Imagem: Acervo ArtLAM.
Ao som do álbum Abstracta - para cuarteto de
cuerdas (2015), da compositora, saxofonista, professora, pesquisadora e
performer argentina, Eva García Fernandez.
TRAVESSIA DAS ROTAS ARRUINADAS, MAKE IT NEW... – A
vida não tem pé nem cabeça: a gente nasce, entra na roda, as coisas acontecem,
morre-se e, depois, não se sabe nada – tal como antes de abrir a porteira do
mundo e tudo suceder à revelia – ou de propósito, sei lá! Sim, tudo se prolonga
e a gente come vento, poeira, distâncias, toma gosto na peleja, sobe-desce no
meio da trepidação, frio na barriga, se rela todo, sal na moleira, sol nos
costados, goela seca, beiço rachado – é a vida ou o que a gente faz dela. E
quando dá fé: o que parecia anteontem foi já não sei quantas décadas atrás. E
foi? Como passa ligeiro... Pois é. Ainda ontem a surpresa assaltava... E teve gente
- como ainda tem - que fez da vida via pública depois da descarga na privada.
Entre um ponto e outro foi como pegar bigú na parada do bonde, sem saber nada
onde ia dar – e um dia o fim da linha. É como diz Arina Tanemura: É preciso viver cada dia para que não haja
arrependimentos... E lá ia eu com todas as raízes arrancadas, despregado do
mundo e das coisas, pelo mesmo chão da infância que nunca foi meu. Minhas mãos cheias
do ambulante amor ousavam por todas as armadilhas do catamênio cerebrino alheio,
e todas as trajetórias turvas que nasceram mudas e tortas. O meu nome à dor de
nenhum dia e a noite desabada desse noutra, o estranho ardendo uma canção sequer
ensaiada. Vasto escuro, débil aspecto e o caminho mais que dividido. Foi Mandy Hale que disse: Duas coisas que
você nunca terá que perseguir: amigos verdadeiros e amor verdadeiro... E o que fazer de traições, pactos
desfeitos, tormentos de triunfo cruel: não há preço justo. Pelo jeito, nunca
haverá. No fim das contas a impressão de culpado por inventar o oitavo e mais
outros tantos pecados capitais. A sanção? Refém do custo de vida: quanto você
vale? E com um céu acusador de vertiginosos escombros pelo tempespaço. Sabia: a
fé jamais bastou para quem singra e sangra o que mal se respira e a se precipitar
pelo açoite asfixiante de todas as rotas arruinadas. Precisava entender Selena Kitt: Seja você mesmo não há ninguém melhor... E ainda tinha que
passar nos testes, mesmo sem saber quais eram nem porquê. Sabia que nunca seria
de bom alvitre fazer dos outros emissários submarinos,
nem deixar a onça com fome, muito menos o cabrito morrer à míngua. Nada foi lá tão diferente de chupar o dedo e mijar na
cana, a coisa vai além do longe demais. E a ameaça mordedora no calcanhar pelas
ilhas que nunca foram minhas e um outro maio expandido quase inverno por um mar
tempestuoso e sem fundo. Aí aprendia: se você sorrir, todos gargalharão; se
ficar sério, será sempre um chato de galocha com um monstro na cabeça. E mais:
deve-se ser sempre simpático com os outros na subida; pois, com certeza,
cruzará com todos nas inevitáveis e abissais catábases - aí você verá o que são
elas e quantos outros muitos quinhentos! Seria muito bom se a gente pudesse
juntar toda besteirada cometida e pudesse abater integralmente no Imposto de
Renda ou contar no mesmo tanto pro tempo de aposentadoria. Mas não é, né? Que eu
morra em paz com o meu tempo e a minha terra, contando com meu epitáfio
derretido em cinzas. Assim estarei mais que redimido e pronto pra outra – se é
que haverá essa chance! Até mais ver.
EU GOSTARIA DE PAGAR
POR SUAS FICHAS...
Imagem:
Acervo ArtLAM.
