ZÉ DA KOMBI - José Zé
era só isso, órfão e um monte de apelido: inchado, ocrídio quase estrábico,
banguela, catingoso e juízo pouco. Nunca deu certo com as meninas: a primeira
deixou-lhe pela inhaca, deixando-o na rua da amargura pelo primeiro cheiroso
que apareceu. Da segunda, sobrou uma mão na frente e outra atrás: fugiu
intoxicada nos braços de um que respeitasse as suas narinas com relação às
flatulências. A terceira, não teve, ficou nisso mesmo. Na pior: largado, fodido
e despejado. No rol dos pedintes, dormia aqui, acolá, ao relento. De repente:
uma bolada dos céus, não se sabe ao certo se por herança ou trabalhos de
Hércules. Primo da hora apareceu com negócio da China: uma Kombi sabe-se lá ano
e modelo. Engraçou-se e justou, pá daqui, pá dali; encalistrado pelo prônubo, adrede,
à primeira vista, pagou mais que o devido e alisou, nada mais nos bolsos: era o
amor e o amor vale qualquer preço e sacrifício. Ganhou novo apelido: Zé da
Kombi; o dela, Fogo no rabo. Não era lá essas coisas, já havia incendiado um
tanto de vezes, estava na cara. Mas era fogosa, queimava a lenha, parecia, de
tão fumacenta. E par e passo, estreitaram mesmo um caso de amor. Confira: ele não
sabia dirigir: E agora? Era ela ensinada. Bastou ele impar com as mãos na
direção e um monte de ideia na cabeça, ela saiu servindo por frete. Doravante o
seu talismã e ganha-pão. Arregaçava as mangas e ela subia rampa gemendo: erguia
a venta, mostrava os dentes, sentava na traseira e vupt, nem se queixava; leal,
nunca se rebelou. Ele esnobava e com tirania violava todos os limites,
imponente demonstração de força e mando. Ela lá, à medida. Contudo, se ele arrumasse
qualquer pro esquento do pé, ela se amuava, aos caprichos, enciumada. Uma bronca
se desse escapulidas. Pulasse a cerca, ela se vingava. Ele entendeu, afinal,
amava. Veio o casamento, um escândalo. Nenhum padre, pastor ou religioso que
aprovasse aquilo. A maior mangação: ela de véu e grinalda, ele todo como manda
o figurino. Ah, deixaram não. Ele nem aí, saíram na barulhada de recém-casados.
E nada de adultério: juraram, entre si, amor eterno, e isso desancando a
gramática e a credulidade pública. Era seu segredo de Estado: ele, Bonaparte; ela,
Josefina, ficou-lhe o nome: Zefinha. Atravessaram rios e desertos, morros,
mares, carregando pecadores, anjos e arcanjos. Afora brebotes de todo tipo. Deram
até uma carona para o Criador que ia para o paraíso. Na saída, arregalaram os
olhos com o inominado e uma tuia de alma sebosa. Passaram pelas portas do
inferno, escapulindo a nado pelo rio de Caronte, pântanos, transumantes, até
toparem com a Salamandra das grandes privações e expiaram todas as faltas, blasfêmias,
lavaram a alma entre estrelas, nuvens passageiras, nebulosas, meteoros, cometas.
Equilibraram-se no trapézio de uma ponte sideral com o zodíaco, as estações, feito
Ísis e Osiris, desceram para uma escala no Japão e três anos depois à
Austrália, o seu grande sonho. Trilharam as vinte mil léguas submarinas, fizeram
a volta ao mundo em dois mil dias, contaram até dez, alcançaram a lua, retornaram
pelo polo sul, seguiram pelas cordilheiras, daí até o Alaska e aprumando no meridiano
Greenwich, escorregaram até Maputo, para vencerem o Índico até Shangri-lá. De lá
para a Transilvânia, subiram num arco-íris por toda Via-Láctea, rumo a outras
galáxias por vórtices e abismos. Depois de muito zanzarem por aí, labutas e
prazeres, se arrancharam como hóspedes num lugar qualquer em que colheram umas
espigas de milho para assar ao Sol, largando fora os sabugos. Enfim, voaram
sobre todos os obstáculos e irromperam no oco do mundo até se arrancharem
cansados e felizes para sempre: ela esquartejada num ferro velho, ele, ninguém
sabe, só uma lápide: Aqui jaz quem amou Zefinha. Quem botou lá? Quem sabe, vá
saber. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS: Xilogravura
de José Lourenço [...] Feito
o caso da menina que estava já três anos sem andar. Os pais trouxeram a criança
num carro de mão, as pernas finas apoiadas numa tábua, pois, de tão duras, nem
dobravam. Dizem que bastou o beato botar a mão na cabeça dela, rezar e a menina
se pôr de pé. Histeria, isso é histeria, não é milagre coisa nenhuma – o padre
esbravejou na missa – coisa de gente ignorante que vai atrás de artimanha de
catimbozeiro. [...] Era sempre intenso o bulício no mercado, onde se misturavam, ao pregão
dos comerciantes, berros de cabritos, grunhidos de porcos, a farra das guinés,
perus e galinhas, retiradas de qualquer eito de dentro do garajau, para que as
donas de casa pudessem lhes soprar as penas sob as asas e pendurá-las pelos
pés, antes de decidirem qual deles comprar. Àquela manhã, a agitação
revelava-se mais intensa por conta do aglomerado de pessoas na frente do
pórtico principal. Estavam tão próximas umas das outras, que não se podia ter
ideia do que se tratava. O padre preparava-se para indagar quando um coro de
vozes ergueu-se em vivas e apupos ao beato Chico Noveneiro. [...]. Trechos
do conto O beato e o padre, da
escritora Edna Alcântara.
