreu na veia estourada, o sangue e o piripaque no peito sem estrondo, de beirar o ostracismo com a alma nas trevas. Caiu do trono com uma ideia esquisita, doida, obstruindo embaixo, veia cardíaca lá do fundo onde guardava o resto da lembrança daquela de nunca mais e quixoteou súbita glória, era tarde, a incompletude do rastro na palma da mão, não havia mais aonde ia dar. Bateu biela, genuflexo: esvaziou-se no mata-borrão, olhos rasos d’água, caligrafia borrada, sem quê reinventar-se, desconchavado incólume e agora, não temia mais seus abismos, seus desertos segredos. Absorto, suspenso pela procissão de quelônios fantasmas, ai-de-quem, à tona incôngruo, seu tumulto foi maior. Foi-se com seus ais, quando lembrou de Deus e imergiu em zilhões de coisas ao mesmo tempo, difuso, despersonalizado, uno, foi-se. Era o tranquilo morrer-se enfim. Foi-se esquecendo pra renascer no epitáfio da lápide: Aqui jaz aquele que brindou a vida e tudo o que amealhou saiu gastando a peidar, arrotar, cagar e mijar; o amigo que lembrou dos vivos safados e dos que se foram... Eu também voo. Sepultado foi com um testamento emaranhado num nó cego da peste de bem dado que, até hoje, os parentes todos tentam desengachá-lo. Até mais ver.

 

Annie Ernaux: Procurei o amor da minha mãe em todos os cantos do mundo... A dor não pode ser mantida intacta, ela precisa ser “processada”, convertida em humor... Ela me ensina que o mundo foi feito para ser aproveitado e aproveitado, e que não há absolutamente nenhuma razão para se conter... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Coco Chanel: Não gaste tempo batendo em uma parede, na esperança de transformá-la em uma porta... O ato mais corajoso é ainda pensar por si mesmo... Como tudo está em nossas cabeças, é melhor não perdê-las... Veja mais aqui & aqui.

Dorothy Parker: Se você quer saber o que Deus pensa sobre o dinheiro, basta olhar para as pessoas que ele deu... A cura para o tédio é a curiosidade. Não há cura para a curiosidade... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

APOLOGIA ACONCHEGANTE

Imagem: Acervo ArtLAM.

Eu poderia escolher qualquer coisa e pensar em você \ — Esta luminária, a chuva parada pelo vento, o azul brilhante \ Minha caneta exala, secando fosca, sobre a página. \ Eu poderia escolher qualquer herói, qualquer causa ou época \ E, tão certo quanto atirar flechas no coração, \ Montado em uma égua malhada, pernas tão afastadas \ Quanto ficar em estribos de prata permitir \ — Lá estará você, com a testa franzida \ E a cota de malha brilhando, para me libertar: \ Um olho sorrindo, o outro firme no inimigo. \ Esta era pós-pós-moderna é só negócios: \ CDs e faxes, um evento do tipo "faça agora e não corra riscos". \ Hoje, um furacão está se aproximando da costa, \ Estranhamente masculino: o Grande Floyd Mau, que traz uma horda \ De devaneios: reminiscências constrangedoras \ De paixões adolescentes por garotos inúteis \ Cujo único talento era beijá-la até deixá-la sem sentido. \ Todos tinham nomes de maricas — Marcel, Percy, Dewey; \ Eram finos como alcaçuz e tão mastigáveis, \ Doces com um centro escuro e oco. \ Floyd Xingando sem parar. \ Você está enclausurado no seu Aerie, eu estou empoleirado no meu \ (Mesas gêmeas, computadores, pisos de madeira): \ Estamos contentes, mas ficamos aquém do Divino. \ Ainda assim, é constrangedor, essa felicidade \ — Quem se satisfaz simplesmente com o que é bom para nós, \ Quando o comum já foi notícia? \ E, no entanto, porque nada mais serve \ Para me livrar da melancolia (chame de tristeza), \ Preencho este tempo roubado com você.

Poema da premiada poeta e ensaista estadunidense Rita Dove (Rita Frances Dove), autora da obra On the Bus With Rosa Parks (1999).

 

GAIOLA DOURADA - […] Parece haver algum tipo de tristeza em você. Acho isso atraente. Desconfio de pessoas que andam por aí achando que a vida é só risadas o tempo todo. Pessoas que estão sempre felizes me entediam. Não deveríamos estar felizes o tempo todo, senão o mundo pararia. [...] O maior problema das pessoas, percebi, é que elas projetam sua própria tristeza nos outros. Tente compartilhá-la. Elas imaginam que, por compartilharmos o mesmo DNA, automaticamente nos sentiremos tristes com as mesmas situações. A tristeza não fica mais fácil de lidar simplesmente porque você a compartilha. Pelo contrário, ela se torna mais pesada. [...] A libertação de se encontrar no fundo do poço. Sem risco de cair ainda mais na merda. [...]. Trechos extraídos da obra Golden Cage ( Vintage Crime/Black Lizard, 2021), da escritora sueca Camilla Läckberg, que na sua obra The Cuckoo (Hemlock Press,2024), ela expressou que: […] Literatura é vida e morte. Pessoas vêm e vão. Nós vivemos. Nós morremos. Mas a literatura que criamos continua viva. [...]. Já no seu livro El espejismo - Planeta Internacional nº 3 (2024), ela registra que: […] Conceda-me serenidade para aceitar o que não posso mudar, coragem para mudar o que posso e sabedoria para saber a diferença. [...]. Também é autora de obras como: Women without mercy (2018), Buried Angels (2014), The Angel Maker's Wife (2011), The Ice Princess (2011), The Preacher (2011), Las hijas del frío (2011), The Hidden Child (2007), entre outros, sendo atrabuida a ela a frase: Se você não se permitir amar, correria o risco de perder tudo... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

