DO QUE VAI ATÉ SER – do artista visual russo Slava Fokk. - Decildita, a Dinha pros de casa e achegados, sonhava
muito, demais até de olhos abertos, abstraída em seus pensamentos. Era a caçula
de seu Moedicio e dona Juvitacia, casal mais tratado por Juva e Momó, os que
mimavam a menina que vivia de conversa com bichos e coisas, tinha até uma pedra
de estimação, a comadre Ita, em altos papos, diziam dela não bater bem da bola,
pois ela queria ser cientista desde que articulou a primeira frase da infância.
Tanto é que ao falar pela primeira vez na vida, ao invés de mencionar papai ou
mamãe, ela chamou por Mogéria e todos caíram o queixo no chão: era o nome da
irmã dela que morrera com um ano de idade e com os dedos enfiados na tomada
elétrica. Na verdade, antes dela, os cônjuges tiveram três filhos: a Mogéria
que morreu eletrocutada, a Mobutéria que morreu afogada no tanque do quintal, e
o Mojuvigênio que nasceu de parto complicado, morre mas num morre acometido de
não sei quantas enfermidades, até se segurar na vida lá pela adolescência.
Razões essa de mudarem o nome da ultimogênita, em princípio nomeada Modecilda,
mas na última hora fora registrada em cartório como sendo Decildita,
providência que acham os esposos justamente por ela ter vingado, senão, senão.
Para eles, mesmo assim, ela não escapou de umas esquisitices, logo levaram-na aos
médicos de todas as especialidades e não havia diagnóstico pras doidices dela,
talvez mitomania, não era, só numa sessão espírita descobriram: era a
reencarnação de uma grande benfeitora. Deixaram no de menos e vigiavam os
sonhos da menina que voava de olhos abertos ou fechados, e via as maravilhas e
as misérias do mundo: Minha nossa! Coisas reais a assustavam: a mediocridade, a
mesquinharia e o retrocesso, dela constatar em conversa miúda com os pais que a
espécie humana, desde o Homo Sapiens, não havia evoluído nada, cada vez mais
agarrada às coisas materiais e às turras uns com os outros, cada qual com sua
idolatria milenar por deuses, anjos e arcanjos forjados na mentira e só pelo
poder, nada mais, quanta intolerância, quanto ódio e impostura, sempre a mesma
coisa, entra ano e saem décadas, séculos, milênios. Os genitores
entreolhavam-se desconfiados para a tagarelice: seria genialidade ou doença mental,
quem sabe. Ela acordava no meio da noite com pesadelos terríveis por enfrentar exércitos
de zumbis num charco que era o quintal de casa que dava pro mundo, sabia ali o
inferno que era aqui mesmo e não onde diziam os religiosos, ou com íncubus que
lhe atentavam a carne com ameaça de morte, ou ainda, com a Perna Cabeluda, o
Boitatá, Sacis e outros monstros que estavam escondidos embaixo da sua cama
para atanazá-la. Haviam de confortá-la, protegê-la luz acesa a noite toda, agarrados
nela, cantando e dengando para ver se dormia e ela não pregava o olho, assim,
todo dia até já madura de anos. Já balzaquiana teve o primeiro aneurisma.
Internada, sonhou a morte do pai. Queria por que queria sair dali pra saber
dele que não aparecia às visitas. Um drama que durou bom tempo. Ao ter alta,
convalescente: Cadê pai? Viajou, já era pra ter chegado. Ela pôs-se a chorar, a
mãe e o irmão condoeram-se: Que houve, menina? Pai morreu. É impressão sua. Não,
pai morreu, não temos notícias dele. Foram ver: o genitor agonizava indigente
num hospital não sei onde. Num disse? Dias depois, o sepultamento. Aí ela
passou um tempo sem sonhar, olhos abertos dias, meses, anos, pervigil: estava
alerta sem pregar os olhos. Uns três ou quatro anos assim, até que teve o
segundo aneurisma, sonhava caindo num buraco sem fim e foi bater no centro da
Terra: era como o Verne tinha dito. E era atacada por cobras que voavam, por piranhas
que emergiam do chão, presa num redemoinho a naufragar. Viu-se no centro do
nada, quando uma esfinge viera anunciar a morte da sua mãe. Agoniou-se demais
aos gritos à procura da figura materna que não aparecia para amainar sua dor.
