A SEXTA É O DIA!
– Pra José Zé a sexta sempre era o dia!
Até sua vida descambar, a sexta sempre foi o seu dia preferido. O sábado não, pois
era dia de feira e de afazeres domésticos. Logo cedo pegava as sacolas e se
mandava pra feira com os trocados nos bolsos, arengar com feirantes, justando o
preço do inhame, pechichando os tomates, especulando pelas cebolas, regateando
por tudo, galinhas, cenouras, feijão, arroz, queijo de coalho, bananas,
disputando frutas, legumes, raízes e verduras – o preço da carne de boi estava
pela hora da morte, de porco muito menos, bode não dava, peixe só se fosse
cundunda -, basta, pra quem levou quatro sacolas, voltar com uma e meia de
mantimentos, já estava no lucro: foi o que o dinheiro deu mesmo. Em casa todo
pavoneado, exibindo as compras como troféu: tem que dar pra semana toda! Aí ia
se dedicar aos afazeres domésticos: consertar a descarga do banheiro que vazava
por todo lado, o chuveiro que tinha água pela parede e não pingava água no
banho, as caqueiras da varanda, o varal despencado, as telhas pras pingueiras,
a lavanderia entupida, os rebocos da parede, almoçava a comida misturada a
cimento e cal, voltava pros consertos, se danava na faxina, uma lapada da
pinga, uma louraça suada lavando tudo, banho meticuloso, jantava aos peidos e
arrotos, caía na cama que amanhã é domingo. O domingo também não, era dia de
missa logo cedo na matriz, reza pro devotado, atualizar os pedidos de perdão
com seus protetores pelos pecados que escapuliram quando nem queria mesmo
pecar, a confissão nos pés do padre, a hóstia e calado pra casa pagar as
penitências. Depois disso, aboletava-se no sofá que precisava duns ajeitados,
mas deixara para o próximo sábado, agora era hora de ver a corrida de Fórmula 1
e sonhar piloto nos circuitos automobilísticos para orgulhar a nação brasileira
como Fitipaldi, Piquet e Senna, seus heróis. Com isso, entornar duas lourinhas
suadas, ficar todo ancho, comer de tudo sem culpa nem arrependimento, deitar-se
na rede e roncar a tarde toda até a hora do futebol na tevê. Nem devia ter
assistido, o jogo foi uma droga, seu time de coração perdeu de feio, melhor comer
alguma coisa e ir pra cama que amanhã é de branco. A segunda também não, dia de
batente e de ficar esperto, todo mundo dava nó em pingo d’água e ele tinha que
obrar milagres: do nada arrancar alguma moeda pro sustento. Ao meio dia, a
marmita e uma passada rápida no barbeiro: E aí, Ocride, sexta? Sexta está de
pé. Já mandou a carta? Ainda estou escrevendo. Inté mais. Inté. A tarde passa
num pulo e a gororoba do domingo faz efeito no bucho, desanranjo, cama, amanhã
é terça. A terça também não, dia de cumprir a obrigação à noite com a matriz do
seu coração: a madame está no quarador só olhando pros pés dele de soslaio. É
hoje, mulher! A manhã passava rápido com a ocupação, no almoço o de sempre na
marmita, uma passada no Ocride: E sexta, barbeiro? Sexta está marcada, não se
atrase. Inté. Inté. A tarde foi-se como num pinote, chegou ao lar, pegou o
calção, a bola e gritou pra esposa: É hoje, mulher! Chego já. Depois da pelada
no campinho, lá vem ele todo destroçado, banho demorado e correndo pra cama
cair na função. Um ajeitado com um beijo estalado, encarca as carnes, abre
caminho e manda ver! Ufa! Vira do lado e ronca a madrugada toda. A quarta
também não, serviço, almoço, Ocride: Até sexta! Inté. A tarde voa, corre pra
casa, liga a tevê pra ver o noticiário, enquanto sonha um dia poder comprar uma
tevê a cabo, se contenta com a pé de galinha e os quatro canais disponíveis. Enrola
