segunda-feira, agosto 15, 2022

IMRE KERTSZ, MAVIS GALLANT, VERONICA FRANCO, CHARLOTTE YONGE& CLODOALDO CARDOSO

 

Ao som do show Almério e Martins gravado ao vivo no Teatro do Parque, Recife, 21 de novembro de 2021.

 

TRÍPTICO DQP: Isso é aquilo ou outro...Ainda que não tivesse esperança da manhã eu saía porta afora e em cada esquina a implacável presença de dementadores prontos para devorar cada um dos passantes: a frieza das atitudes desumanas como gente que pulsa com a surdez na iminência letal, tão cegos quanto mudos de braços cruzados com a sua resignada covardia, seu raciocínio inútil de quem odeia por não saber amar e seu ar perfurador apagando palavras e emoções como quem mais odeia e eu precisava comiserar como nem sei. Precisava mesmo estar atento. E ao me esquivar do ataque deles, logo dei de cara com o hipogrifo de Ariosto: sabia, acenar ou correr – cara ou coroa, dá no mesmo. Nem me assustei porque já sabia dos Tetrálios para quem via constantemente a morte rondando cada vez mais perto. Mas, por via de dúvidas optei pela segunda, não podia correr mais risco e sabia que a vida não cabia num simples silogismo: se havia enigmas, nada tão factual que saber meu quarto verdadeiro simulacro de cela penitenciária. Precisava sair: um lugar qualquer de nenhum local, só para refrescar a ideia e lembrar que minha irmã sempre me tratou por palerma; a do meio, era tanto faz; e a caçula sequer entendia nada direito. E eu entre os horrores do museu do Terror de Budapest, ouvindo Imre Kertsz: Você sobrevive à sua falta de sensibilidade e compreende que o vazio do mundo é, de certa maneira, obra sua... Com o meu espanto diante do que dissera, acrescentou: A leitura é como que uma droga que confere um adorno agradável aos contornos da crueldade da vida... Ah, sim, e me serviu como uma alquimia revivificante ou bricolagem instantânea para animar meus passos assimétricos de quem quase claudica a se precipitar pelas horas abissais no meio da noite trágica, mesmo que fosse dia ensolarado, como se fosse um deus inapropriado anulado pela própria sorte da anárquica ousadia disso ou daquilo e era outro, nada mais e o ditado: cobra que não anda não engole sapo.

 


Antes que chegue amanhã... - Imagem da artista japonesa Tomoko Takahashi. - O acorde a corda olhos dum poema estival advenoite augurando: Não chegue amanhã, por favor, oh, não chegue. E era como se Charlotte Mary Yonge me dissesse: O erro que fazemos, é quando procuramos ser amados, em vez de amar. Ah se pelo menos o mundo eu tivesse um tiquinho de nada, não me atemorizaria com a fugacidade e descontinuidades. Mas não, como Candeia precisava se encontrar consigo e com o Sol, rios, pássaros, eu precisava das passagens excruciantes como se fosse Ulisses diante de Atena, sem precisar lançar mão do dolo diante dos secretos desesperos inconsoláveis, ou como um deus que dança a poetar que sou o tempo que me esfacela e me destroça feito um rio incendiado pelas chamas do tempo. Atrevo-me a abrir o trinco dos labirintos e eis que emerge Mavis Gallant: Decida o que o resto da sua vida é ser. Tudo o que você é agora, você pode ser para sempre. Mas como se a vida reduzida ao buraco da fechadura, porque aqui se matam sonhos, aqui se mata de tudo e todos: a gentrificação na festa apoplética dos ignorantes abastados sobre almas desgarradas. Antes que chegue a manhã eu preciso subir à superfície: a distância entre o que digo e sinto, a desvalorização humana, o ódio pelo amor e o fracasso humano, as filigranas da vileza inapelável sob o Sermão contra usurários de Gregório de Nissa, tudo algaravias pelo entardecimento.

 


A vertigem da deriva... Imagem do ilustrador britânico Tom Poulton (1897-1963) – Lá longe quase via a dança das Horas nuas. Ao chegar mais perto, não, não era: a vida prega das suas. E só muito depois quando a boca noite se fizera a primeira das moiras ali me chegou e era Cloto desnudadivosa como aquela do Querubim de Rops, a tomar das minhas mãos, ajeitando-se para beijar meu sexo e surpreendentemente entregar-se escancarada para meu prazer sobre a poltrona. Tão surpreso quanto curioso deixei-me levar e assim como veio se foi, o trâmite de um dia atrás do outro. Escapei por pouco, mas sabia envolvido de forma inescapável. Sim. Foi no outro dia de tarde, a segunda, Láquesis, achegou-se como aquela da jarra de Shuvalon: vasculhou minhas intimidades, despiu-se apressada para atrepar-se sobre meu ventre, voluptuosamente enlouquecida. E se ela espichou a minha vida, nada saberia. Até que na noite seguinte, a terceira, Átropo, puxou-me até sua alcova, arrancou-me as vestes e empurrou-me sob os cobertores para arranchar despida e de costas, tomando-me as mãos ao seio e deitando-se como aquela do Amor do Liber Tacuina Sanitatis. O que aprendi ali não sei para quem se eternizava no corte entre o previsto e a prevenção, era só o que restava. Até que dois dias depois apareceu a translúcida Veronica Franco: Quando nós também estamos armadas e treinadas, podemos convencer os homens de que temos mãos, pés e um coração como o seu; e embora possamos ser delicadas e macias, alguns homens delicados também são fortes; e outros, grosseiros e duros , são covardes. As mulheres ainda não perceberam isso, pois se assim o decidissem, poderiam lutar contra você até a morte; e para provar que falo a verdade, entre tantas mulheres, serei a primeira a agir, dando um exemplo para eles seguirem. E me enfrentou como a Hidra para geminiano que almejasse a lua inteira só para si, tão longe da repugnância humana e dos desapontamentos da memória longínqua da ruína e a pressentir ocasos sucessivos. Ela então se apossou de um enorme espelho, depôs ao chão e ajoelhou-se perante um jarro de flores a deslizar uma fita mágica. Pude então ver-lhe a intimidade escondida para entender que a vida e a morte não são duas, mas uma só e mútua experiência. Até mais ver.

 


[...] Educar significa utilizar práticas pedagógicas que desenvolvam simultaneamente razão, sensação, sentimento e intuição e que estimule a integração intercultural e a visão planetária das coisas [...] A aprendizagem integral depende, portanto, do desenvolvimento harmonioso de todos estes canais de relação homem-mundo [...] Isto porque a aprendizagem no sentido holístico não objetiva apenas capacitar o individuo para entender o funcionamento do mundo [...].

Trechos extraídos da obra A canção da inteireza: uma visão holística da educação (Summus, 1995), do filósofo e professor Clodoaldo Meneguello Cardoso. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.