Festa do Largo, arte do poeta, artista plástico,
cantor, compositor, multi-instrumentista e integrante do trio Sacassaia, Renato Matos.
PROEZAS DO BIRITOALDO - XII - Quando a adversidade aperta, o biltre bota o rabinho entre as pernas - Rolivânio e Penisvaldo eram mais que amigos, malungos propínquos se considerarmos a consangüinidade, ao que pela afetividade que nem siameses de tão pariceiros, cagado e cuspido, maria-vai-com-a-outra, parelha na indumentária, mesmo pantim, mesmo tope, o mesmo cardam, ora, dando trela para ariscas insinuações alheias. - Parece mais que tem cu no meio! - alardeavam aqueles fuxiqueiros que não poupam nem nenhuma santidade do céu de tanta uma ingrezia arrotada. Birito mesmo num se achegava neles por essa e outras tantas razões recolhidas do protocolo dos enredeiros insones. - Sei lá, esses dois são meio aluados, podem findar metendo eu no meio também e olhe o negócio pegando prá minha banda, eu hem! Pois bem, Birito agora se valia deles num momento meio esdrúxulo. - Cês arrepararam? - O quê? - Num viro nada? - Vimos você roncar solto! - Mais nada? - Absolutamente nada. - Isso é uma praga! Será que tô variando já? - Variar, cê já varia há tempo, não é novidade isso! - Pois é, meu, tô atrapalhado! - Que droga é nove que se assucede? Rolivânio e Penisvaldo ouviram atentamente e até se comiseraram com as lamúrias dele, a ponto de ficarem com os olhos rasos d'água. - Tamo vendo que tu precisa trabalhar, ganhar dinheiro, arrumar uma namorada... - É rapaz, tô com a praga de tempo ruim mesmo... - Deixa c'a gente, vamo salvar tua horta! - Mesmo? Num brinca! - Verdade, olhe, antes de mais nada vamo propor um trato.... Lá se ia Biritoaldo coadjuvante de um pacto de sangue, mortal. Ele tomou ciência da ritualística insólita e dos requisitos básicos para integrar a irmandade e ouviu atentamente o relato de que eles com toda sacralizada seriedade cortaram o dedo e enquanto o sangue escorria, um enfiou o dedo na boca do outro chupando o talho com propósito de transfusão. - Chupa o meu, depois eu sugo o teu. Tome o meu agora. Me dê o seu. E ficavam trocando e repetiram três vezes. Depois, cada qual, como se fosse uma continência prum superior, bateram os calcanhares e enfiaram o dedo maior-de-todos no seu próprio cu. Algumas caretas entaladas tornavam suas faces lívidas com a rudeza do gesto. Um impado danado. O dedo ciscava nas entranhas de trazer um tolotinho e depois enfiar no do outro, ficar butando lá no outro e vai e volta, assim, toma! Eita! Doeu, porra! Nada! Os dois lá, pendurados pela dedada cheio de manzanza. Repetiram mais de três vezes, parece mais que gostavam. E Birito olhando. Adiante, respeitosamente pegaram um no pau do outro com um bote, agarraram firme, amolegaram, espremeram, torceram, esfregaram, apertaram, reviraram os olhos, um mais roxo que o outro, careta dos diabos, eita, bronha! Quando num agüentaram mais o aperto, soltaram resfolegantes. Se refizeram e sacaram do bolso da bunda uma foto. Mostraram-se e cada um tomou a do outro. Arriaram a braguilha, botaram o pingulim prá fora e esfregaram na foto: era a cara da mãe deles: tô cumendo a tua mãe! Ui! Ai! Vou gozar! Segura! Aquela seboseira. Quando esporraram, lamberam um a foto do outro, engolindo a gosma que se espalhara no retrato. Tinha mais: selado e jurado perante a cruz e a honra que aquele que arrumasse namorada tinha que entregar a cheba dela pro outro, como sinal de respeito e fidelidade, se acertaram, justos e contratados. Pronto. Já viu isso? Ainda passaram um risco no chão, um deles fez um desenho como se fosse cada qual deles representado no círculo, cuspiram um na cara do outro: - cara dum, cara doutro, quem num cuspir vira gafanhoto! Pronto, haviam-se desmoralizado até a última lona. Um num podia falar do outro, tudo de cu trancado para segredos, boca-de-siri. E Birito desconfiado, presenciando toda aquela marmota. - Quer ser irmão da gente, Birito? - Tá doido? Depois disso, deus me guarde. - Vamos lá, rapaz! - Ôxe, putaria dessa, vão dizer que sou fresco! - Nada, é