A RIQUEZA DE
MANÉ TONHO – Mané Tonho era pobre de Jó, também
não servia para nada, nem pai tinha, mãe muito menos, era um enjeitado. Um braquelo
franzino, vixe, Deus meu, mais parecia uma tabica graúda, daquela meia troncha,
de chega dava pena de vê-lo. Quem criou essa trepeça? Quem sabe! Isso é um
desacerto da vida. Parecia mesmo. Desengonçado, todo desligado, andava assim,
quase avoando, espinhaço envergado, pálpebras arriadas de quase nem falar, nem
coragem tinha para tanto. Ao chamá-lo, demorava que só pra voltar e responder,
lá distante de si e de tudo dava um hem qualquer, de ninguém nem mais aparecer pra
falar. Esse menino num tem serventia mesmo, diziam na cara lavada. E ele nem
nem. Só no de seu. Onde essa alma penada mora? Quem sabe, ora! Um dia lá falavam
duma casa malassombrada que havia no oitão defronte do arruado longe. Aquela ali?
Apontavam: Aquela mesma. Num diga. Quem é doido de ir lá? Ara, ali é a casa do
coisa-ruim, quem vai lá, num volta. E num é que Mané Tonho num dia de ter
tomado umas e outras inventou de encarar o pávido recinto? Pois foi. Num vai
lá, abestalhado, quem vai num volta. Ele foi, nem nem. Bicado como estava,
abriu o ferrolho enfurrajado do resto de portão, entrou pela calçada interna e
foi bater na porta. Ninguém abriu. Ele, então, empurrou com força e abriu-se
com o maior rangido amedrontador. Sabe-se que ele entrou no meio da escuridão. E
o povo do lado de fora: E num é que o danado entrou mesmo? Ora, quem fica é que
é besta, quero lá ver maldição braba pra cima de mim, vou-me embora. Eu também.
E foram todos. Lá dentro Mané Tonho tateava pelas paredes à procura dalguma
coisa para clarear o recinto. Tropeçou numas coisas, topou em outras, quase
cai, se segurou como podia. Foi aí que ele bateu nuns candelabros que
tremularam emitindo sons horríveis. Meio lá, meio cá, sacou da caixa de fósforos:
velas enormes diante de oratório grande, cheio de castiçais. Acendeu uns dois
pavios e se assutou com o que viu: era a imagem dele próprio no espelho, pensou
que fosse assombração. Não era. Até se riu com a leseira do susto. Pegou um
castiçal, iluminou tudo e percebeu umas tranqueiras num canto da parede, ajeitando
direitinho pra fazer uma fogueira. Tudo pronto tocou fogo e ficou olhando em
volta. Admirou-se com um sofá velho encostado na parede oposta, lá mesmo foi e
se arranchou alisando a pança. Lá pras tantas, quase cochilando ouviu alguém
dizer: Caio? Hem? Caio? Ah, destá, caia, ora. Caiu uma perna. Depois um grito:
Caio? Hem? Caio? Oxe, caia, desgraçado! Caiu a outra perna. Quase dois minutos
depois: Caio? Caia, fidumégua! Caiu um braço. Ih, esse negócio é de rosca! Pouco
depois: Caio? Caia, fidapeste! Caiu um quarto e outro braço! Pronto, essa
assombração é uma lorota mesmo. Larga de pinoia, oxente! Não demorou muito:
Caio? Por que num cai tudo logo, remoento! Teibei. Caiu a cabeça com tudo e
juntou-se tudinho. Pronto, agora quero ver que malassombro é esse. Fez-se um
zoadeiro, a poeira cobriu e quando assentou, era uma lagartixa e das grandes. Oxe!
É isso é que é malassombro? Ridículo! Num mangue de mim. Agora deu, mangar de
tu, a-há! Já disse, não mangue de mim! Aí ele fez menção de pegá-la, ela correu
pelos cantos e foi subindo na parede, ele pegou uma vassoura e tei, ela caiu. Pegou-la,
segurou-la e enfiou num espeto, ela aos gritos. Cala a boca que vou assá-la.
