CARTA DE PEITO ABERTO - Imagem: a arte
do fotógrafo Osmário Marques. - Não nasci para sempre e a cada espanto a
sequência da memória que me falha, se entrega ao meu exílio. Pouco sou do que
me resta, nada tenho por primazia: sou mato de chão, areia de deserto,
estrangeiro para todos, e por todos, cada um, sou comunhão. As palavras antigas
agora quase são outras e o Brasil é sempre o mesmo, confunde-se com séculos de
ontens, e nem se espera que amanhã seja um outro de tão pretérito, um futuro só
passado no agora nem lembrado e sequer vivido diante das desventuras e sem
pausas nas recordações. Daqui a gente não sai, apesar do riso de esgar dos que
pensam donos dos confins. Ainda é cedo, mesmo que pareça tarde demais e tudo
por um fio. Nenhum recado e me adivinho inteiriço
nas minhas espessuras, porque perdi o calendário, os dias e os meses – não sei
se hoje é quarenta e cinco de outubro, ou trinta e um de fevereiro -, cheguei
antes do nome e dissolvo as sombras, fatigado de errar. Sirvo-me da derradeira
esperança, escrevo estrelas e reclamam as palavras extraviadas no reino do
silêncio. O sortilégio da poesia segue o exemplo luminoso do coração na serena
voz, se faz frio ou calor, o corpo é só verdade ao sentimento. Sou o que canto,
qualquer maneira, espesso ou insosso, levo o gesto sem demora pra quem punge a
lágrima escondida. Canto a pele do rio, o céu azul da cidade, a doce terra,
pode ser nada, só o que tenho, e o meu dedo alisa o espaço e toca o tempo –
essas ilusões que não resistem aos meus olhos fechados. Cantar sempre foi o meu
fraco e se me perguntam se vou, digo chego já, e reparto a colheita do peito
sem certeza por mais distante que sejam os caminhos. A morte que me pertence
depende de mim e sou nela o vale da eternidade. À minha espera, a paixão em
tudo que faço: vivo o instante que me cabe e convivo com o milagre de viver
vendaval. A vida é o que me vale, cair na vida pro exercício do amor. Deus
abençoe a todos. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial com a música do compositor, arranjador e
violonista 7 cordas Gian Correa:
Jazzman no Morro, Gênese & Homenagem a Dominguinhos; da pianista Clélia Iruzun: Grand Fantasie
Triomphali sur l’Hymne National Bresilien, Choro nº 5 – Alma brasileira &
Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa-Lobos; &
muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte
Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Nossa
constituição é chamada de democracia porque o poder está nas mãos do povo e não
de uma minoria. Quando se trata de solucionar rixas particulares, todos são
iguais perante a lei; quando se trata de colocar um indivíduo à frente de outro
em cargos de responsabilidade pública, o importante não é pertencer a
determinada classe, mas sim a capacidade real de que o homem é possuidor.
Ninguém, desde que nutra o desejo de servir ao estado, é mantido na obscuridade
política por ser pobre... esta é uma peculiaridade nossa; não dizemos que um
homem que não tem interesse pela política é um homem que trata de sua própria
vida; dizemos que ele não tem absolutamente nada a fazer aqui. [...].
Palavras do estadista, orador e estrategista da Grécia Antiga, Péricles (495/492aC-429aC),
durante a Era de Ouro de Atenas, recolhida da obra História das cavernas ao terceiro milênio (Moderna, 2000), de
Myriam Becho Mota & Patrícia Ramos Braick. Veja mais aqui e aqui.
A DESCOBERTA & A REVELAÇÃO – [...] A revelação não descobre algo exterior, que
estava aí, alheio; o ato de descobrir entranha a criação do que vai ser
descoberto: nosso próprio ser. Nesse sentido, pode-se dizer, sem temor de
incorrer em contradição, que o poeta cria o ser. Porque o ser não é algo dado,
sobre o qual se apoia nosso existir, mas algo que é feito. O ser não pode se
apoiar em nada porque o nada é seu fundamento. Assim, não lhe resta outro
recurso senão segurar-se em si, criar-se a cada instante. Nosso ser consiste
numa possibilidade de ser. Ao ser não lhe resta nada senão ser-se. Sua falta
original — ser fundamento de uma negatividade — obriga-o a criar sua abundância
ou plenitude. O homem é carência de ser mas também é conquista do ser. O homem
é lançado para nomear e criar o ser [...]. Trecho
extraído da obra O arco e a lira (Nova Fronteira, 1982), do
escritor e diplomata mexicano Octavio Paz (1914-1998) que, em outra
obra, Signos em rotação (Perspectiva, 2003), observa que: [...] Com efeito, a linguagem é sentido disto ou
daquilo. O sentido é o nexo entre o nome e aquilo que nomeamos. Assim, implica
distância entre um e outro. Ao anunciarmos certa classe de proposição (“o
telefone é comer”, “Maria é um triângulo”, etc) produz-se um sem-sentido porque
o objeto torna-se insalvável: a ponte, o sentido rompeu-se. O homem fica só,
encerrado em sua linguagem. Com a imagem sucede o contrário. Longe de aumentar,
a distância entre palavra e coisa se reduz ou desaparece por completo: o nome e
o nomeado são a mesma coisa. O sentido — na medida em que é nexo ou ponte —
também desaparece; já não há nada que aprender, nada que assinalar. Mas não se
produz o sem-sentido ou o contra-sentido e sim algo que é indizível e
inexplicável, exceto por si mesmo [...]. Veja mais aqui e aqui.
