TRÍPTICO DQP:
- Vida de sonheiro... - Amanheceu e
a maravilha de viver cheia nos olhos e coração. Uma comemoração alheia e
descabida atravessou a noite alfinetando minha madorna assaltada pela madrugada
afora: era como a assombração de inimigo insone ao arrebol, com o eco da
balbúrdia dos alto-falantes. Na verdade mais parecia a festa do obituário na fúria
de nauseantes desumanos engrossando o alarido farsante dos fetiches na festa da
derrocada e do patético. A cidade não era outra senão a vista por Adorno: ...reproduz a fachada na tarefa de
enganar. O engodo iminente saltitava a
revelar pistas falsas na hora suspensa: alarmes latentes na paisagem nublada. Já
não tenho tanta certeza de nada, aliás, nunca tive de mesmo. Escapei por pouco
e vivo porque sorvi as três mil hóstias n’O Lugar do Sonho de Rosana Palazyan: Na arte, era um
perigo de exclusão e não aceitação. Mas insisti e resisti. Nunca esquecida,
hoje cada vez mais essa memória reacende, a cada notícia de vitimas. Não dá pra
viver na cidade linda que amo tanto e que nunca abandonei, sem fazer nada... Eu
acredito no amor, como forma de cura e resistência... Esses os nossos sentimentos, muito embora intramuros
tudo seja tão crucial quanto pungente: uma vaguidade
empalidecente ornada de prudência e covardia. Já perdi minha certidão de
nascimento, quem disse que seria agora ou para hoje: o passado tem o gosto das
coisas perdidas. Não estremeci, nem estou morto. Eu escrevo enquanto ouço de Martin Amis: Escrever é um ato de liberdade. Sim, a
minha vida de sonheiro: o esperançar é maior que o deserto do
real...
De passadas
e tropeços... - Imagem:
Cabeças & Boca do Inferno (Galeria Vermelho/Bienal de São Paulo, 2021), da pintora, escultora, artista visual, desenhista,
gravadora, professora e artista multimídia Carmela Gross. - Falta pouco, espero. Está tão irrespirável nas tardes de todos os dias
noite adentro por dilúculos sombrios. Mas sei, falta muito pouco, tomara. Todavia,
as circunstâncias arranham a pele com o tempo obnubilado. Não fosse a surpresa
eu teria talvez sucumbido ao desengano. Apareceu-me Beatrice – não apenas a perseguida amada de Dante, e que antes já estivera no altar
sagrado como serva de Afrodite para
se entregar ao primeiro que aparecesse com moeda em troca. E que depois se
passara por Cenci para assombrar Paris e o mundo todas as noites de 11 de setembro. E
que depois de musa se tornara renascente Filha da Dor pelos séculos pretéritos e crástinos. Com seu jeito aconchegante de
recém-chegada, ela me contou de quando foi Rūpiṇikā do Kathāsaritsāgara e do
quanto sofrera por ontens de repetidas cenas milenares. E mais dissera do sonho
recorrente da infância de se ver leitora pras crianças e aflitos, e escrever
poesias no seu diário interminável, e vestir-se para o domingo como uma moça
qualquer da vizinhança e não pudera jamais, nem agora que nada mais a
atemorizava. Mais disse entre fumaças e goles, soluços e revelações. Mais que
sonolenta levantou-se, apagou a luz, despiu-se para deitar e, pela luz lunar dos seus olhos fechados, expôs o torso colossal da Freira de Monza, para me recitar os últimos versos do Poema Limpo de Paula Berinson: ... Vomito as almas dos meus filhos / e os
devolvo à trincheira / do nada materno. Silenciou aninhand0-se ao meu lado e esforçando-se por esconder as
lágrimas que se precipitavam na cachoeira do peito. Eu sentia e afagava seus
braços suaves. Enfim aquietou-se para que minhas mãos solidárias acariciassem suas
faces sedosas, quando enfim me acomodou nela para o nosso solidário
adormecimento. Era onírico demais para ser verdade. Duvidei até do que sou. Só sei
que ao despertar o canto mais limpo, ela se fora e a sensação das trevas
cobriu-me as direções como se não mais tivesse bússola nem para onde ir, como o
que se fez de espera nos desencontros tácitos pelas saídas de emergência.
Outro tempo
inexistente... - Imagem:
Jardim dos
Pássaros, da série A noite, no quarto de cima, O cruzeiro
do sul, lat. Sul 23 32 36, long. W. Gr. 46 37 59, 1973 – 2010: Revisão (Livraria e Galeria Seta), do pintor, gravador e desenhista Evandro Carlos Jardim. – As horas
passavam e tive a sensação de que tudo se parecia tão urgente quanto o que
calei fundo indesejavelmente. E tudo de mim fosse levado pela ponta do
improvável não sei para onde, na previsão do amorável se esgarçando na ponta
dos dedos - mesmo que meu coração insistisse entre todas as possibilidades de
comunhão e harmonia. Estava tão absorvido pela confusão que nem percebi o seu
retorno inesperado. Novamente chegara e me fitou assustada como se tivesse acometida pela Síndrome de Stendhal, desmaiando voluptuosamente em seguida. Tentei socorrê-la,
mesmo que me visse incapaz da sobrevida desejada. Tentei reanimá-la sem saber
nem como, mãos à cabeça e agora, o que fazer sumindo das ideias. Felizmente ela
deu sinal de vida ao se mexer timidamente. Fiz o que pude para que se sentisse confortável
para completo restabelecimento. Aos poucos foi retomando os sentidos e quase
refeita fitou-me lindamente. Tentou dizer-me algo e ousou como se fosse Eleanor Catton esforçando-se ao máximo:
Experimentar a beleza
natural sublime é enfrentar a total inadequação da linguagem para descrever o
que você vê. Palavras não podem transmitir a escala de uma vista que é tão
impressionante que é sentida. Tentei melhor ampará-la e não pude esconder o regozijo com o que dissera ali. Sabia-me Golem e lhe
recitei o Autorretrato de Bandeira assim, todinho de
cor, em retribuição. Se o que vale é o teor dos sentidos na horagá, fiz-me
solícito e firmei o que mais adequado haveria de ser feito: sentir suas
pulsações e reter ao máximo o prazer de tê-la o mais próximo que pudesse
enquanto possível. Até mais ver.
Ler sempre foi minha tábua de salvação – uma fuga para aquele mundo imaginário onde as mágoas eram fictícias e os finais felizes...
Pensamento da escritora
estadunidense Phyllis A. Whitney
(1903-2008). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.