Não, não me asse. Ele enfiou o espeto do furico até sair pela boca, ela
engasgada. Aí, quanto mais botava o espeto no fogo, mais ela gritava: Não me
asse, rapaz. Foi aí que ao assoprar o fogo, a lagartixa pulou de um jeito
extraordinário, escapuliu e saíram ambos no maior pega-pega, até se agarrarem
numa briga medonha e bem demorada. Depois de um sassaricado poeirento, ele
conseguiu amarrar a lagartixa que dizia: Me solte, rapaz. Solto não, amanhã
quero mostrar a todo mundo quem é o malassombro daqui. Ah, me solte que eu lhe
amaldiçoo. Solto nada! Me solte que sou o marido da dona daqui, enterrei muito
dinheiro nesse chão e não quero ninguém por perto. Solto nada, amanhã você vai
ver. Ah, me salve, rapaz? Salvar como? Arranque a botija, está ali. Onde? Ali,
arranque, vá! Quem enterrou num foi você? Foi. Pois, então, arranque você, eu
não. Arranque, rapaz. Arranco nada, arranque você. Então me dê o escavador. Vá pegar.
Me solte! Deixe de presepada. Me solte, como eu vou tirar a botija amarrado?
Não vai aprontar comigo, vai? Não, me solte que eu vou trazer a botija. Promete?
Juro por minha morte! Jura? Juro! Então, tá. Aí soltou e ela foi cavando,
cavando, até bater em dois baús. Pronto, taí. E foi desaparecendo. Quando ela
sumiu, ele foi dormir, ronco solto noite adentro. O dia amanheceu e ao
despertar ouviu uma barulhada grande na rua, foi aí que viu que o povo todinho
estava lá reunido esperando o desfecho. Que é que é, mundiça? Eita, ele tá
vivo! Vão-se embora que quero dormir. O cabra é corajoso mesmo, vai morar de
vez aí. Será? E lá se foi um dia, dois, uma semana e ele lá. Daí mais um tempo
passado, só se via trabalhadores aumentando o muro, ajeitando as coisas lá pra
dentro e o que era uma casa abandonada ficou todas nos trinques na posse de um
dos homens mais ricos hoje em dia. Não é mentira não, na vera mesmo. Quem diria
que o Mané Tonho dava pra alguma coisa que prestasse? De onde menos se espera é
que acontece. Hoje ele é um buchudo ricaço, cheio das gaitadas e nove horas, e
dono de quase tudo na redondeza de Alagoinhanduba. Achar botija, malassombro
dá nisso. Pois é. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
Ninguém esperava. Num mundo turvado por aflição econômica, cinismo
político, vazio cultural e desesperança pessoal, aquilo apenas aconteceu.
Subitamente, ditaduras podiam ser derrubadas pelas mãos desarmadas do povo,
mesmo que essas mãos estivessem ensanguentadas pelo sacrifício dos que tombaram.
Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos do
desprezo universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos.
Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança
desvaneceu-se. E a confiança é o que aglutina a sociedade, o mercado e as
instituições. Sem confiança nada funciona. Sem confiança o contrato social se
dissolve, e as pessoas desaparecem, ao se transformarem em indivíduos
defensivos lutando pela sobrevivência. Entretanto, nas bordas de um mundo que
havia chegado ao limite de sua capacidade de propiciar aos seres humanos a
faculdade de viver juntos e compartilhar sua vida com a natureza, mais uma vez
os indivíduos realmente se uniram para encontrar novas formas de sermos nós, o
povo. [...] Começou nas
redes sociais da internet, já que estas são espaços de autonomia, muito além do
controle de governos e empresas, que, ao longo da história, haviam monopolizado
os canais de comunicação como alicerces de seu poder. Compartilhando dores e
esperanças no livre espaço público da internet, conectando-se entre si e
concebendo projetos a partir de múltiplas fontes do ser, indivíduos formaram
redes, a despeito de suas opiniões pessoais ou filiações organizacionais.