ANÁLISE - [...] Muitos são os caminhos que nos levam a procurar a ajuda de um psicanalista, e todos passam por um certo caldo de cultura que entende que a psicanálise seria uma resposta para o sofrimento. Calhou de eu sentir uma tristeza enorme aos dezessete anos, e de conhecer uma psicóloga que conhecia uma psicanalista. Daí para cair de costas num divã foram dois palitos. Já o percurso que me levou a precisar de ajuda é bem mais custoso de descrever. Resisto o quanto posso. Essa história tem infinitas versões possíveis, e qualquer coisa que eu disser a partir daqui será mais uma delas, ou seja, construções e improvisos sobre um vazio original. Nasci a quinta filha em uma prole de seis — ou deveria dizer oito, uma vez que meu pai teve dois filhos fora do casamento, cuja existência só descobri na adolescência? [...] Freud diz que o trauma é precedido pela calmaria para a qual sonhamos voltar, na expectativa impossível de recolocar a pasta de dentes no tubo espremido. Buscamos refúgio nas cenas que antecedem o acontecimento trágico, recriando um momento idílico antes do mal súbito. É como se, no meio de uma guerra, sonhássemos com o tempo anterior ao fatídico bombardeio no qual perdemos um ente querido, sob a condição de esquecermos convenientemente que já estávamos em guerra. Mas há outras formas de lidar com a intensidade traumática. Uma paciente pode contar uma cena de abuso da qual só se lembra das cores do lustre que tinha ao alcance dos olhos. É como se, para suportar o insuportável, só lhe restasse reduzir-se a um olho que vê um lustre, deixando o corpo ausente de si enquanto o algoz desfruta dele. Os relatos de tortura dizem muito dos subterfúgios que usamos para preservar a alma frente ao horror. [...]. Trechos extraídos de Análise (Zahar, 2025), da psicanalista e psicóloga Vera Iaconelli, atuando como membro do Instituto Sedes Sapientiae e da Escola do Fórum do Campo Lacaniano, autora dos livros Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2020) e Criar filhos no século XXI (Contextoi, 2020).

 

DEMOROU MUITO, DE ADMMAURO GOMMES

Imagem: Acervo ArtLAM.

[...] Ninguém me avisou que eu teria \ que passar por lugares tão estreitos \ e íngremes e escorregadios \ e enfrentar perigos inúteis. \ Tudo era para ter o aroma da felicidade \ e beijos e flores e cores e afagos \ mas nada de fantasmas medievais \ nem internéticas assombrações. \ Era para ser o filme do ano \ a conquista sempre e inevitável \ e o renascer da esplendorosa manhã \ onde os campeões dão a volta olímpica \ com a taça na mão. [...].

Trecho do poema Demorou muito, do poeta, professor e revisor Admmauro Gommes, poema este que recebeu modestas considerações minhas e uma resenha crítica do poeta Vital Corrêa de Araújo. Veja o texto completo aqui & mais aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

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domingo, agosto 17, 2025

ASTRID ROEMER, AMANDA MONTELL, CRISTINA RIVERA GARZA, CUMADI FULOZINHA & ARTE DA ESCOLA


 Imagem: Acervo ArtLAM.

[...] a questão-chave investigada nesta pesquisa diz respeito a desconstruções estéticas vocais - com foco na movimentação da Vanguarda Paulista - e como isso pode estar associado ao feminino. [...] buscou contribuir para uma extensa gama de pesquisas que relacionam música a questões de gênero, além de apontar a coexistência colaborativa entre diversos métodos para a análise de canção das mídias. [...].

Trechos extraídos da dissertação de mestrado sob a temática Se a obra é a soma das penas: um estudo feminista sobre as cantoras da Vanguarda Paulista (USP, 2018) e ao som do álbum Mulher Bomba (2022), da compositora, pianista, cantora, professora, preparadora vocal e ativista Luísa Toller (Luisa Nemésio Toller), em parceria com a escritora, atriz e slammer Luiza Romão.

 