EXILADOS – [...] Richard:
[Recosta-se, prende as mãos atrás da cabeça.] Ah, se soubesse como estou
sofrendo agora! Por sua causa também, mas principalmente por mim mesmo. [Com
intensa amargura.] E como eu rezo para que pudesse receber novamente a dureza
do coração da minha falecida mãe! Preciso encontrar algum tipo de ajuda, dentro
ou fora de mim. E vou encontrar. [BEATRICE levanta-se, olha fixamente para ele
e afasta-se até a porta do jardim. Vira-se hesitante, olha novamente para ele,
volta até a poltrona e apóia-se nela.] Beatrice: [Calmamente.] Ela o chamou
antes de morrer, senhor Rowan? Richard: [Perdido em pensamentos.] Quem?
Beatrice: Sua mãe. Richard: [Voltando a si, olha-a pungentemente por um
momento.] Então meus amigos também comentaram a respeito disso, que ela mandou
me chamar antes de morrer e que eu não fui vê-la. Beatrice: Sim. Richard:
[Friamente.] Não, ela não mandou me chamar. Morreu só, sem me perdoar e
fortalecida pelos rituais da sagrada igreja. Beatrice: Por que está falando
comigo desse jeito, senhor Rowan? Richard: [Levanta-se e anda de um lado para o
outro.] E você vai dizer que esse meu sofrimento é minha punição. Beatrice: Ela
lhe escreveu? Quer dizer, antes de... Richard: [Parando.] Escreveu. Uma carta
com conselhos, mandando que esquecesse o passado e lembrasse das últimas
palavras que havia me dito. Beatrice: [Suavemente.] E a morte não o afeta,
senhor Rowan? É um fim. Nada mais é tão certo. Richard: Enquanto estava viva,
ela virou as costas para mim e para minha família. Isso, sim, é certo. Beatrice:
Ao senhor e à sua família... ? Richard: Eu, Bertha, nosso filho. Então, esperei
pelo fim, como você diz. E ele veio. Beatrice: [Cobre o rosto com as mãos.]
Não, não posso acreditar no que estou ouvindo. Richard: [Furiosamente.] Como
minhas palavras poderiam ferir aquele pobre corpo apodrecendo na cova? Você
acha que eu não lamento pelo amor frio e virulento que ela tinha por mim? Eu
lutei contra o seu espírito enquanto ela viveu, até o amargo fim. [Pressiona a
mão contra a testa.] Ele ainda luta contra mim, aqui. Beatrice: [Como antes.]
Por favor, não fale assim! Richard: Ela me afastou. Por causa dela vivi anos
exilado e na miséria, ou quase. Nunca aceitei as esmolas que ela me mandava
pelo banco. E esperei também. Não pela sua morte, mas que me compreendesse de
algum modo, o próprio filho, sua carne, seu sangue. Mas isso nunca aconteceu.
Beatrice: Nem mesmo depois de Archie? Richard: [Asperamente.] Meu filho, você
acha? Uma criança fruto do pecado e da vergonha! Você está falando sério? [Ela
levanta a cabeça e olha para ele.] As más-línguas daqui já estavam prontas para
contar tudo a ela, para amargurar ainda mais sua mente doentia e instigá-la
contra mim, Bertha e nosso filho bastardo e ateu. [Estendendo suas mãos para
ela.] Você não consegue ouvi-la desdenhando de mim enquanto falo? Você deve
conhecer aquela voz, com certeza, a voz que lhe chama de protestante demoníaca,
de filha do pervertido. [Recompondo-se subitamente.] De qualquer forma, uma
mulher notável. [...]. Trecho da peça teatral Exilados (Iluminuras, 2003), do escritor irlandês
expatriado James Joyce (1882-1941), contando a história de um casal que
volta a Dublin depois do exílio e retoma contato com um jornalista que é
apaixonado pela esposa do amigo e entra em conflito interno, desenvolvendo uma
trama de um triângulo amoroso entre um artista que luta contra as convenções
burguesas, sua mulher de caráter forte e insubmisso e um jornalista de
temperamento sensual, mostrando a frágil divisão de possessão existente quando
amor e amizade realizam-se livremente sem restrições. Veja mais aqui.