Tudo
começou naquela hora tão particular da noite \ em que o fim de um dia esbarra
no início de outro; \ Saí na chuva, estava com fome. \ A tempestade soltava o
seu granizo quente nas venezianas que batiam, \ ninguém mais andava pelas ruas \
escorregadias que desciam até a praça do fundo \ onde transbordava a fonte. \ Normalmente
cães ossudos tomavam banho lá \ mas agora não há latidos nem assobios. \ A
noite, a chuva, o calor. \ Atravessei a estrada. Um cara acenou do outro lado: \
dois dedos e a boca entreaberta para perguntar \ se eu tinha algo para fumar,
levantei a mão aberta \ batendo, como as venezianas, para mostrar a ele que
não, \ e continuei, com o rosto enterrado no meu moletom com capuz grande
demais, \ cabelo cheio do cheiro de um dia \ que ainda não havia terminado. \ Junto
à placa, uma jovem de saia rosa e um rapaz \ com um corte de cabelo que lembrava
os melhores momentos \ de Agnés Varda, aguardavam a sua vez de pedir um kebab \
com queijo extra. \ A garota olhou para a tela plana montada \ na parede
mostrando clipes de pop americano, \ o cara jogou e pegou uma garrafa de
plástico atrás dele \ virando-a habilmente. \ Depois de pagarem, o dono disse \
“Desculpe pela espera”. \ Eu tinha acabado de chegar, então isso me fez sorrir;
\ “Uma caixa de batatas fritas, com ketchup, \ tudo bem \ você pode esperar \ lá
dentro.” \ Então esperei, de pé, encostado na geladeira \ em frente às bandejas
de salada vazias. \ Foi então que entrou um homem encharcado até os ossos. \ Afastei-me
para deixá-lo passar: \ suas roupas exalavam cheiro de cimento \ e álcool
barato, seu cabelo curto, grisalho, \ retinha água \ como a superfície de um
campo às quatro da manhã. \ Ele pediu. \ No momento em que fui pagar minhas
fichas, ele fixou os olhos, \ olhos mais redondos que o bico de uma rosa
flamenga, \ a boca fraca daqueles homens cansados que bebem \ um pouco demais e
com aceitação – \ ele me olhou por um momento, \ e gaguejou: \ “Não sei o que
dizer para você”. \ No começo pensei que ele estava me enganando, mas mesmo
assim,\ seus olhos, seus olhos! \ “Como é isso?” \ Ele respirou fundo, como se
cada palavra \ lhe arrancasse meio pulmão: \ “Não sei o que dizer para você,
senhorita”. \ O cara atrás do balcão escutava com um ouvido \ enchendo as
bandejas de salgadinhos industriais. \ “Você não precisa me dizer nada”, \ respondi,
sacudindo meu suéter. \ “Não sei o que dizer a você porque sei quem você é.” \ A
chuva deixou sulcos levemente brilhantes, caindo \ do crânio até a parte
inferior do nariz. \ Eu também não sabia o que dizer: \ meia-noite não estava
longe, eu viria até de manhã para saber o que esperar, \ e esse cara,
perfeitamente bêbado e são, parecia \ prestes a desabar. \ “Eu sei quem você é,
você escreve livros. \ Como você faz isso?" \ "Bem, como eu
puder." \ Deu-se um tapinha nos joelhos e, \ de uma só vez, \ lágrimas,
suor \ da chuva que vem de dentro, \ algo úmido e sincero tomou conta de seu
olhar, \ já afogado na solidão e na noite bizarra. \ Ele se virou para o cara \
que dobrava \ as bandejas laranja \ com a precisão de um cirurgião-dentista. \ “Posso
te dizer que não fiquei encharcado esta noite por nada, de jeito nenhum!” \ Nas
minhas costas, a geladeira zumbia. \ Um leve sorriso se instalou naturalmente \
entre minhas covinhas. \ No balcão, minhas fichas estavam prontas, bem
embaladas. \ Tirei minha moeda \ de dois euros e o afogado me disse: \ “Gostaria
de pagar suas fichas, se não se importa”. \ Suspirei e deixei minha moeda entre
ele e eu, então estendi minha mão. \ Ele apertou. \ “Obrigado, senhor” \ e saí
com meu pacote de batatas fritas no pulso. \ Na volta, o cheiro característico
de gordura de salgadinho \ invadiu minhas narinas, meus cabelos, minhas roupas.
\ Provavelmente nunca mais verei aquele homem, ou pelo menos não assim. \ Desde
ontem tenho vontade de escrever sobre ele, porque me pergunto \ qual de nós
daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, seremos traídos \ pela imagem que
construíram \ do mundo exterior? \ Será para outros apertarem as mãos\ àquela
hora da noite \ por uma caixa de batatas fritas mornas e um refrigerante sem
gelo? \ Gostaria que a poesia fosse tão natural para quem \ me rodeia quanto a
emoção \ que brotou naquela noite, antes daquela quadratura \ com a improvável
facilidade de momentos que poderiam não ter acontecido, \ mas que aconteceram
mesmo assim, mal pensados e \ transbordando de graça e palavras impossíveis.
Poema
da premiada escritora francesa Cécile Coulon.
DIÁRIO DE BITITA – [...] Quando havia um
conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas
olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos.
Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto. [...] Compreendo
que o sonho de pobre é sonhar, apenas sonhar. [...] Será que o Brasil
vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre
aqui e fica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e
morremos pobres? [...] O homem só dá valor ao homem depois que morre. Se
os homens governam o mundo, ele nunca está bom para o povo viver, por que não
deixar as mulheres governarem? As mulheres não fariam guerras, porque elas são
as mães dos homens. Mas os homens são os pais dos homens, fazem guerras, e
matam-se. [...]. Trechos extraídos da obra Diário de
Bitita (SESI-SP, 2014), da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914-1977),
autora da frase: A vida para uns são cheias de curvas que dá impressão que
êles seguem para o calvário conduzindo uma cruz que se chama "Custo de
Vida”. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Os movimentos nunca são
homogêneos... Fomos formados na ideia de que não existimos como indivíduo,
temos que ser úteis ao país... Pensamento da cineasta moçambicana Isabel
Noronha. Veja mais aqui e aqui.