Heptamerão: até que a morte os separe... - No primeiro dia era janeiro nos olhos estivais de Suzanilza, a sonhar Egipcíaca de Bandeira, como se fosse a rainha de maio da Vita de Sofrônio. Entretida com o que se tornara seu Heptameron de Navarre, mais se embalava com as leituras dos versos adorados da Soror Juana Inés, alentando-se com outras de tantas preces, quando empinava os seios para madurar nas estrelas, no afã de que de lá refletissem aos olhos do bem-amado longínquo, sabia ela não tardaria a chegar. Era o chamado do amor numa espera de séculos e por todas as suas tardes e noites suspirantes. No segundo dia do seu devaneio profundo, o espetáculo do crepúsculo outonal: lá estava ele vencendo as distâncias mais remotas para ancorar seu Pavão Mysterioso na varanda do quarto dela. Iluminada pela recepção, mais se fez bonita lua decotada, pronta pro seu senhor desejado. Ele abraçou-a com suas mãos de Proteu, dela se deixar à mercê de suas investidas por entre saia, a desabotoar seu corpo virginal castiço, com ginga pro rastapé, bate-coxa, um galope à beira-mar. Ele descobria o labirinto da intimidade dela e a cada instante reiniciava e, por azo, fruía do seu inebriante perfume arrebentando o tempo, agitando por dentro para que ela se fizesse dilúvio com seus belos adornos ao seu dispor. E mais se gabava porque o vento trazia a tormenta e tanto lhe foi dado atiçando a lareira dela, para que ela crescesse vultosa e não mais donzela, ocupando-a a instigá-la, de perder as vestes todas e ser só dele, a se queimar com o seu fogo ardente. Ela astuciosa serviu-lhe fagueira, a boca entreaberta e suas águas escorriam. Um talho recíproco em seus polegares selou definitivamente o pacto de sangue. A alvura dela imaculada o fazia claudicar extasiado diante do enlace dos nubentes. E naqueles lábios escarlates ele se lambuzou com o gosto do batom, saboreava nela tantos quantos deliciosos bem-casados. Dali talvez dias mais, ela noivava esponsal de Getulídio, um aplicado bancário de somas e contas, agora dono de seu coração e um calendário repleto de brindes e libações. No terceiro dia de quantos meses a lua de mel se prolongou com a ascensão primaveral no ramalhete diário de bem-aventurados e os dois se engalfinhavam pelos lençóis do tempo e até as horas cúmplices se estiravam pelos colchões de nuvens migratórias, impressionando-o com o Olho de Hórus no trancelim dela. Logo os filhos vieram. O primeiro a nascer foi Ínvio, um primogênito na empáfia de todas as satisfações. Um ano depois, a filha, Maria Lua, coroando o casal. E viviam para si de quase olvidar o crescimento do filho a olhos vistos, enquanto a filha engatinhava sonhos que serviam de folguedos para sua felicidade imorredoura. Definia-se a descendência, de quase não conseguirem segurar o trupé do coração. E um sobressalto repentino, a família e, o que era cor-de-rosa, agora singrava as obrigações e cuidados imprevisíveis com o espelho quase se espatifando inadvertido, trincando o vidro dos festejos. No quarto dia a invernada súbita e a dança dos erros com a morrinha, o grande não, os desacertos, quantos percalços fizeram a barra mais pesada pra eles, a poeira do deserto, puxa vida! Amargurados, sequer notaram os filhos crescidos e tomando o rumo das suas ventas. Um dia ao despertar com a braguilha pelo avesso: um brinco na orelha do filho. Como é? O alarme soava: o rapaz descobriu-se outra que não a sua, era agora Tyrésias. Com o escândalo Maria Lua minguou fazendo coro, não mais aquela porque outro era o seu teimar, João Sol – Maria Joãozinho para íntimas de sua sororidade solidária, luz própria, próprio mando e firmeza de fé. Clamores exacerbados: O que foi que eu fiz, meu Deus? Era o caos nos olhos descabelados em todas as direções: uma heresia nos seus bíblicos poréns, como se não poupasse sua condenação - Maldita androginia! O ridículo, a posteridade, a reputação, tudo revirado aos relâmpagos e trovões. Uma sentença secreta mostrando os dentes na aflição paterna. No quinto dia ensolarado, o verão era enorme como um dia de fome, lágrima alguma evaporava, não havia perdão e era o que mais punia. A notícia da tentativa de suicídio do filho liquidava de vez as forças maternas restantes e não havia como ela resistir. Na sua agonia estertorava com a ameaça de que a filha fugira de casa na madrugada. O pai se vingou: ia enxotá-los de qualquer jeito. Suzanilza estava cônscia que ia morrer, esgotada pelas demandas: era quase uma Fênix deplorada e que se fez cinzas para jamais ressuscitar - uma estrela perdida nas constelações infindas. Quando ele a viu quase uma estátua de pedra, sabia que seria nunca mais: a viuvez, os cravos de cemitérios, os choramingos, nada havia como abrandar a sua dor. O riso preso pela alegria que se fora com o teto que desabou apagando a memória, lugares e palavras. Entre as mãos escondia a face, a morte adiantava a sua parte e não moveu um dedo sequer: ela viva jamais o deixaria morrer. Agora, não mais. Era o sexto dia pluvioso, a desmemória e não podia ignorar o álbum de fotografias. Foi-se a esperança e o que ficou para trás. Naquele momento todos as memórias se esvaíram na escuridão. Tentou reabilitar-se no penúltimo degrau da escada para destruir o sinaxário, como se caçasse quem roubou o segredo de Deus e raptou para si a palavra perdida. Ali sentia e era incapaz de entender seu próprio sentimento. Muitas noites naquela longa travessia soturna com a herança apenas de cada vez contar a sua história e a sensação reiterada de nunca mais. Enfim, no sétimo era dia branco e não sabia. Passou a vida a limpo, lamentou tantas vezes terem se estranhado por coisa de pouca monta, as cenas de ciúmes, ausências punitivas, o descanso, o silêncio valetudinário, esgotava-se. E uma luz nas suas trevas: Quem é ela? Vinha calma, cândida, vestida com seu manto branco reluzente, cocar de penas brancas e, ao peito, a insígnia com um punhal branco afiado e lâmina para baixo. Quem é ela? Vinha carregando o seu bastão celeste feito de pau-brasil banhado pelos raios de Tupã, à cintura o cordão de Iara e o sorriso confortador: Sou Catxuréu: O fim será sempre o início de um novo começo... Não ouvia, nem falava. Sabia apenas que ela viera da primeira morte do mundo para levá-lo pela ponte dos que se perderam, livrando-o de Luison – o deus da morte ruim. E o acompanhou até a sua última gota de vida, era 1º de abril. Até mais ver.