Uniram-se. E sua união os ajudou a superar o medo, essa emoção paralisante em
que os poderes constituídos se sustentam para prosperar e se reproduzir, por
intimidação ou desestímulo – e quando necessário pela violência pura e simples,
seja ela disfarçada ou institucionalmente aplicada. [...] Esses movimentos sociais em rede são novos
tipos de movimentos democráticos, movimentos que estão reconstruindo a esfera
pública no espaço de autonomia constituído em torno da interação entre
localidades e redes da internet, fazendo experiências com as tomadas de decisão
com base em assembleias e reconstituindo a confiança como alicerce da interação
humana. Eles reconhecem os princípios que se anunciaram com as revoluções
libertárias do Iluminismo, embora distingam a permanente traição desses
princípios, a começar pela negação original da cidadania plena para mulheres,
minorias e povos colonizados. Eles enfatizam as contradições entre uma
democracia baseada no cidadão e uma cidade à venda pelo lance mais alto. Afirmam seu direito de começar tudo de novo.
Começar do começo, após chegar ao limite da autodestruição graças a nossas
instituições atuais. Ou assim acreditam os atores desses movimentos, cujas
palavras apenas tomei de empréstimo. O legado dos movimentos sociais em rede
terá sido afirmar a possibilidade de reaprender a conviver. Na verdadeira
democracia. [...].
Trechos
extraídos da obra Redes de indignação e
esperança: movimentos sociais na era da internet (Zahar, 2013), do
sociólogo espanhol Manuel Castells. Veja mais aqui e aqui.
TAO TE CHING & LAO TSÉ
DA LEI DA COMPENSAÇÃO HUMANA: O que é imperfeito será perfeito; / O que é
curvo será reto; / O que é vazio será cheio; / Onde há falta haverá abundância;
/ Onde há plenitude haverá vacuidade. / Quando algo se dissolve, algo nasce. / Assim,
o sábio, / Encerrando em si a alma do Uno, / Se torna modelo do Universo. / Não
dá importância a si mesmo, / E será considerado importante. / Não se interessa
por si mesmo, / E será venerado por todos. / Nada quer para si, / E prospera em
tudo. / Não pensa em si, / E é superior a tudo. / E, por não ter desejos, / É
invulnerável. / Por isto, há muita verdade / No velho ditado: / Quem se amolda
é forte. / É esta a meta suprema / Da vida humana.
VIVÊNCIA PELAS LEIS CÓSMICAS: O que está em repouso é fácil conservar. / O
que é insignificante pode facilmente ser influenciado. / O que é frágil pode
ser quebrado facilmente. / O que é leve pode ser levado pelo vento. / A ordem
deve ser mantida, antes que surja a desordem. / A árvore mais gigantesca nasceu
de uma raizinha fina como um cabelo. / Uma torre de nove andares repousa sobre
uma pequena área de terra. / Uma viagem de mil léguas começou com o primeiro
passo. / Quem faz algo contra a lei tem de falhar. / Quem se apega a algo o
perderá. / Por isto, o sábio não é egocêntrico, e por isto nunca falha. / Não
se apega a nada, e por isto não perde nada. / Outros falham antes de chegar à
meta, / Porque não esperaram pelo momento oportuno. / Quem enxerga o início e o
fim, esse não falha. / O único desejo do sábio é não ter desejos. / Não deseja nada
o que a outros é desejável. / Nem deseja inteligir objetos de inteligência. / O
que a outros é insignificante o sábio o considera importante. / Assim
estabelece ele a reta ordem em si e nos outros, / Não agindo jamais em
desacordo com as leis cósmicas.
Poemas extraídos
do Tao Te Ching (Mauad X, 2011), do antigo filósofo e escritor chinês Lao
Tsé que viveu por volta de 1300aC. Veja mais aqui.
A ARTE DA MAG MAGRELA
A arte
da multiartista Mag Magrela.
A paulistana é poeta, ilustradora, desenhista e artista de rua e grafite. Veja mais aqui
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