Despertou repentinamente chamando por ela e nada. Logo o irmão apareceu
mencionando que a mãe estava internada no hospital e passava bem. Ela não
aceitou, insistiu e, por mais que ele tentasse apaziaguá-la, irredutível,
seguiram pro hospital: ela havia falecido durante a madrugada. Depois disso,
outros tantos anos de vigilância sem conciliar o sono, até que numa tarde
primaveril deitou-se e teve o terceiro aneurisma e sonhou que ia a Marte e de
lá foi levada pelos planetas, fora da Via Láctea, e conhecido outros sóis e
galáxias, até visualizar lá no finzinho do horizonte, seu irmão ser esmagado
pelo tempo. Ela grita inutilmente. Ao se restabelecer corre pra casa e encontra
o irmão sentado no batente: Sai daí, mano, sonhei você morrendo! Besteira,
sonhe com os números da loteria pra gente ganhar uma bolada! Saia daí, mano.
Deixa disso, mana. E ficaram nisso, até ela sair desconsolada. Mal dobrou a
esquina, só ouviu o estrondo e o povo gritando: a casa desabou sobre o irmão,
Mojuvigênio. Restava agora ela sozinha pelo mundo, procurando sentido pra vida,
nem pode mais pintar os cabelos, acometida de uma tuia de aneurismas que não a
deixa em paz, mesmo assim, feliz da vida e sorrindo à toa, só o que lhe resta,
nada mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música do violonista, arranjador e compositor Marco
Pereira:
Bons encontros com Cristóvão Bastos, Instrumental com Ulisses Rocha, Ao vivo
com Nico Assunção & Free Jazz Festival In Concert & muito mais nos mais
de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos
de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui.
DITOS & DESDITOS – [...] Metade
da população mundial vive em áreas urbanas e suburbanas. Este fato tem sido
causa frequente de preocupação, pois nas cidades há mais pobreza e exclusão
social, fatores de iniquidade nos cuidados de saúde por maior dificuldade de
acesso e também no bem-estar pelas condições inerentes ao ambiente urbano.
[...]. Extraído da obra A cidade e a
saúde (Almedina, 2007), coordenado por Paula
Santana, evidenciando cientificamente a associação entre os problemas de
saúde e o ambiente humano construído, ao apresentar que a cidade é ao mesmo
tempo refúgio e ameaça, união e discriminação, proteção e agressão, procurando
com isso morfologias e funcionalidades urbanas que ajustem a cidade ao homem.
GLOBALIZAÇÃO – [...] reconhecer
a globalização das aparições humanas universais democráticas de justiça,
igualdade, liberdade e independência para todos, isto é, uma cidadania
planetária na qual o imperialismo, nas suas formas pós-coloniais, o
patriarcado, os problemas ecológicos, as distinções de classes forjadas pelo capitalismo
transnacional e os direitos de preferencias sexuais permaneçam em evidencia na
pauta educacional. [...]. Trecho de As
negociações da diferença: arte educação como desfiliação na era pós-moderna,
do autor e professor PhD, Jan
Jagodzinski, extraído da obra O pós-modernismo (Perspectiva, 2005), de J.
Guinsburg & Ana Mae Barbosa.
O ESTRANGEIRO – [...] Então,
não sei por quê, qualquer coisa se partiu dentro de mim. Comecei a gritar em
altos berros, insultei-o e disse-lhe para não rezar. Agarrara-o pela gola da batina.
Despejava nele todo âmago do meu coração com repentes de alegria e de cólera.
Tinha um ar tão confiante, não tinha? No entanto nenhuma das certezas valiam um
cabelo de mulher. Nem sequer tinha certeza de estar vivo, já que vivia como um
morto. Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de
tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e da morte que se aproximava.