 

Nazik Al-Malaika: A noite pergunta quem eu sou. Eu sou sua intimidade insone, profunda e escura. Eu sou sua voz rebelde... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Annie Proulx: Somos todos estranhos por dentro. Aprendemos a disfarçar nossas diferenças à medida que crescemos... Veja mais aqui, aqui & aqui.

Martha Medeiros: Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu asco, sua adoração ou seu desprezo... O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

ESCOTOMAS - Espumante: \ Esta área cega do campo visual \ é uma série de \ flashes de luz em movimento. \ O fato de saber \ coisas \ só porque \ o fato de imaginá-los \ a mente vê \ o que quer ver \ claramente. \ A cama. \ A cicatriz.

REENCARNAR - O luto é uma questão de excesso de ordem. \ Luto é a mesma coisa que tristeza? \ Certamente ela já teria se perguntado isso antes. \ Não sei o que ele poderia ter perguntado a si mesmo. \ Se em vez de irem a uma festa \ tivessem ficado sozinhos em casa, sem dúvida teriam chorado. \ Sem dúvida: essa frase me assusta. \ É possível que o homem e a mulher tenham ficado em silêncio em cômodos diferentes da mesma casa. \ Casas grandes acomodam a solidão de seus habitantes. \ Uma frase completa é como uma sala onde uma mulher ou um homem chora sem perceber. \ O céu nunca esteve tão azul. \ A tristeza é frequentemente expressada através do choro. \ Também é comum que a tristeza seja inexprimível. \ Tristeza é a mesma coisa que pesar?

Poemas da premiada escritora, tradutora e crítica mexicana Cristina Rivera Garza, autora de Autobiografía del algodón (2020), El invencible verano de Liliana (2021) e a sua coletânea completa de poesias, Me llamo cuerpo que no está (2023).

 

BRANCO QUEBRADO - […] E o vento alísio da tarde trouxe o ar do mar. "Como está a cozinha?", ela disse: "Vai demorar um pouco para tudo ficar bem macio." Um aceno da avó e ela correu para a cozinha para colocar tudo em fogo baixo e finalmente começar a lavar roupa. A avó entrou na cozinha, como se fosse direto para o banheiro. Parou quando ouviu a máquina de lavar funcionando e olhou para ela com curiosidade. [...] Ela continuou convencida de que havia nascido na família errada, no país errado, na época errada. E, no entanto, eles conseguiam ficar lado a lado e recuperar o fôlego na foz do Rio Suriname. [...]. Trechos da obra Gebroken wit (Prometheus, 2019), da escritora e professora surinamesa-holandesa Astrid Roemer (Astrid Heligonda Roemer), no qual conta sobre três gerações de surinameses, a avó Bee, sua filha Louise e seus cinco netos, tentando encontrar seu caminho no mundo, no Suriname e na Holanda, enquanto segredos obscuros de família estão em jogo. Em uma entrevista concedida (Center For The Art Of Translation, 2023), ela expressa que: [...] é um romance que te toca profundamente. É um livro físico. Comer e preparar refeições, beber, pensar e se envolver com a sexualidade são atividades físicas. Esse é o paradigma desses romances, que formarão uma trilogia. [...] Fundamentalmente, eu nunca tinha ido embora. Por volta da virada do século, depois da minha trilogia de 1.000 páginas, Impossible Motherland, a então respeitada revista feminista Opzij chegou a me nomear uma das três mulheres mais importantes dos últimos anos. Eu queria dar ao meu trabalho a chance de se conectar com a sociedade holandesa e alcançar uma geração mais jovem. E enquanto minha carreira estava voando alto em público, eu estava lutando com constantes arrombamentos em meu endereço residencial e com telefonemas ameaçadores de estranhos. Eu havia me libertado de certos laços íntimos. Eu estava pronta para escrever romances como Off-White e Dealer's Daughter, junto com novos poemas que expressariam minha visão de mundo cosmológica. Eu sentia um desejo intenso por um habitat de língua inglesa. Eu me estabeleci na Escócia e em Skye, de onde alguns dos meus ancestrais haviam partido para o Suriname. Eu era tão feliz lá, só eu e minha gata Steffi. Agora estou redescobrindo o lado estadunidense dos meus primeiros anos em antigas canções de amor. [...]. É também autora de On a Woman's Madness (1982).

