Ao som do show Almério e Martins gravado ao vivo no Teatro do Parque, Recife, 21 de novembro de 2021.
TRÍPTICO DQP:
Isso é aquilo ou outro... – Ainda
que não tivesse esperança da manhã eu saía porta afora e em cada esquina a implacável
presença de dementadores prontos para devorar cada um dos passantes: a frieza
das atitudes desumanas como gente que pulsa com a surdez na iminência letal,
tão cegos quanto mudos de braços cruzados com a sua resignada covardia, seu
raciocínio inútil de quem odeia por não saber amar e seu ar perfurador apagando
palavras e emoções como quem mais odeia e eu precisava comiserar como nem sei. Precisava
mesmo estar atento. E ao me esquivar do ataque deles, logo dei de cara com o hipogrifo
de Ariosto: sabia, acenar ou correr –
cara ou coroa, dá no mesmo. Nem me assustei porque já sabia dos Tetrálios para
quem via constantemente a morte rondando cada vez mais perto. Mas, por via de
dúvidas optei pela segunda, não podia correr mais risco e sabia que a vida não
cabia num simples silogismo: se havia enigmas, nada tão factual que saber meu
quarto verdadeiro simulacro de cela penitenciária. Precisava sair: um lugar
qualquer de nenhum local, só para refrescar a ideia e lembrar que minha irmã sempre me tratou por palerma; a do meio, era tanto faz; e a
caçula sequer entendia nada direito. E eu entre os
horrores do museu do Terror de Budapest, ouvindo Imre Kertsz: Você sobrevive à
sua falta de sensibilidade e compreende que o vazio do mundo é, de certa
maneira, obra sua... Com o meu espanto diante do que dissera, acrescentou: A leitura é como que uma droga que confere
um adorno agradável aos contornos da crueldade da vida... Ah, sim, e me serviu como uma alquimia revivificante ou bricolagem instantânea para
animar meus passos assimétricos de quem quase claudica a
se precipitar pelas horas abissais no meio da noite trágica, mesmo que fosse
dia ensolarado, como se fosse um deus inapropriado anulado pela própria sorte
da anárquica ousadia disso ou daquilo e era outro, nada mais e o ditado: cobra
que não anda não engole sapo.
Antes que chegue amanhã...
- Imagem da artista
japonesa Tomoko Takahashi. - O acorde a corda olhos dum poema
estival advenoite augurando: Não chegue amanhã, por favor, oh, não chegue. E era
como se Charlotte Mary Yonge me
dissesse: O erro que fazemos, é
quando procuramos ser amados, em vez de amar. Ah se pelo menos o mundo eu tivesse um tiquinho de nada,
não me atemorizaria com a fugacidade e descontinuidades. Mas não, como Candeia
precisava se encontrar consigo e com o Sol, rios, pássaros, eu precisava das passagens
excruciantes como se fosse Ulisses diante de Atena, sem precisar lançar mão do
dolo diante dos secretos desesperos inconsoláveis, ou como um deus que dança a
poetar que sou o tempo que me esfacela e me destroça feito um rio incendiado
pelas chamas do tempo. Atrevo-me a abrir o trinco dos labirintos e eis que
emerge Mavis Gallant: Decida o que o resto da sua vida é ser. Tudo
o que você é agora, você pode ser para sempre. Mas como se a vida reduzida
ao buraco da fechadura, porque aqui se matam sonhos, aqui se mata de tudo e
todos: a gentrificação na festa apoplética dos ignorantes abastados sobre almas
desgarradas. Antes que chegue a
manhã eu preciso subir à superfície: a distância entre o que digo e sinto, a
desvalorização humana, o ódio pelo amor e o fracasso humano, as filigranas da
vileza inapelável sob o Sermão contra
usurários de Gregório de Nissa, tudo
algaravias pelo entardecimento.
A vertigem da deriva... Imagem do ilustrador britânico Tom Poulton (1897-1963) – Lá longe
quase via a dança das Horas nuas. Ao
chegar mais perto, não, não era: a vida prega das suas. E só muito depois quando
a boca noite se fizera a primeira das moiras
ali me chegou e era Cloto desnudadivosa como aquela do Querubim de Rops, a tomar
das minhas mãos, ajeitando-se para beijar meu sexo e surpreendentemente entregar-se
escancarada para meu prazer sobre a poltrona. Tão surpreso quanto curioso
deixei-me levar e assim como veio se foi, o trâmite de um dia atrás do outro. Escapei
por pouco, mas sabia envolvido de forma inescapável. Sim. Foi no outro dia de
tarde, a segunda, Láquesis, achegou-se como aquela da jarra de Shuvalon: vasculhou minhas intimidades, despiu-se
apressada para atrepar-se sobre meu ventre, voluptuosamente enlouquecida. E se
ela espichou a minha vida, nada saberia. Até que na noite seguinte, a terceira,
Átropo, puxou-me até sua alcova, arrancou-me as vestes e empurrou-me sob os
cobertores para arranchar despida e de costas, tomando-me as mãos ao seio e
deitando-se como aquela do Amor do Liber Tacuina Sanitatis. O que aprendi ali não sei para quem se
eternizava no corte entre o previsto e a prevenção, era só o que
restava. Até que dois dias depois apareceu a translúcida Veronica Franco: Quando
nós também estamos armadas e treinadas, podemos convencer os homens de que
temos mãos, pés e um coração como o seu; e embora possamos ser delicadas e macias,
alguns homens delicados também são fortes; e outros, grosseiros e duros , são
covardes. As mulheres ainda não perceberam isso, pois se assim o decidissem,
poderiam lutar contra você até a morte; e para provar que falo a verdade, entre
tantas mulheres, serei a primeira a agir, dando um exemplo para eles seguirem. E me enfrentou
como a Hidra para geminiano que almejasse a lua inteira só para si, tão longe
da repugnância humana e dos desapontamentos da memória longínqua da ruína e a
pressentir ocasos sucessivos. Ela então se apossou de um enorme espelho, depôs
ao chão e ajoelhou-se perante um jarro de flores a deslizar uma fita mágica. Pude
então ver-lhe a intimidade escondida para entender que a vida e a morte não são
duas, mas uma só e mútua experiência. Até mais ver.
[...] Educar significa utilizar práticas
pedagógicas que desenvolvam simultaneamente razão, sensação, sentimento e
intuição e que estimule a integração intercultural e a visão planetária das coisas [...] A aprendizagem integral
depende, portanto, do
desenvolvimento harmonioso de todos estes canais de relação homem-mundo
[...] Isto porque a
aprendizagem –
no sentido
holístico – não objetiva apenas capacitar o
individuo para
entender o funcionamento do mundo [...].
Trechos extraídos da obra A canção da inteireza: uma visão holística da educação (Summus, 1995), do filósofo e professor Clodoaldo Meneguello Cardoso. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.