Não
fosse a sabedoria eruditíssima do filósofo daquelas bandas, doutor Zé Gulu,
jamais saberia eu porra nenhuma de nada sobre Salomão.
É
que certa tarde, quando adentrei no bar do Doro para embeiçar uma lapada da
teibei e lavar com uma lourinha suada pra amainar o cansaço da labuta e
desafogar as ideias, logo ele acenou chamando para aboletar-me ao seu lado,
fazendo sinal que queria tirar uns dedinhos de prosa comigo.
Ao
me acomodar na cadeira, recostei-me na parede e fiquei atento à sua baforada
demorada no pascaio, para irromper em riste:
-
Sua pornografia só tem de boa a parte dos Cânticos de Salomão.
Logo
empinei o pescoço com os olhos meio que arregalados, estranhando o tom severo da
sua sapecada certeira que soou como bordoada de acertar o centro do alvo no
cachaço.
Ele
deu outra demorada baforada e logo prosseguiu:
-
Li sua narrativa. Pornografia pura. Se foi de verdade, você lavou a jega.
Tomara que a mulher tenha valido a pena pra tanta volta de andejo. Mas a
literatura é sofrível. Salvo, evidente, a epígrafe e as citações dos Cânticos
de Salomão.
Embaraçado
com o seu topete, de um só gole virei a teibei e logo enchi o copo com cerveja
para azeitar o papo.
É
que ele se referia a uma narrativa que escrevi sob o título “O gosto da últimavez”, contando uma peripécia da boa com uma distinta religiosa da localidade.
-
Vou lhe contar uma coisa -, disse-me em tom sardônico debulhando o causo e
comparando a minha performance e a minha natureza geminiana com as muitas e
tantas do rei.
Tudo
começou quando o rei Davi botou mutuca na lindeza de Bethsabé. Enquanto Urias,
o marido dela, prestava contas dos feitos de guerra, ele nem aí vidrado no
decote dela. Nem o rol dos tesouros arrolados chamava mais atenção que a
passada do pódice rebolador dela nas vistas enamoradas do reinante. E o cônjuge
da distinta no maior blá blá blá de Davi encher o saco, armar tocaia e arrumar
num instante uma guerra no fim do mundo.
-
Na hora, majestade!
Lá
ia Urias fiel ao rei na primeira linha de batalha para uma guerra arranjada
para tirá-lo de campo e jogá-lo pra lá da regra três. Foi atrapalhar a vida de
outro. Era ele comandando a tropa pro inferno e o imperador aos galanteios nas
risadagens licenciosas da senhora dele.
Quando
Urias estrebuchou ferido de agonia, a majestade cravou os dentes de se lambuzar
todo nos gozos das carnes suculentas de Bethsabé. Já era.
Davi
matou dois coelhos com uma lapada só: o marido foi pro saco e ele partiu pra
mancebia engalanada nas entrâncias e reentrâncias cobiçadas da mulher, tomando
conta da viúva.
Dessa
sagrada união nasce um bruguelo.
O
primeiro nome dele foi dado pelo profeta Natã: Jedid-jah, o amado de Deus.
O
rei que não gostou nada dessa ideia de outro colocar o nome em filho seu, ora,
ajustou logo em riba da fivela e como senhor de mando na porratoda, o menino
passou-se a chamar Salomão, o filho da paz. Dito e feito. Ora, ora.
Eis
que tempos depois o rei bate as botas.
O
reino vira o maior cu-de-boi-na-área-do-Central: só conspirações, intrigas e
disputas. Maior buruçú. Resultado: acusações, assassínios, prisões e o escambau.
No
meio do pandemônio, Salomão não perdeu tempo: matou o irmão Adonia e o general
Joab, destituiu o sacerdote Abiatar e mandou ver no desembaraço dos rivais e
sequazes para assumir o trono, trovejando sua máxima: “A ira do rei é como o
bramido do leão. Mas a sua benevolência é como o orvalho sobre a erva”.
Foi
assim que assumiu geral com todo ar de déspota azedo e arrogante, esbulhando e
escravizando o povo, esbanjando dinheiro e ludibriando as mulheres aos seus
mandos – tal pai, tal filho; cara dum, cu de outro.
Mesmo
com essa folha corrida, diz-se que ele foi agraciado por Deus com o anel de
safira de Adão, o mágico anel que governa as águas do mar, os ventos do ar, os
mistérios da terra e o poder da vida e da morte. Cabra sortudo, hem?
Esse
anel deu-lhe o poder de saber todos os segredos e coisas ocultas em diálogo com
as aves, as árvores, os ventos, os mares, rios, fogo e terra. E suas aspirações
eram alcançadas: poder, glória, riqueza, belas mulheres, navios, cavalos, vida
longa e tudo o que quisesse. Assim fodeu, capou, benzeu e arrotou. Empreendeu mais
conquistas: fez acordos e negociatas com outros reis desposando suas filhas,
formou um harém de concubinas, escravizou estrangeiros e compatriotas, impôs
tributos pesados pro povo e viveu às extravagâncias. Possuía tudo o que queria
e tinha plateia arrochada de babaovo e lambecus para cada um dos seus mínimos remelexos.