 

A LINGUAGEM DO FANATISMO - [...] as palavras são o meio pelo qual os sistemas de crenças são fabricados, nutridos e reforçados; seu fanatismo fundamentalmente não poderia existir sem elas. [...] a linguagem não funciona para manipular as pessoas a acreditarem em coisas que não querem acreditar; em vez disso, ela lhes dá a liberdade de acreditar em ideias às quais já estão abertas. A linguagem — tanto literal quanto figurada, bem-intencionada e mal-intencionada, politicamente correta e politicamente incorreta — remodela a realidade de uma pessoa somente se ela estiver em um lugar ideológico onde essa remodelação seja bem-vinda. [...]. Trechos extraídos da obra Cultish: The Language of Fanaticism (Harper, 2021), da escritora e linguista estadunidense Amanda Montell, que noutro livro Wordslut: A Feminist Guide to Taking Back the English Language (Harper, 2019), ela expressou que: […] Um dos conselhos menos úteis da nossa cultura é que as mulheres precisam mudar a maneira como falam para soar menos "como mulheres" (ou que pessoas queer precisam soar mais heterossexuais, ou que pessoas de cor precisam soar mais brancas). A maneira como qualquer uma dessas pessoas fala não é inerentemente mais ou menos digna de respeito. Só soa assim porque reflete uma suposição subjacente sobre quem detém mais poder em nossa cultura. [...] Uma das formas mais sorrateiras pelas quais esses preconceitos se manifestam é que, na nossa linguagem, na nossa cultura, a masculinidade é vista como o padrão. [...] Se você quer insultar uma mulher, chame-a de prostituta. Se você quer insultar um homem, chame-o de mulher. [...] Também vivemos numa época em que vemos veículos de comunicação respeitados e figuras públicas circulando críticas à voz feminina – como a de que elas falam com muita fricção vocal, usam palavras como "literalmente" e "literalmente" em excesso e pedem desculpas em excesso. Eles rotulam julgamentos como esses como conselhos pseudofeministas, visando ajudar as mulheres a falar com "mais autoridade" para que possam ser "levadas mais a sério". O que eles parecem não perceber é que, na verdade, estão mantendo as mulheres em um estado constante de autoquestionamento – mantendo-as quietas – sem nenhuma razão objetivamente lógica, a não ser o fato de que elas não soam como homens brancos de meia-idade. [...].

 

MINHA CUMADI FULOZINHA, DE GIVA SILVA

Somos filhos da Mãe da Mata e tivemos com ela, cada qual, as suas experiências. Justamente por isso mesmo: desde a mais tenra idade a Cumadi Fulozinha faz parte das nossas vidas. E há quem, como eu e o autor desta obra, tenha vivenciado muito e tanto, a ponto de, em si, manter sagrada as marcas ancestrais vivas em sua espiritualidade. Afinal, confesso: até hoje ela vive comigo. Além do mais, outras coisas contadas e cantadas: somos causas e consequências de histórias - todas emergentes a cada dia, a cada ano vivido, em cada momento do presente que passou agorinha mesmo. Eita! Foi. Inventamos estórias por vivermos dos porquês, fatos, fantasias, devires. Vivemos do que vem de dentro: o que é e será sempre. Enfim, somos todos hestórias (LAM).

Texto escrito por mim para a publicação do livro Cumadi Fulozinha (2025), do educador, comunicador e militante indígena Giva Silva (Givanildo M. da Silva), que é o idealizador e coordenador da Tv Imbaú. O livro que se encontra em pré-venda é memorialístico e onírico, mergulhando nas lembranças de um menino guiado pelo avô num universo de descobertas infinitas. No centro dessa jornada, como objeto de fascínio e curiosidade, está uma das figuras mais enigmáticas e fundamentais da cultura indígena e popular do Nordeste: a protetora das matas, Cumadi Fulozinha. Com uma narrativa que oscila entre o real e o imaginário, o texto evoca não apenas as memórias afetivas da infância, mas também a força mítica dessa entidade guardiã, cuja presença transcende as histórias sobre ela para se tornar um símbolo de resistência e mistério. O avô, como narrador e guia, conduz o menino (e o leitor) por um mundo, no qual os limites entre a realidade e o sonho se dissolvem, revelando a profunda conexão entre a cultura ancestral e a formação de um imaginário pessoal. Assim, a obra comemora a tradição oral, o afeto familiar e o poder das histórias que moldam quem somos—ou quem desejamos ser. Veja mais aqui, aqui & aqui.

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ARTE NA ESCOLA

Arte dos alunos da Escola Municipal Ivonete Ferreira Lins & do Ginásio Municipal Fernando Augusto Pinto Ribeiro, de Palmares – PE. Confira aqui e aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Acontecerá entre os dias 18 e 22 de agosto, na Biblioteca Pública Municipal Fenelon Barreto, em Palmares, a 18ª Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco, com a temática Palmares de todos os saberes: cultura popular na voz do povo. Dentro da programação, no dia 19 de agosto, nos turnos da tarde e noite, realizarei a palestra Cordel, contos & causos de Palmares: Narrativas da Mata Sul pernambucana.

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.


 

domingo, agosto 10, 2025

NEIGE SINNO, ARIEL SALLEH, MARÍA NEGRONI, JULIANA XUCURU & BRENDA MARQUES PENA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Não acredito que as poucas mulheres que alcançaram grandeza no trabalho criativo sejam exceção, mas acho que a vida tem sido difícil para as mulheres. Não lhes deu oportunidade, não as tornou convincentes. Uma mulher não tem sido considerada uma força de trabalho no mundo, e o trabalho que seu sexo e suas condições lhe impõem não foi ajustado a ponto de lhe dar um pouco mais de espaço para o desenvolvimento de sua melhor versão. Ela tem sido prejudicada e apenas algumas, por força das circunstâncias ou força inerente, conseguiram superar essa desvantagem. Não existe sexo e arte. Gênio é uma qualidade independente. A mulher do futuro, com sua perspectiva mais ampla e suas maiores oportunidades, irá longe, acredito, em trabalhos criativos de todos os tipos...