o tempo enquanto o jogo não começa, cutuca a mulher, faz uma boquinha e corre
pra ver o apito do juiz. Melhor nem tivesse assistido, perde de novo: Esse time
ainda me mata do coração. O pior era a gozação no dia seguinte. A quinta,
também não, logo cedo a agonia da véspera, a mangação com o resultado do jogo. Fazia
tudo atrapalhado, olhando pro relógio, conferindo o celular pé duro chingling
que só liga e recebe, nada mais funciona; o almoço, a passada no barbeiro: É amanhã,
Ocride! É, amanhã. Inté. Inté. A tarde logo escurece e depois das voltas na
mesa, resolve dormir cedo pra sexta chegar mais depressa. Enfim, a sexta: É
hoje! Mais atrapalhado que o dia anterior, nem trabalha direito, pois tudo que
faz dará retorno na próxima semana, ah, nem aí, sem ligar pra nada, almoço,
barbeiro: É hoje, Ocride! É hoje. Inté. Inté. Olha tanto pro relógio que
reclama: Hoje chega sábado, mas não chega sexta de noite. Bate o pé, zanza de
lado, dá voltas, arruma o que fazer, juízo não funciona, tudo dele, corpo,
alma, pensamento e astucias tudo só no seu desejo. Quase tem um troço de agonia
quando vê Ocride vindo ao seu encontro: Vamos? Vamos. Saem juntos, vão pro
carteado, leva toque e perde a partida, pouco importa, Ocride pigarreia, olha
pro lado, confere tudo e se vira pra ele: Vamos! Seguem juntos. Ao se aproximar
ouvem os tambores, Ocride manda que ele aguarde do lado fora e entra no recinto
barulhento, mais de hora em pé na porta, esperando, quando aparece de repente
aquela morenaça escorreita, assanhada, bem feita, risonha e reboladeira que vai
fazer sua vida valer por muitas outras no maior dos chambregos até altas horas
da noite. É hoje que vou lavar a égua! © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especiais com o violonista Turíbio Santos: Violão Sinfônico
& Orquestra de Violões; a pianista Magda Tagliaferro com recitais da obra
de Heitor Villa Lobos; o violonista Álvaro Henrique com a Suíte Candanga
& Villa Lobos; e a pianista Anna Stella Schic com prelúdios &
infantis de Villa Lobos. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA - O amor é um sentimento tirânico e zeloso,
que somente se satisfaz quando a pessoa amada lhe sacrifica todos os seus
gostos e todas as suas paixões. Nada se faz, se não se faz tudo. [...] O amor sem desejo é uma ilusão, não existe na natureza. Pensamento da escritora, cortesã e patrona das artes francesa Ninon de Lenclos.
QUE EDUCAÇÃO É ESSA? – [...] A educação
está orientada a ensinar-me a reprimir nossos desejos incontrolados. Se você
mesmo não o faz, há toda uma legislação destinada a reprimi-lo [...] educação
implica limitação do ser humano como base de uma determinada cultura. Quer
dizer, o que a própria cultura considera que pode ser criativo ou não. Tem
inicio, então, as decisões ideológicas individuais, que se referem a como lidar
com os limites sociais dentro de certa cultura. A educação é, por excelência,
a arma da censura. É a forma que a sociedade tem para indicar o que não deve
ser feito. A palavra em hebraico para educação é jinuj, que pode implicar
educação ou em seu extremo, afogamento, sufoco. [...]. Trecho extraído da
obra Os sete pecados capitais
(Ediouto, 2006), do escritor e professor catedrático espanhol Fernando Fernández-Savater.
CAMOCIM DE SÃO FÉLIX - Camocim era inicialmente distrito de
Bezerros. Depois passou-se a denominar Camocituba por conta do Decreto-Lei
estadual 952, de 31 de dezembro de 1943, e município pela Lei municipal 02, de
20 de abril de 1993. A Lei estadual 1818, de 29 de dezembro de 1953, criou o
município de Camocim de São Felix, tendo sido instalado em 15 de julho de 1954.