ALGUÉM FALOU: [...] As mulheres da minha geração perambulam pelo
castelo-em-ruínas do casamento. E se possuem a chave da liberdade conferida
pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram-nos a chave, mas esqueceram de
construir a porta. Pensamento da escritora e jornalista Marcia Denser.
A POESIA DE AMANDA BERENGUER
VOCÊ NÃO QUER VIR CHORAR
COMIGO? - Há algo / a ameixa roxa caiu da árvore / uma nuvem escurece
placidamente o quarto / ninguém? / pingando a torneira da cozinha sereno e suave / eu preciso de você / eu sou descendo uma escada rolante Isso
me leva cegamente / sou eu? / no entanto, me
vejo sentado à mesa escrita e "Quando eu quero chorar eu não choro e às vezes choro sem querer "/ meu irmão / teremos uma reunião plañidera nas entranhas de angústia / o tempo olha para nós e nos engana / Armadilha? / Alucinação? / Ameixa roxa / Ele caiu da árvore / -Desculpe / O vento disse / e passou por / levando a coisa mais querida / e aqui estou eu / na borda em si / O que não sabemos / neste canto da casa / preciso de você / ouça quem me ouve / Você quer vir chorar comigo?
NADA - Cair
no vazio - sem mãos / segurar: ah! conjugar / verbo ativo - por favor! / Alcançar
uma corda - uma escada - / uma mão amiga - / que guardam os minutos - horas e
anos - / caindo no poço insondável / do nada -. / O tempo disfarçado de
presente / Nos engana em seu esplendor, / e passa e passa sem possível
detenção: / hoje somos e amanhã seremos – cúmplices eternos do nada.
PRIMAVERA I - Às vezes, quando estamos no
mundo inteiro / Para ver a terrível maravilha, / quando vemos a primavera
nascer / Sob um grito mortal, como crianças. / Há momentos tão difíceis, e
estamos / de pé, na tolerância respirável / da terra, entre luzes de perigo, / comendo
nossas unhas, escrevendo / uma carta com terra no céu, / para nos ver até que
ponto, até / quando, e às vezes nos vemos como mortos / com os ossos floridos,
bem reis / deitado e com jóias. Para nos ver. / E há momentos entre outros, tão
serenos, / em que vamos de sombra, e não é vista.
Poemas
da poeta uruguaia Amanda Berenguer (1921- 2010) que expressa: Ser poeta é como ser um
cozinheiro fabricando na cozinha todos os dias, um pão extravagante,
extra-limitado, ex-trafamiliar, extraterritorial, extravenado, extralegal,
extralegal, pão com fronteiras e leis próprias, cuja farinha é moída entre Eu
sou solitário e pessoal, e o mundo e a sociedade que nos rodeia, onde trabalham
integrados, são as conchas mais duras com o pólen mais leve.Ser poeta no
Uruguai, hoje é ser quem eu sou, ou parece ser, em um certo lugar do planeta. Veja mais aqui.
A ARTE
DE CATARINA
GUSHIKEN
Sou
artista mestiça, inspirada por memórias que migram por peles, lugares,
retratos, e pela natureza que desabrocha através destas lembranças.
A arte
da artista Catarina Gushiken. Veja
mais aqui.
A OBRA DE WILHELM REICH
Somos responsáveis pelo o quê fazemos e
recebemos. Mas não somos responsáveis pelo que sentimos. Quem sou eu para ter
opinião própria, governar minha vida e achar que o mundo é meu? Não dou festas
para divulgar minhas ideias. Se minhas ideias forem válidas, elas próprias se
divulgarão.
&