Pensamento da compositora e pianista francesa Cécile Chaminade (Cécile Louise Stéphanie Chaminade – 1857-1944), ao som do Concertino for Flute (Sanders Theater, Harvard University, Cambridge, Massachusetts, 2015 - Boston Philharmonic Youth Orchestra, Hayley Miller in flute, Benjamin Zander, conductor) e Suite Callirhoë, Op. 37 (Orquesta Juvenil Universitaria Eduardo Mata, Gustavo Rivero Weber, director Sala Nezahualcóyotl, CCU 2022). Veja mais aqui & aqui.

 

Entrevista com o sicário fantasma... - Na regra de uma, lá se vão duas, depois de três pra mais de quatro, das coisas quase sequer terem fim! Hehehe. Esse era o prefixo na chegada do Zé Puliça, ao largar do expediente noturno pro café matinal no pavilhão de Pedim do Padre. Chegava com seu ar de caboclo do pé de serra, criado na beira de rio ligeiro, atarracado no seu quase metro e meio de estatura, fala mansa de alerta, impávido quasímodo, com mastigado num palito de dentes pelo canto da boca e o olhar de soslaio pra todo mundo. Era naquela hora somente que se dava aos gracejos. No mais era inabalável, devagar do dizer, jeito imperturbável, quase silencioso, ladino. Na sua face a experiência de quem estreou na vida pelos canaviais, corte da cana. E se fez vaqueiro de aboiar lonjuras, de se danar pela Serra da Preguiça, atrás do Rabicho da Geralda, que bebia água no riacho Agudo, da Várzea do Cisco. Foi ele quem amansou o malvado turino Pintadinho, na lagoa das Mofadas. Depois meteu-se num remoinho agitado pra pegar de mão o indomável Jauaraicica. Foi peleja, viu? Depois dessa casou-se primeiro com uma burrinha de padre, achada no meio do caminho e, nos achegados, ela desencantou fogosa. Nem demorou muito e enviuvou. Solitário deu de engrossar as fileiras dos cabras de Lampião, arribando pariceiro do valente Rio Preto, a trocar loas com o topetudo André Tripa, nas farras com Cabeleira e Teodósio e, mais que azogado, viu os milagres da braúna de Conselheiro. Sua fama cresceu de mesmo no dia que um tal de Zé Branquelo, apelidado de Hulk Branco, terrível estuprador gigante escapulia da lei. Quanto me dá preu trazer a cabeça desse safado? Tudo acertado e dias depois lá estava ele: Eu dei voz de prisão, ele não quis se entregar; trouxe a fim da força, taí! E sacudiu a cabeça do libertino no birô do delegado. Susto da pêga, da autoridade quase cagar-se todo! Que é isso, rapaz, cadê as mãos dele? Ah, esqueci as chaves das algemas em casa, não queria perdê-las; mas as digitais do desgraçado estão aqui, tome! Pode conferir se é ele mesmo! E era. A partir disso, onde tivesse meliante odiado ou foragido com a cabeça a prêmio, lá estava ele na caça ao ganso - bastava suspeitar, nem estouvava, resolvia. Assim caçou Megalodon, Tiranossauro, resolveu o caso Taylor v. Taintor, desbaratou uma rede de camicases, enfrentou fera na Oração da Cabra Preta, numa encruzilhada para tirar tudo a limpo; desfeitou em pleno natal um cabuloso que queria lhe enrolar com chá de heléboro negro: Quer me envenenar, fidapeste? Cada uma, hem? Nunca trastejou da coragem diante de alças de mira, garras de bicho, encarou obstáculos, pegou malfeitores na curva do desvio, detonou de véspera um bocado de homem-bomba que apareceu. Só isso? Pra ele: Só poltronice! Ah, assim o senhor acaba com a humanidade! Comigo é assim: Corro pro perigo, cerro os punhos e o enfrento o sopapo! Por causa disso conheceu o Agente 114, caçador de bandidos, o tal do Jonah Hex, ocasião em que flertou e se ajeitou num caso íntimo com a gringa bonitona Domino Harvey. Quando ela partiu, ele foi pegar o dragão da Caverna dos Suspiros e tomou pra si os tesouros do Pirata. Ali viu de longe a Alamoa, na Porta do Pico, e com ela casou-se numa sexta-feira do Espinhaço do Cavalo. Mas tinha de voltar e ela não quis. Pegou a Nau Catarineta e foi dar na Cova da Serpente de Asas, no Serrote da Lapa. Lá tomou um guizo e uma pena da bicha ruim, além de ganhar uma carranca do alcoviteiro Caboclo D’Água, que arrumou pra ele um romance tórrido com a Siana Branca de Correntina. No meio da função descabelada, deu uma ventania repentina e ele se viu atracado com o devorador ciclope Labatut, tendo de pegá-lo na marra pela munheca e sair montado na Cabra Cabriola pra caçar o Carneiro de Ouro, lá na Furna dos Morcegos. Ao capturar o caprino apareceu logo uma jiboia e ele agarrou-se com ela de desencantá-la: era uma princesa frochosa, com quem juntou as catrevagens por um bom bocado de tempo. Tome trupé! E agora? Hoje vivo de apaziguar a noite deste fim de mundo! Acha pouco? Escreva aí: Fim de valentão é cadeia, bala quente e peixeira fria! “Pecador repara que há de morrer”. Há de valer confissão, senão num salva! Não vim praquí só pra contar hestória. Enfrentei quantos ariscos mandacarus de fogo, vali-me do Justo Juiz, não fosse minha devoção, já tinha emborcado faz tempo. Sou o verdadeiro de muitas cópias. Fiz poucos amigos porque não quiseram e também porque não quis. É preciso refazer a humanidade de outro modo: está tudo perdido. Somente parvos, quanta maluquice, Deus meu! Eu sou assim, o mundo assado. E era só vê-lo sentado no tamborete lá na frente da prefeitura, desavindo, com sua jaqueta puída, de relance no bolso o distintivo de detetive, assoprando uma música lúgubre no pente enrolado em papel de cigarro: uma balada de morte. Que bicho mora dentro de mim? Ainda outro dia soube dele agarrado num fuá da peste com a Mulher da Sombrinha. Coisa dele mesmo. Todo mundo tremia, de considerá-lo às escondidas um duende desumano, um sátiro impiedoso, o deslavado monstro do silêncio, um vilão inumano ou algo parecido. Deus me defenda! Culpa tinha? Mais diziam amiúde que ele vasculhava os escondidos só por perversão. Tornou-se agonia do povo, um pária. E ele: Não quero esse veneno, morro de fome; minhas muitas vidas valem cada uma das minhas tantas mortes: para cada medo uma coragem equivalente, não levo ignominia pra casa. Era seu desencanto na sua impiedosa careta só pra assustar: Não acredito em mais ninguém nem em nada. Tudo é tão crepuscular... Morreu por vontade própria, como quem foi cagar no mato a cochilar sonhando vigia dos vivos. Até mais ver.