Sim, só tinha isso. Mas, ao menos, agarrava essa verdade, tanto como essa
verdade se agarrava a mim. Tinha tido razão, ainda tinha razão, teria sempre
razão. Vivera de uma certa maneira e poderia ter vivido de outra. Fizera isso e
não fizera aquilo. Não fizera determinada coisa, ao passo que fizera outra. E
depois? Era como se, durante todo o tempo, tivesse esperado por esse minuto e por
essa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância, e eu
sabia bem por quê. Também ele sabia por quê. Do fundo do meu futuro durante
toda aquela vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que
ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua
passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia.
Que me importavam a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importavam o
seu Deus, as vidas que se encolhem, os destinos que se elegem, já que um só
destino devia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que,
como ele, se diziam meus irmãos [...]. Trecho extraído da obra O estrangeiro (Círculo do Livro, 1957), do
escritor, dramaturgo e filósofo francês Albert Camus (1913-1960). Veja
mais aqui, aqui e aqui.
DOIS POEMAS – O
GRANDE DESAFIO: Naquele tempo / A gente punha despreocupadamente os livros no
chão / ali mesmo naquele largo – areal batidos dos caminhos passados / os
mesmos trilhos de escravidões / onde hoje passa a avenida luminosamente grande
/ e com uma bola de meia / bem forrada de rede / bem dura de borracha roubada
às borracheiras do Neves / em alegre folguedo, entremeando caçambulas… / a
gente fazia um desafio… / O Antoninho / Filho desse senhor Moreira da taberna /
Era o capitão / E nos chamava de ó pá, / Agora virou doutor / (cajinjeiro como
nos tempos antigos) / passa, passa que nem cumprimenta / – doutor não conhece
preto da escola. / O Zeca guarda-redes / (pópilas, era cada mergulho! / Aí
rapage – gritava em delírio a garotada) / Hoje joga num clube da Baixa / Já foi
a Moçambique e no Congo / Dizem que ele vai ir em Lisboa / Já não vem no
Musseque / Esqueceu mesmo a tia Chiminha que lhe criou de pequenino / nunca
mais voltou nos bailes de Don´Ana, nunca mais / Vai no Sportingue, no
Restauração / outras vezes no choupal / que tem quitatas brancas / Mas eu
lembro sempre o Zeca pequenino / O nosso saudoso guarda-redes! / Tinha também /
tinha também o Velhinho, o Mascote, O Kamauindo… / – Coitado do Kamauindo! / Anda
lá na casa da Reclusão / (desesperado deu com duas chapadas na cara / do senhor
chefe / naquele dia em que lhe prendeu e lhe disparatou a mãe); / – O Velhinho
vive com a Ingrata / drama de todos os dias / A Ingrata vai nos brancos receber
dinheiro / E traz pro Velhinho beber; / – E o Mascote? Que é feito do Mascote?
/ – Ouvi dizer que foi lá em S. Tomé como contratado. / É verdade, e o Zé? / Que
é feito, que é feito? / Aquele rapaz tinha cada finta! / Hum… deixa só! / Quando
ele pegava com a bola ninguém lhe agarrava / vertiginosamente até na baliza. / E
o Venâncio? O meio-homem pequenino / que roubava mangas e os lápis nas
carteiras? / Fraquito da fome constante / quando apanhava um pinhão chorava
logo! / Agora parece que anda lixado / Lixado com doença no peito. / Nunca
mais! Nunca mais! / Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais!… / Era bom
aquele tempo / era boa a vida a fugir da escola a trepar aos cajueiros / a
roubar os doceiros e as quitandeiras / às caçambulas: / Atresa! Ninguém!