tudo sob rigoroso segredo! - Hum! - Verdade! - O que tenho que fazer? - Um ritual. - Tais sacaneando comigo! - Tamo querendo lhe ajudar! - Como é então essa droga de coisa? - Eu dô um talho no meu dedo! - Certo. Cês pensam que num vi um se aliviando no outro, não? - Calma, escute: Penisvaldo, no dele. - Hum... certo. - A gente corta o teu. - Ihhhh..... certo. - Eu chupo seu dedo e o do Rolivânio. - Tu chupa o de nós dois. - Começou.... - Eu boto o dedo no meu cu e Penisvaldo no dele. - Até aí, tudo bem. - Tu bota no teu. - Êpa, já tá vindo prá minha banda... tá ficando esquisito.... sim, vai, continua... - Depois tu bota no meu, ele também e a gente bota cada qual no cu do outro. - Êpa, sabia que ia ter cu no meio de novo! Tô fora! - Essa é a primeira prova! Senão, tu num entra prá irmandade. - E depois? - Depois vem os mandamentos e os regulamentos internos. - Ih, tá parecendo mais presepada. E Birito reclamava que esse papo tava analógico, meu, retilínio demasiado! Quem será o proctologista nessa história? Só falta o cara fazer way-k-dô com um professor do dedão enfiando aquilo no oiti-goroba, meu? Quéquéisso, ora? E relataram para ele a Lei Orgânica que rege os estatutos da corporação, as oito provas de admissão no umbral: 1.º - rezar prá deus meio dia em ponto no meio da rua e agüentar que se enfie um cabo de vassoura inteirinho de cu até quando completar dez pai-nossos. Êpa! O cara abriu na hora. Isso é lá coisa que se faça? 2.º - bater dez punhetas de cócoras na sacristia durante a missa na igreja com uma foto de Vera Fischer como se fosse a mãe e gritando aleluia o tempo inteiro. Só se for a sua que é gostosa como a porra! Bora! 3.º - tomar dez cachetes com pinga de cabeça prá baixo e depois distribuir retrato do pai cheio de chifres e gritando que ele é corno. Eita! 4.º - engulir quinze baga de pimenta malagueta duma vez só na sala de aula e tirar uma dedada na professora mais gostosa (e a que era, era a mulher dum general, pode?) 5.º - deixar um tolote de merda quente, na hora, na portaria do colégio e mandar o diretor da escola para a puta-que-o-pariu! Besteira. 6.º - cantar o hino nacional debaixo d'água e depois arrudiar a cidade nuzinho com uma tocha acesa enfiada no parreco! Vôte! 7.º - arrancar a tampa da garrafa com as pregas do cu e depois peidar até torá-la no meio. Fudeu! 8.º E por fim, jurar fidelidade pisando em brasa de fogueira e depois sentar-se até apagá-la. Vai-te prá porra! Birito num sabia o que era pior. Repete! E foi isso mais aquilo, naquilo, isto nisso, disso práquilo, daquilo naqueloutro, daqueloutro prá noutro e pei e bei, pronto, entendido? Não, tô fora! Posso encasquetar com isso, esse negócio de botaqui, tirali, e patati, patatá, ói, espie, teve cu no meio tô fora! E os mandamentos? Vai-te para a casa de caralho, porra! Tem os mandamentos sim! Num quero nem saber! - Ora, veja só, assim a gente num pode te ajudar, cara! - Fico sem ajuda, mas macho, esse negócio de amulegar aqui, enfiar ali, cai fora, meu! - Prá você ver que a gente tá com boa intenção, vamos lhe convidar para o aniversário da Munga, uma amiga nossa. Vai ser hoje de noite. A gente tá sabendo que ela tá a fim de você e quando você vê-la, vai ficar doidinho! - Tá melhorando, ah! assim, tá certo! com mulher é comigo! Como é mesmo o nome dela? - Munga, é a filha de seu Ostrogésilo! - Virge! Aquela tanajura, meu, é feia que dói, mas tem um rabo, uma cheba maior que cara de vocês, tudo grandão, topo! Num é lá grande coisa, mas dá pro gasto! - Pois bem, primeiro você vai pro aniversário dela, lá a gente se encontra e depois discutiremos a sua inscrição na irmandade. - Ela é dessa irmandade, é? - É. - Já fez isso que vocês disseram? - Calma, depois a gente discute isso. - Responde logo, senão caio fora. Se ela for dessas de vocês aí, já num tô mais querendo. - Ela ainda é uma neófita. - Que é que é isso? - Ainda está entrando na organização, só depois é que a gente discute. E para uma mulher entrar na senda tem que ter namorado e ele tem que ser da nossa, entendeu? - Ih! Esse negócio