 

Alice Walker: Ninguém é seu amigo se exige seu silêncio ou nega seu direito de crescer... A maneira mais comum de as pessoas desistirem do seu poder é pensar que não têm nenhum... O que a mente não entende, ela adora ou teme... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Hilary Mantel: Se você ficar preso, afaste-se da sua mesa. Dê uma caminhada, tome um banho, vá dormir, faça uma caminhada, desenhe, ouça música, medite, faça exercícios; faça isso, não fique aí parado, olhando feio para o problema. Mas não faça ligações nem vá a festas; se fizer isso, as palavras de outras pessoas vão jorrar onde as suas palavras perdidas deveriam estar. Abra um espaço para elas, crie um espaço. Seja paciente... Veja mais aqui.

Katherine Mansfield: Estabeleça como regra de vida nunca se arrepender e nunca olhar para trás. O arrependimento é um terrível desperdício de energia; não se pode construir sobre ele; só serve para se afundar... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

A CULTURA DO PAÍS

Imagem: Acervo ArtLAM.

Alteridade \ esse medo \ que ficou \ escondido na infância \ rouba do que serão \ sensações remotas \ Pior que isso, ele come \ coisas \ que nem vê. \ late \ até não existir mais \ mas um espelho lascado \ onde minha vida ainda é \ feita e contemplada \ e então \ - se houvesse um depois - \ ergue um bastião de palavras \ entre uma língua estrangeira \ e a própria estranheza \ Não sei porque \ essa ferida não me atinge.

II - 0,0016 quilômetros de palavras \ confinadas em um poema \ maneira curiosa de dizer que \ um homem caminhou pela morte \ formas \ ligeiramente arrependidas cruzaram-no \ graduações \ do que ele não tinha \ o ar \ que \ o mundo inala a cada minuto \ cada vez que sente falta de si mesmo \ o resto \ era aritmética superior \ sabendo cair e não cair, evaporar \ como uma ferida transparente.

Poema da escritora e tradutora argentina María Negroni. Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

TRISTE TIGRE - [...] É verdade que ninguém [...] tinha visto o que nós, as crianças e minha mãe, víamos em casa, onde ele se comportava como um tirano. E é isso que se destaca acima de tudo nessa personalidade: alguém que não suporta contradições, que precisa sempre ter controle sobre tudo, que decide, monitora, pune e que nunca compartilha o poder. [...] O que há de libertador na literatura é que ela nos oferece acesso a algo maior do que nós mesmos. Maior do que a nossa dor, maior do que a nossa experiência pessoal, maior do que a intensidade de que falei. Descobrir a literatura é como ter acesso a um mundo de risco extremo, de encontros com a enormidade da vida e da morte, mas em um plano diferente. Pode ser um consolo. Uma forma de consolo, mas nunca o suficiente para salvar uma pessoa. [...] Com uma criança, a porta está sempre escancarada. Uma criança não pode abrir ou fechar a porta do consentimento. Não consegue chegar à maçaneta. Simplesmente, não está ao seu alcance [...] Posso dizer que fiquei feliz, que nós ficamos felizes. Ninguém pode tirar a chuva de verão de nós. [...]. Trechos extraídos da obra Triste tigre (2023), da escritora francesa Neige Sinno, autora de obras como A Vida dos Ratos (2007) e Le Camion (2018).