Ninguém! / tinha sabor emocionante de aventura / as fugas aos polícias / às
velhas dos quintais que pulávamos / Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha… /
e a gente fazia um desafio… / Oh, como eu gostava! / Eu gostava qualquer dia / de
voltar a fazer medição com o Zeca / o guarda-redes da Baixa que não conhece
mais a gente / escolhia o Velhinho, o Mascote, o Kamauindo, o Zé / o Venâncio,
e o António até / e íamos fazer um desafio como antigamente! / Ah, como eu
gostava… / Mas talvez um dia / quando as buganvílias alegremente florirem / quando
as bimbas entoarem hinos de madrugada nos capinzais / quando a sombra das
mulembeiras for mais boa / quando todos os que isoladamente padecemos / nos
encontrarmos iguais como antigamente / talvez a gente ponha / as dores, as
humilhações, os medos / desesperadamente no chão / no largo – areal batido de
caminhos passados / os mesmos trilhos de escravidões / onde passa a avenida que
ao sol ardente alcatroamos / e unidos nas ânsia, nas aventuras, nas esperanças
/ vamos então fazer um grande desafio… POEMA
DA ALIENAÇÃO - Não é este ainda o meu poema / o poema da minha
alma e do meu sangue / não / Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema / o
grande poema que sinto já circular em mim / O meu poema anda por aí vadio / no
mato ou na cidade / na voz do vento / no marulhar do mar / no Gesto e no Ser / O
meu poema anda por aí fora / envolto em panos garridos / vendendo-se / vendendo
/ “ma limonje ma limonjééé” / O meu poema corre nas ruas / com um quibalo podre
à cabeça / oferecendo-se / oferecendo / “carapau sardinha matona / ji ferrera
ji ferrerééé…” / O meu poema calcorreia ruas / “olha a probíncia” “diááário” / e
nenhum jornal traz ainda / o meu poema / O meu poema entra nos cafés / “amanhã
anda a roda amanhã anda a roda” / e a roda do meu poema / gira que gira / volta
que volta / nunca muda / “amanhã anda a roda / amanhã anda a roda” / O meu
poema vem do Musseque / ao sábado traz a roupa / à segunda leva a roupa / ao
sábado entrega a roupa e entrega-se / à segunda entrega-se e leva a roupa / O
meu poema está na aflição / da filha da lavadeira / esquiva / no quarto fechado
/ do patrão nuinho a passear / a fazer apetite a querer violar / O meu poema é
quitata / no Musseque à porta caída duma cubata / “remexe remexe / paga
dinheiro / vem dormir comigo” / O meu poema joga a bola despreocupado / no
grupo onde todo o mundo é criado / e grita / “obeçaite golo golo” / O meu poema
é contratado / anda nos cafezais a trabalhar / o contrato é um fardo / que
custa a carregar / “monangambééé” / O meu poema anda descalço na rua / O meu
poema carrega sacos no porto / enche porões / esvazia porões / e arranja força
cantando / “tué tué tué trr / arrimbuim puim puim” / O meu poema vai nas corda
/ encontrou sipaio / tinha imposto, o patrão / esqueceu assinar o cartão / vai
na estrada / cabelo cortado / “cabeça rapada / galinha assada / ó Zé” / picareta
que pesa / chicote que canta / O meu poema anda na praça trabalha na cozinha / vai
à oficina / enche a taberna e a cadeia / é pobre roto e sujo / vive na noite da
ignorância / o meu poema nada sabe de si / nem sabe pedi / O meu poema foi
feito para se dar / para se entregar / sem nada exigir / Mas o meu poema não é
fatalista / o meu poema é um poema que já quer / e já sabe / o meu poema sou
eu-branco / montado em mim-preto / a cavalgar pela vida. Poema do poeta
angolano António Jacinto
(1924-1991).
A ARTE DE SLAVA FOKK
A arte do artista visual russo Slava Fokk.
AGENDA
Mostra
Peibê de Zines e Publicações Independentes –
25/26 out, na Fanzinoteca do IF-Fluminense – Campus Macaé (RJ) & muito
mais na Agenda aqui.
&
Muitas & tantas vezes, Fernando Pessoa, Zygmunt Bauman, George Orwell, Pablo
Palazuelo, Roberto Sousa Causo, Janilson Sales, Milton
Nascimento, Viktoria Mullova, Joe Satriani & Marianna
Leporace aqui.