num tá me cheirando bem... - Como é, vamos lá hoje à noite? - Tô lá! Resolveu, antes de tudo, ir para os tais festejos da tal Munga, era melhor assim, ver o monstro de perto e no que é que dava tudo aquilo. Lá chegando, todo nos trinques dos engalanados domingueiros, vinte horas em ponto! Meio que sem jeito, procurou canto prá se encostar, cheio de pernas, quando ela veio inexperadamente com um decote de botar olho saliente pregado nas tufas, vestida numa liganete arroxada daquelas de deixar nego de pau duro só no traçar das pernas, ele sufocado de olhar pros peitinhos buliçosos, os quartos cadenciados, as coxas volumosas, o parreco saliente, estufado do jeito de cuscuz nas virilhas dela, as formas redondas do cabra ficar escorregando na trajetória feito tobogã, uma buzanfa que mais parecia uma panela de pressão apitando de tão cheia, em suma, uma perdição de mulher! - E aí, meu? - instigou ela. - Tô nessa! Mal começaram a trocar um dedim de prosa, ele aperreou-se, deu-lhe uma vontade de pegar nas coisas dela, agarrar-se, atracar-se naquele monumento saboroso, quando chegaram, os empata-foda, Rolivânio com Vaginalda e Penisvaldo com Bucetildes, dele quase ter um troço. O quarteto de mãos dadas, ou foi ao contrário, nem sei mais. Para aperreio do mancebo encostaram-se pro bate-papo o Urinácio e Buceleta que era irmã da Bucetildes mais outras oito irmãs e mais cinco enteadas: Bucetinalda com Picadura, Bucetuda & Caralhudo, Bucetalora & Bimbudo, Bucetona & Roludo, Bucenalva & Mijadouro, Bucetalouca & Magueirão, Bucéfala & Trombudo, e Bunda que era vitalina porque mijava para onde o sol nasce e era feia como a praga. As outras, tudo pendurada no pescoço de marmanjo tolo e ogro. As enteadas era Bucetaura & Caralhauro, Bucetinha & Rolito, Bucetalange & Peniraudo, Bucelécia & Pintasilgo e Bucelara & Penislongo. Vôte! Tá maior confusão para desatar esse nó. Perdi-me. Ora, porra: chegaram os casais de amigos dele, pronto! a suruba era deles, não minha. Tô fora! - Tais com a porra, tais? A história é minha e faço dela o que quiser, ponto final. Arrumando a zona: estavam todos ali numa festança desbragada rolando altos papos monossilábicos mais parecendo códigos de ideogramas. Birito, fulo pela intromissão deles, ficou com um pé atrás esperando saber das novidades, quando Rolivânio soltou exemplos de irmandade entre eles. Birito já sabia que um dia Bucetildes e Vaginalda haviam viajado. Era viagem para cinco dias, passaram quinze. No aperto, o negócio engrossou dos dois namorados se cansarem de trocar cavalo mago e no maior desespero deles um comeu o do outro, batendo o centro no meio de campo da organização hermética deles. Fuleiragem solta. Sabia mais ele que toda noite, pela munganga dos dois, claro, um beijava o outro, selando o trato. Que viadagem! Partilhavam mesmo. Um só comprava se outro acordasse. Só saia se outro aquiescesse. Só comia quando o outro liberasse. Só peidava se outro cheirasse. Só cagava se o outro cotucasse. Só mijava se os dois mijassem. Com aquela convenção, aquele trato, tudo conforme o código que eles haviam jurado com sangue e tudo pro resto da vida. Sabia mais que as duas, Bucetildes e Vaginalda, eram namoradas dos dois. Se uma num tivesse e a outra chegasse, comia quem estivesse perto. Era um troca-troca pior que feira do rato nos lugares mais escusos. Nunca deu bode. Isso era a parte positiva de toda tramóia: sair comendo meio mundo de mocréia. Planejava já Birito sair marcando encontro com as catraias, se dizendo da irmandade e que elas dessem logo ali sem perdão. Estava tudo muito bom para ser verdade. E ele já maquinava um meio de tirar proveito dessa jeringonça de amizade. Pois bem, Birito endoideceu pela Munga que era reboladeira de chamar a atenção e ficou pensando espragatar-se naquelas carnes arredondadas, cinturinha de pilão, bundona avantajada, quartuda, um cardan bom para introduzir semente de família, peituda, beiçuda boa, coxuda, a mulher tinha a cara horrorosa mas falava com um jeito de quenga quente daquelas da gente dá umas dez sem sair