 

ECOFEMINISMO MATERIALISTA - [...] Ecofeministas materialistas estão falando sobre condições econômicas-biológicas-biofísicas radicais da vida [...] Nos últimos anos, o capitalismo intensificou sua penetração em todos os aspectos da vida cotidiana, como a proeminência dos grandes bancos ou a tendência à digitalização. Os bancos estão comprando enormes quantidades de terras agrícolas ao redor do mundo para uso em tecnologias agrícolas experimentais, como sementes híbridas geneticamente modificadas. Mas a terra para o cultivo de alimentos é a base do sustento das pessoas. É claro que, se você olhar além do capitalismo, encontrará o patriarcado. No sistema patriarcal-colonial-capitalista, a forma originária e mais antiga de poder é a dominação dos homens sobre as mulheres. Em seguida, vem a colonização, invadindo a terra e se apropriando dos recursos de outros povos. Finalmente, a forma econômica capitalista emerge da colonização e é relativamente moderna, com apenas algumas centenas de anos. É importante ver esses três sistemas como sistemas concorrentes, emaranhados e que se reforçam mutuamente. O próprio capitalismo não funcionaria sem as energias patriarcais que o impulsionam. Essas energias são aprendidas e incorporadas nos homens e expressas em práticas sociais e econômicas. Observando os três sistemas, cada um tem vários níveis – do inconsciente às ações cotidianas, às estruturas políticas e à ideologia. [...] A natureza passa pelos corpos, que, uma vez mortos, retornam para fertilizar a Terra. Então, sim, foi uma alegria aprender sobre o sentido relacional de "corpo-território" das mulheres latino-americanas. [...] Um ecofeminismo materialista combina uma resposta feminista, descolonial e socialista ao colapso ecológico do século XXI. Buscamos um Pluriverso – como diz o movimento zapatista, um mundo onde muitas culturas autônomas coexistem. Já mencionei a agricultura comunitária de mulheres chinesas, e há iniciativas semelhantes de Rojava ao Equador. O Pluriverso descreve uma variedade de modelos para viver a sustentabilidade – e no final do livro há um convite para se tornar ativo e participar da Tapeçaria Global de Alternativas, algo que Ashish Kothari e colegas na Índia estão coordenando. Coisas boas estão acontecendo – só que o sistema-mundo do capitalismo colonial-patriarcal é tão agressivo e tão barulhento que nos falta tempo! [...]. Trechos da entrevista Materialist Ecofeminism (Capire, 2025), concedida pela socióloga australiana Ariel Salleh, que escreve sobre relações entre humanidade e natureza, ecologia política, movimentos de mudança social e ecofeminismo: A fotossíntese foliar à luz solar impulsiona o ciclo hidrológico da Terra enquanto retira carbono da atmosfera. Essa análise do clima é precisamente o oposto do que afirmam os agricultores industriais e os fabricantes de alimentos falsificados. Diferentemente da lógica dos aproveitadores e mecanófilos, a chave para curar "o metabolismo do clima" é a água – a corrente sanguínea do planeta. Uma ciência relacional reconhece a influência de múltiplos processos vitais na condução da circulação de resfriamento da Terra, dos ciclos hídricos locais e globais. Biosfera e atmosfera são uma só. Ela é autora dos estudos Ecofeminismo (2017), Ecofeminismo como sociologia (2019) e Teorias e lutas feministas marxistas hoje: escritos essenciais sobre interseccionalidade, trabalho e ecofeminismo (2019), entre outros. Veja mais aqui & aqui.

 

A ARTE DE JULIANA XUCURU

Na nossa infância indígena, a arte é fundamental e está presente desde cedo...

Pensamento da artista visual, ativista e pesquisadora indígena Juliana Xucuru, do povo Xukuru de Cimbres, com graduação e mestrado em Artes Visuais, pela UFPB e UFPE. Sua obra se insere a partir da virada decolonial, questionando referenciais hegemônicos eurocêntricos impostos pela invasão colonial sobre as terras indígenas de seu povo e outras etnias; principalmente do Nordeste do Brasil. Os modos de vida em interação com a natureza sagrada e os encantados de luz, princípios da cosmovisão indígena de seu povo Xukuru, e os deslocamentos forçados das mulheres indígenas, bem como as formas de trabalhos análogas à escravidão, são temas constantes em seus trabalhos artísticos. Com sua arte ela recupera referenciais artísticos tradicionais de seu povo, por meio de sua presença corpo- mulher- território Limolaygo Toype, em lugares ainda pouco ocupados pela presença das mulheres indígenas e seus saberes ancestrais. Veja mais aqui.

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CANTALICE E A CIDADE DAS LARANJAS DE BRENDA MAR(QUE)S PENA

Acontecerá no próximo dia 14 de setembro, na Terceira Feira: encontro de literaturas das margens do mundo, Diamantina – MG, o lançamento do romance Cantalice e a Cidade das Laranjas (Infame Ruído, 2025) da escritora ativista-imersiva-poeta-baterista-jornalista, Brenda Mar(que)s Pena, contando a história de uma mulher que luta pela liberdade e justiça em uma cidade provinciana, com memórias e encontros de coragem, resistência, na busca por um futuro melhor em meio à escuridão de um período de guerras e conflitos, relembrando da importância de abraçar a diversidade, valorizar o diálogo e trabalhar por um mundo mais justo. Veja mais aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.