No
meio dos achegados, estava Asmodeu. Este aproveitando o momento de um desvario
etílico do rei, desafiou no mote da suspeita de inexistência que ele lhe
mostrasse o anel de safira. Duvida? O intrépido Salomão exibiu vaidoso. Eis que
Asmodeu se transforma no demônio que sempre foi, surrupia o anel e se agiganta
até as nuvens, atirando o anel pro fundo do mar. Depois, suspendeu o rei e com
toda força arremessou pro deserto. Em seguida, transformou-se no próprio
Salomão e sentou-se no trono para reinar em seu lugar. Pronto, fodeu-Maria-preá.
Reza
a lenda que Salomão amargou todas as vicissitudes que pode acometer um ser
humano: revezes infindos carregados dos mais impensáveis infortúnios.
Depois
de décadas de humilhado, mendigando, preso e desventurado, ganha a liberdade e
descobre o amor. É ai que escreve o Cântico dos Cânticos. Passa a ser, então,
serviçal humilde, até conseguir emprego muitos anos depois na cozinha do seu
próprio reinado.
Até
que um dia, preparando o repasto do rei, passou a faca para tratar de um peixe
que seria servido, encontrando no seu ventre o anel de safira tomado. Retomava
agora o que era de seu e deu cabo de Asmodeu que se passava por ele,
descobrindo-lhe os pés de cabra, enxotando-o dali: - Arreda, satanás!
Esse
o Salomão dos livros dos Reis bíblicos, do Talmude, dos contos árabes, das
lendas indianas, dos romances irlandeses.
Pois
é. Cada qual que pinte como convém. Para os simpatizantes, um deus, um herói,
um sábio; para os nem tão desafetos assim, um poderoso estroina. Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - O
erotismo, esse triunfo do sonho sobre a natureza, é o refúgio do espírito da
poesia, porque nega o impossível. O que é bonito é recusar-se a parar, sentar-se, adormecer
ou olhar para trás. Pensamento da atriz, escritora e modelo tailandesa Emmanuelle
Arsan (1932-2005). Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU: A vida não é tão complicada para as crianças. Eles têm mais tempo para
pensar sobre as coisas realmente importantes. É por isso que ocasionalmente
moralizar nos livros dos meus filhos de uma maneira que eu não ousaria quando
escrever para adultos. Pensamento da escritora britânica Nina Bawden (1925-2012). Veja
mais aqui e aqui.
CONDESSA
EMBAIXO DA ESCADA – [...] A solidão ensinou a Harriet que sempre havia alguém que
entendia - só que muitas vezes eles estavam mortos e em um livro. [...] Quando estiver triste, minha estrelinha, saia. É sempre melhor debaixo do céu aberto [...] Ela era tão inteligente que conseguia se considerar
bonita. Inteligência...não falam muito sobre isso, os poetas, mas quando
uma mulher é inteligente e apaixonada e
boa... [...] As sombras são lugares frescos e pacíficos para aqueles
cujas mentes estão repletas de tesouros. [...] Como ousa supor que não sei quem você é ou o que você é? Que não entendo o que vejo? Você me considera algum tipo de estudante obcecado? É indescritível! Você poderia pesar tanto quanto um hipopótamo, raspar a cabeça e
usar peruca e isso não faria diferença para mim. Eu nunca disse que você era linda. Eu nunca pensei nisso. Eu disse que você era você. [...] Mostrar muita alegria em um lugar como este seria impróprio, mas, enquanto
ele caminhava em direção a ela, seu rabo estava estendido de uma maneira que
tornaria possível abanar, caso tudo corresse como esperado. [...].
Trechox extraídos da obra A Countess Below Stairs (Puffin, 2007), da escritora inglesa Eva Ibboston
(1925-2010).
TRÊS POEMAS - I -
Sempre soube que não é sensato \ chegar a
extremos sem ter capacidade para lidar com eles. \ É por isso que não te olho
nos olhos, é difícil para mim virar o rosto para você. \ Temo a verdade da sua
mão nas minhas costas, que o seu cheiro permaneça nas minhas roupas, \ que vou
sentar e esperar e que você nunca chegue. \ Por isso estou sempre no meio, \ me
escondendo dos extremos, do seu nome comum. É por isso que não tomo atalhos
para \ chegar até você, temo que minha pressa contida se rompa com sua palavra
precisa. \ Por isso a indiferença, meu escudo inofensivo de palavras, \ minha
estratégia boba de argumentar. \ É por isso que \ não espero por você e esse
ato de rebeldia, \ íntimo e extremo, me protege de todos, \ menos de mim. II - Você
é um daqueles quebra-cabeças \ que se passa a vida inteira \ resolvendo \ sem
saber que veio \ sem peça. III – Este corpo \ que você teve, \ Strange \ retornou
\ ao seu canal \ de espera \ aparecem cicatrizes. Poemas da escritora venezuelana Claudia Noguera Penso.
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Mario Quintana, Wang Tu, Tácita, Eduardo
Souto Neto, Carlito Lima, Mike Leight & Vera Drake, Suzan Kaminga &
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