de dentro, carente, manhosa, reboculosa, eita! Tava enfeitiçado. Quando ela passava, propositalmente dava uma rabissaca de deixar o juízo do fuleiro ficar no chapéu do vaqueiro de querer foder ali mesmo. - Rapaz, a mulé é boa prá caralho! - confidenciou para Rolivânio e Penisvaldo. - Você ainda num viu nada, se aprochegue cara, cole nela, tem nego aí lambendo os beiços, doido prá engatá-la, num durma no ponto, pastore bem o animal senão perde. - confidenciou Penisvaldo. - Mas depois tem de deixar a gente comer ela também, depois viu? - arguiu Rolivânio. - Êpa, e é sociedade anônima, é? Cês acham que sou corno conformado, é? Bulhufas! - Calma. Não tire conclusões apressadas, vai lá, vai, vai! E Biritoaldo foi flertar a deusa enchendo o tampo prá ficar mais animado na persuasão. Eis que nisso entra o dr. Ostrogésilo, pai da moça, todo engalanado e com ar de dono da situação, apresentando vasta cabeleira nas costas da cabeça e uma pista de pouso na dianteira, procedendo com um mordomo impecável, vestido de fraque e chapéu-coco, uma bandeja com pulverizador para desinfetar o ambiente com incenso, depois estendia o tapete e sob solene execução musical, com toda pompa, opulência extraordinária, surgia o patrão com cabelo traseiro todo empoado, exibindo um fraque modelar, todo cheio das pregas prum analfabeto e gago, todo mundo referenciando o homem na maior babação de ovo, chega o ambiente ficar meleguento e salpicado de desinfetante para afastar os insetos humanos que se grudam em gente graúda feito adoração de imagem, Ostrogésilo jogando prá lá o olho gordo, quebranto que fosse rezado ali prá afugentar aquela desprezível gente que num se conforma em ver, tem que tocar, pegar, se agarrar nas saliências dos outros, sai-te, lambe-tacho! O sujeito era mesmo aquele que mandava e desmandava por ali, acompanhado de num sei quantos asseclas e dum punhado de prosélitos que lhe santificavam as ações. Birito que só conhecia o homem de nome e de comentários ruidosos da populaça, testemunhava in loco o carisma do cara de deixar todo mundo hipnotizado e subserviente ao seu jeitão de manda chuva. - Es-sa-sa-sa é a mi-mi-mi-nha ra-ra-ra-raínha! - agarrou-se o homem em Munga, dando-lhe beijos e mais beijos. - Que-que-que-ro arru-ru-mar prá-pra ela um ma-ma-marido exe-em-em-plar que-que-que vai ser-ser um sor-sor-tu-ti-do de fi-fi-fi-car herdeiro de to-to-to-todo o meu tro-no-no! Biritoaldo ficou zanolho de tanta empáfia do homem que se referira a ele assim de supetão. Esmola grande o cabra acaba desconfiado. Mas já que tá dentro, deixa. - Ei, ami-mi-migo, se é ami-mi-mi-go da Munga, é me-meu tam-bém. Que-quem be-beija a boca da minha fi-filha ado-do-ça a minha bo-bo-ca. - Birito abestalhou-se com a referência que o homem fez. - Vo-vo-vo-você tem empre-pre-go, fi-fi-filho? - Tô procurando. - Tá-ta-ta-ta em-empre-pre-gado, com-pa-pareça ama-manhã no me-meu escritó-tó-rio que-que vo-você já-ja está com-contra-ta-tado. Birito só faltou beijar o homem, os pés, as mãos, tudo. Nossa! Atirou no que viu, acertou no que não viu. - Tô aqui, tô vendo, viu? - Birito ouviu uma voz fanhosa, parecida com a do anjo da guarda. Cascavilhou tudo, nada vira. - Quem falou isso? - dissera atônito. - O quê-quê? - perguntou dr. Ostrogésilo. - Que tá me vendo? - replicou, arrudiando-se todo e nada encontrando. - Ca-ca-calma fi-filho, fi-fi-ficou nervoso porque já-já está-ta empregado, num se-se ape-perreie, to-tome umas e outras que-que ama-manhã te-tem servi-viço com salá-lario certo, vi-vida bo-boa e o tu-tudo certo co-como man-manda o fi-figu-gu-rino. Birito ficou intrigado. Ninguém ouvira a insinuação daquela voz do anjo. - Será que tão aprontando comigo? -, inquiria sem saber de nada, desconfiado dos mistérios e das coisas do outro mundo. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
PENSAMENTO
DO DIA – É fundamental diminuir a distância entre o
que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja
a tua prática. Pensamento do educador, pedagogista e filósofo Paulo
Freire (1921-1997). Veja mais aqui.
