O FANTASMA DA MARIA FUMAÇA - Imagem: Os catamoscas, da artista Fernanda
Chieco. - Da primeira vez
o menino nem sabia. Ouviu o apito: o que é isso? Na rodagem não havia ninguém
pra dizer o que era. Outro assobio mais longo, olhos nos quatro cantos: tudo
quieto, como sempre fora. Mais outro: que droga é nove? Foi quando viu lá
detrás do morro, algo que vinha na maior barulhada. Danou-se! Será o fim do
mundo? E mais vinha: vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vou daqui praí, vou te
pegar! Se assunte menino! Pernas pra que te quero. Lá vem a geringonça! Escondeu-se
de nada mais vê-lo, só o desmantelo e o povo acenando. Ué, ninguém correu não?
Depois que o troço passava, era que ia ver. É a Maria Fumaça, soube. E no
segundo dia, não ficou não, as pernas tremiam: esse povo é tudo doido. Toda vez
que apontava: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Com o tempo achou de topar e
lá vinha: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Que venha! E veio, vinha virada na
gota! Segura o pipoco, olha a coisa! Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vixe!
Tudo parecia se desmanchar com a zoada! Eita, lá vem mesmo, passou. Ufa! É só
isso? Já foi. Então todo dia, ele ali esperava: cadê o estrupício? E na hora de
todo dia, lá vinha danada: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Nem mais tinha
medo, até acenava pro condutor! Ê maquinista! E ele acenava sorrindo puxando o
apito: piui, piui. Isso era todo dia da meninice, até quase rapaz. É que havia
crescido e precisava ir pra cidade trabalhar. Passaram-se os anos, décadas
esquecidas. Até um dia, muitas invernadas de nem se lembrar, deu cara com a
locomotiva na exposição: é ela. Oxe, ela mesma! E era aquela que passava todo
dia. Os olhos de homem feito, virou menino outra vez. O céu, o canto dos
pássaros, os campos, a rodagem, o povo converseiro, a vida fagueira. Ô tempo
bom! Ficou admirando aquilo no mais fundo do peito, lembrando o tempo em que
ela passava fazendo tudo tremer ao redor: Ô coisa bonita de se vê. Alguém falou
perto: Por muito tempo, ela ia e vinha, levando gente e coisas. Era. E mais
confidenciou: E eu era o maquinista. Virou-se, não havia ninguém. Procurou ao
redor, nem sinal. Arrodeou a locomotiva, não tinha um pé de gente. Meio
assustado, resolveu ir embora. Aí, alguém chamou: Ei, menino, lembra quando eu
passava apitando e você gritava na beira da rodagem do engenho? Voltou-se de um
pulo e era ele: o maquinista sorridente que o acenava todos os dias na infância
perdida. E danou-se a relatar o medo que dava a passagem do trem, até se
acostumar com coisa tão medonha. Viu que falava sozinho e saiu à procura dele,
até chegar à recepção: Você viu o maquinista? Ah, ele morreu há mais de vinte
anos, mas sempre aparece pra quem se aproxima dela. Ah é? É. Então esperou
encostado nela, nunca mais ele reapareceu, a infância ficou no coração. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
Habituas-te à tua forma. Às paredes construídas de
paciência, à altura do tecto cheio de manchas estranhas, ao chão pegajoso;
imperturbável, a tua respiração sonda o espaço e retorna, as tuas mãos acham no
escuro o interruptor, os cigarros, como te movimentares, habituas-te a fumar no
escuro, quem vês mais nitidamente são os teus filhos, pedalam em bicicletas de
pneus furados, pegam em ferramentas sem terem ninguém que lhes ensine, atiram
aos pássaros errados, raspam as faces com a tua navalha embotada. Habituas-te.
Debaixo dos cobertores a tua mulher revolve-se nua, sente-la próxima,
estendida, em dimensão real, tentas tocar-lhe, habituas-te a um corpo que
ninguém mais toca e tu mais e mais perdido à volta dela, difícil de consolar. Habituas-te
à vista como a uma história, a quem ta leu naquela altura, quase adormecido, já
naquela altura, muitos anos atrás, praticamente não compreendeste o
significado, tal como te esqueceste de muitas coisas e habituas-te à imagem que
fabricas depois: salteadores aparecem e cantam, há um homem com uma gadanha,
uma mulher numa torre, de braços abertos como se estivesse à espera de cair, no
entanto a espera dela é voluntária, ri-se. Habituas-te. A que em breve,
corajosamente alguém virá socorrê-la, derrotar os ladrões e dar cabo do homem
com a gadanha. Habituas-te ao impulso de a meter para dentro. A ficar hesitante
ao princípio, em seguida, aos teus hábitos, a uma relação com a luz sobre os
lençóis, à porta de ferro, à torneira que pinga, aos buracos dos cigarros nas
cortinas, aos teus posters nus que se oferecem, ao rosto omnipresente que se
debruça quando escurece, ao bafo da justiça, às conversas dos outros e à música
ao longe, ao facto de tudo provocar estalidos, ao desaparecer vagaroso de um
passo no corredor, a ter medo habituas-te, à tua nudez completa, sémen na mão,
caracol que és. A matutar habituas-te, à inutilidade da respiração contínua
habituas-te, ao constante cismar habituas-te.
Poema Dentro dos limites, extraído da obra De Namens
de ander (Em Nome do Outro, 2009),
da premiada poeta holandesa Ester Naomi
Perquin, tradução de Maria Leonor
Raven-Gomes.
A ARTE DE FERNANDA CHIECO
A arte da artista Fernanda
Chieco.
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