Anualmente, no dia 29 de dezembro, o município comemora sua emancipação
política. Administrativamente é formado apenas pelo distrito-sede e pelo
povoado de Santa Luzia, em conformidade com a Enciclopedia dos Municipios do Interior de Pernambuco (FIAM/DI,
1986). Veja mais aqui.
CHAGRIN D’AMOUR - [...] Fez uma
profunda reverencia e aceitou, vacilante, o alaúde que lhe trouxeram. Enquanto
dedilhava agilmente as cordas do instrumento, não tirava os olhos da rainha.
Cantou então uma canção de amor que, há anos compusera em sua pátria. Depois de
cada sextilha havia um refrão de dois versos simples, que soavam
melacolicamente e brotavam do coração magoado do trovador. É esses dois versos,
que foram ouvidos nessa noite pela primeira vez, logo se tornaram conhecidos e
muito cantados por toda parte. Assim diziam: O prazer do amor dura apenas um
momento, / As mágoas de amor duram a vida inteira. [...] Não voltou para o acampamento e caminhou em
outra direção, para fora da cidade, noite adentro, decidido a renunciar aos
ideais de cavalaria andante e a levar uma vida sem pátria, como trovador.
[...] Através dos séculos, nada sobrou
senão um punhado de nomes de arrevesada pronuncia e sabor antigo. Mas aqueles
versos do jovem cavaleiro e trovador são cantados ainda hoje. Trecho de Chagrin D’Amour, extraído da obra O livro das fábulas (Civilização
Brasileira, 1975), do escritor alemão Hermann Hesse (1877 – 1962). Veja mais aqui e
aqui.
VOTOS PARA O ANO NOVO – [...] Dizem que
o crime não compensa. E a virtude, compensará? Espero que sim; mas talvez só
outro mundo. Neste aqui não sei; mas conheço pessoas virtuosas que me parecem
tão azedas, tão infelizes, tão entediadas, tão sem graça com a própria virtude
que dão vontade da gente dizer: - Está muito bem, nossa amizade, você é
formidável. Mas assim também enjpa. Pegue pelo menos uma vezinha, sim? É bom
para relaxar. [...] Desejo a todos,
no Ano Novo, muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradaveis,
excitantes, discretos,e, principalmente, bem sucedidos. Trecho do Votos para o Ano Novo, extraído da obra As coisas boas da vida (Record, 2010), do escritor Rubem Braga (1913-1990). Veja mais aqui, aqui e aqui.
PRESENTE DE AMOR – Criança da pura
fronte sem névoas / e sonhadores olhos de espanto! / Embora o tempo seja veloz
/ e meia vida separa você e eu / seu adorável sorriso bem certo saudará / o
presente de amor de um conto de fadas. Trecho extraído da obra Através do
Espelho (Circulo do Livro, 1983), do escritor, desenhista, fotografo e matemático Lewis Carroll (1832-1898). Veja
mais aqui.
PÁSSAROS MATINAIS DE TOMAS TRANSTRÖMER
Desperto o automóvel
que tem o pára-brisas
coberto de pólen.
Coloco os óculos de sol.
O canto dos pássaros escurece.
Enquanto isso outro homem compra um
diário
na estação de comboio
junto a um grande vagão de carga
completamente vermelho de ferrugem
que cintila ao sol.
Não há vazios por aqui.
Cruza o calor da primavera um corredor
frio
por onde alguém entra depressa
e conta como foi caluniado
até na Direção.
Por uma parte de trás da paisagem
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agoirento.
E o melro que se move em todas as direcções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agoirento.
E o melro que se move em todas as direcções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:
Não há vazios por aqui.
É fantástico sentir como cresce o meu
poema
enquanto me vou encolhendo
Cresce, ocupa o meu lugar.
Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.
Poema extraído da obra 50 poemas (Relógio D’Água, 2012), do poeta, psicólogo e tradutor
sueco, Prêmio Nobel de 2011, Tomas
Tranströmer (1931-2015).
Veja mais:
Outras de José Zé aqui.
A arta do barbeiro Ocride aqui.
&
A ARTE DE CARLO
MOLLINO
A arte do
fotografo, arquiteto e designer Carlo
Mollino (1905-1973).