LIÇÕES DE FELICIDADE - [...] Caminhar, quando se
está triste, até que os sapatos incomodem, é uma daquelas iniciativas que a
levam à força para fora de você, no mundo; que freiam a espiral dos pensamentos
e fazem você se sentir antes de tudo livre, depois exausta. Dois antídotos para
tristeza, não infalíveis, mas úteis, são o sentimento da liberdade e o da
exaustão; a tristeza, para se sustentar e durar, requer espaços fechados,
sufocantes, e energia. Como os vampiros, ela também teme a luz do sol. [...]
Concentro-me em uma pergunta: como criar uma disciplina, um ambiente, em que
se trabalha para obter um resultado previsível e concreto, sem o perigo de se
aventurar guiado apenas por esperanças vagas e irrealistas? Percebo que essa
poderia ser uma pergunta válida, em certa medida, para todas as artes humanas,
da yoga à música: mas no que se refere aos resultados, no âmbito da inspiração
e da criatividade, a gama dos resultados possíveis e imprevistos é vasta demais
para não tornar aposta exageradamente ampla. [...] Certamente não tenho
uma multidão de amigos, mas tenho tantas casas, tantas vidas atrás de mim –
tantas quantas minhas mudanças, os trabalhos que fiz, os erros que cometi e as
enrascadas em que entrei, as ruminações e as inquietações, as hesitações e os
perdões que não soube conceder e deixei cair no esquecimento. [...] Tenho
medo dos desejos, mas é claro que não os respeito, mesmo que eu saiba o quanto
podem ser fortes: em vez de dobrá-los, de domá-los com essa firmeza não
natural, por que não parei para ouvi-los? Eu deveria ter percebido que essa
febre de ascetismo, não muito diferente da impetuosidade a que se opõe, se
voltaria contra mim. Não é fácil aprender a moderação: creio ser mesmo
impossível, pelo menos enquanto eu olhar para ela com esta camada a mais de moralismo,
esta mania de conferir um sentido aos mínimos gestos. Quis me impor uma postura
austera, mas toda alheia, falsa. Não é verdade que me entusiasma fazer uma
sopa, não é verdade que me basta uma maçã. Eu só queria me deixar absorver
pelas pequenas coisas: mas o problema é outro. Em pé na frente de um armário
semivazio, que se assemelha apenas ao meu lado mais severo – bani as cores,
pois não me pareciam necessárias –, percebo estar diante de um bom problema: ao
me concentrar em mim mesma, obcecada em aproveitar todo o meu arrebatamento,
esqueci a amizade. Não posso pensar só no prazer: nem para tentar torná-lo
demasiado sofisticado e essencial (com resultados que depois, como aconteceu
comigo, desaparecem), nem para usá-lo como refúgio. Por nos enrodilharmos no
interior de nossa vida secreta, a fim de nos consolar e nos proteger do mundo,
acabamos nos transformando em pequenos caracóis confinados em suas conchas.
Acendemos velas e luzinhas, buscamos serenidade ou minimalismos, abrimos a boca
para palavras nórdicas intraduzíveis como hygge, concentramo-nos na
simplicidade de pequenos prazeres idiossincráticos e indescritíveis – o
primeiro gole de cerveja gelada. Mas, por favor, só o primeiro – porque, no fim
das contas, duvidamos do prazer. Mas é tão chato, depois de um tempo, viver
enfurnado nos próprios sentimentos! [...]. Trechos extraídos da obra Lezioni di felicità: Esercizi filosofici per il buon uso della
vita (Einaudi, 2019), da filósofa e
escritora italiana Ilaria Gaspari.
DOSE DUPLA DE JOSÉ CONDÉ
[...] Seguiram-se dias de chuva, prenunciando bom inverno. Mas, passados os aguaceiros, limpavam-se as tardes novamente, com o céu de um azul lavado e translúcido, tanajuras voando, cheiro de mato soprado pelo vento [...].
Trecho extraído da obra Terra de Caruaru (Civilização
Brasileira, 1977), do escritor e jornalista José Condé (1917-1971), também autor do
volume Obras Escolhidas V: Vento do amanhecer em Macambira \ Tempo, vida,
solidão \ As chuvas (Civilização Brasileira, 1978). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
UM OFERECIMENTO: SANTOS MELO LICITAÇÕES
Veja detalhes aqui.
Tem mais:
Livros Infantis Brincarte do Nitolino aqui.
Curso: Arte supera timidez aqui.
Poemagens & outras versagens aqui.
Diário TTTTT aqui.
Cantarau Tataritaritatá aqui.
Teatro Infantil: O lobisomem Zonzo aqui.
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VALUNA – Vale do Rio Una aqui.
&
Crônica de amor por ela aqui.