MODERNIDADE:
DISCURSO & FILOSOFIA - [...] Se
a literatura proporciona o modelo para um texto universal, não superável, no
qual em última instância dissolvem-se todas as diferenças de gênero, não pode
ser possível distingui-la de outros discurssos, como dominio autônomo de ficção
[...] Na medida que a função poética, a
função que tem a linguagem de abrir mundo, adquire primazia e força
estruturalmente determinante, a linguagem escapa às restrições estruturais e às
funções comunicativas da vida cotidiana. O espaço de ficção que se abre quando
as formas lingüísticas de expressão se tornam reflexivas, é resultado da
neutralização da capacidade que os atos ilocutórios possuem de estabelecer
vínculos e da neutralização das idealizações que tornam possível um uso da
linguagem orientado ao entendimento; e, assim de uma coordenação de planos de
ação centrada no reconhecimento intersubjetivo de exigências de validez
suscetíveis de crítica. [...]. Trechos extraídos da obra O discurso filosófico da modernidade
(Dom Quixote, 1990), do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Veja
mais aqui.
NADA
ME FALTARÁ – [...] Não é o fato de eu dizer
que estou bem que elas não aceitam, o que elas não aceitam é eu estar bem. Eu
acho que elas querem me ver chorando, sofrendo, sei lá. Elas querem que eu
fique me lamentando por não saber onde elas estão. [...]. Trecho da obra
Nada de faltará (Companhia das Letras, 2010) do quadrinista, dramaturgo e
escritor Lourenço Mutarelli.
RELATO DE
OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA - Na madrugada do
dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro
53, em direção ao Rio de Janeiro. Um ônibus de passageiros da empresa Única
Auto Ônibus, chapa RF - 80-07-83 e JR - 81-12-27, trafega na ponte do rio
Coroado em direção a São Paulo. Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio
tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no
rio. Em cima da ponte a vaca está morta. Debaixo da ponte estão mortos: uma
mulher vestida de calça comprida e blusa amarela, de 20 anos presumíveis e que
nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de 34 anos; Manuel dos Santos Pinhal,
português, de 35 anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de
Empregados em Fábricas de Bebidas; o menino Reinaldo de 1 ano, filho de Manuel;
Eduardo Varela, casado, 43 anos. O desastre foi presenciado por Elias Gentil
dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher
apanhar um facão em casa. Um facão? pergunta Lucília. Um facão depressa sua
besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre. Surge
Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de
Moura Júnior. E aquela besta que não trás o facão! pensa Elias. Ele está com
raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com
força, até que sua boca seca. Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz
Elias entredentes, olhando pros lados. Esse mulato!, pensa Elias. Que coisa,
diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e
os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da
Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo. A situação não
anda boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da
vaca. É verdade, diz Marcílio. Os três olham para a vaca. Ao longe vê-se o
vulto de Lucília, correndo. Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também
era rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e
para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois
homens. Bom dia. d. Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a
cabeça. Demorei muito?, pergunta, sem fôlego, ao marido. Elias segura o facão
na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe
no chão. Corre para cima da vaca. No lombo é onde fica o filé, diz Lucília.
Elias corta a vaca. Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a faca,
seu Elias?, pergunta Marcílio. Não, responde Elias. Marcílio se afasta, andando
apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade. Eles vão apanhar facas,
diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua
calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido um bolsa, uma saca, duas
sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas, ordena Elias. Lucília corre. Elias já
cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e sua
mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão
Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca. Lucília
chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de 8 meses, sofre de verminose
e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília
trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca. Alguém me empresta uma
faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos
Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista. Com uma serra,
um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de
dois ajudantes. O senhor não pode, grita Elias. João Leitão se ajoelha perto da
vaca. Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado. Não
pode, gritam os irmãos Medrado. Não pode, gritam todos, com exceção do
motorista da polícia. João se afasta; a dez metros de distância, pára; com os
seus ajudantes, fica observando. A vaca está semidescarnada. Não foi fácil
cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém
quis. Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam a camisa como se fossem
sacos. Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz
ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a d. Dalva, vou fazer também
umas batatas fritas para você, responde Lucília. Os despojos da vaca estão
estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois
auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados
no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue. Extraído da obra Lúcia
McCartney (Francisco Alves, 1987), do escritor e roteirista Rubem Fonseca. Veja mais aqui.
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