CINCO POEMAS - OH
MEU SENHOR! I - o modo como ela ouvia a chuva / um último momento e o rapaz lhe
salva / quase sempre ele / vai requebra pela calçada / calça justa cabelos
negros / sobre a pista de dança daquele modo / como ele / o rapaz / dançava / o
corpo nos 70 aquele rapaz / o modo como agora ela reza senhor / saída de um
retábulo hieronymus / sobre a mesa da sala/ os pássaros monstros voando como
balas / estilhaçando as janelas de um céu azul / os pássaros sem modos do
amanhecer / os estridentes “eles" / cristais presos ao vidro / as balas
azuis as balas / os cavaleiros com suas caras / a cruz no peito estilhaçado
pelos mesmos pássaros / a sala a vala rasa a vara dos / treze anjos no teto a
casa / são anjos com olhar afiado / de oh piedade senhor tende de nós / o modo
como ela sabia das flores dias / e dias lilases branco pálidos como seu rosto /
e as flores até enegrecerem secarem / vivas como velas / tremulando sobre as
paredes / bebendo as noites de celan / o modo como ela atravessava e bebia o
corredor / e a noite varava / oh senhor! II - oh tereza de ávila entre os muros
/ de pedra / a minha casa / como a tua lavoura a minha casa / sob os teus pés /
mater dolorosa / doce aragem perfumada / sobre o meu retrato paira / ondula
esfumaça / cor-de-rosa venenosa / a rosa oh tereza santa / desvairada / a
neblina grita guerra / a minha casa arde / e a minha tarde espera / entre as
velas / que iluminam as pedras / da muralha sem pássaro / da cidade sem máscara
/ da outra pedra sem laço / onde o espaço onde / arde o ocaso arde / e queima a
casa dela / areia areia areia / minha estrela sobe o sepulcro / areia aleph
areia / beijo o muro / e pedra / atravesso a casa / meu livro de letras /
movimenta-se / areia / sob o chão de minha casa / movimenta-se / a tua casa
escassa / mina e cada passo / acaba / acaba e cada brisa / inicia outra casa /
areia areia areia A FIANDEIRA ABRIU: A fiandeira abriu o baú de prata teceu um
vestido cor de terra. Vestiu-o e adormeceu em meio ao mato que cobriu a casa
branca do cal da escuridão. Nunca mais despertou. O diabo sentado para o jantar
ouviu tudo. A noite misteriosa nada escutou: a
cruz no peito e o diabo nos feitos As saias de Juana, a alma, são
brancas Todos os vestidos das mulheres da casa são negros guardados em baús
dobrados no desalinho do tempo No verão enquanto os tamanduás passeiam os
focinhos compridos as mulheres de negro cerram as janelas e fingem o luto
choram como bezerras Rezam ao pé da cruz se descabelam para depois pecar ao sol
com suas vestes pássaras cantam seus rondós silvestres pintam os olhos que
exibem esquecem São criaturas de um outro mundo Juana, a alma de porcelana,
nunca chorou 1300 Mis saetas
ligeras les tiraré, y la hambre corte el vital estambre; y de aves carniceras
TYRANA CANTADA À SACRA PRECLARÍSSIMA SANTA JOANA PRINCESA EM SEU LEITO DE MORTE
– 1 Ela disse ao coração do cantor / não cante/aos corvos / ela
disse ao mar profundo / jazem/as brumas da ira / ela disse não cante /apenas
diga / ao silêncio/que plante / aquela flor/ e rasgando a sombra/cuja mão / ela
/esguia como um longo cravo/ segurava/disse ao tempo/ não espantes/o sol com a
tua dor BESTIÁRIO - a minha guerra será a tua guerra / não a guerra dos homens
/mas a dos pássaros desgarrados / o nosso bestiário será esse / o do contrário
nunca jamais / e a minha casa será a tua guerra / o nosso bestiário será esse /
o do contrário o dos urubus diários / e a minha carne será a tua guerra / o
nosso bestiário será esse / o dos monstros submersos que eunoé lembrará /
quando a minha cruz for a tua guerra / então o nosso bestiário será esse /
canto perdido sem prumo retalhado / sem dor sem beleza nem terra / e a minha
guerra será a tua guerra. Poemas da poeta e artista plástica Jussara Salazar, autora dos livros
Carpideiras (2011), Natália (2004) e Coloraurisonoros (2008), entre outros.
A ARTE LUIZA BARRETO LEITE
A atriz,
crítica e diretora teatral Luíza Barreto Leite (1909-1996), estreou no
cinema com o filme Sob a luz de meu bairro, em 1946, tornando-se uma das
fundadoras do grupo teatral Os comediantes e foi diretora de radioteatro da
Rádio Mec. Ela também foi ensaísta, professora e é autora dos livros A mulher
no teatro brasileiro (Espetáculos, 1965), Teatro na educação (INP, 1954),
Teatro e criatividade (MEC/SNT, 1975) e O teatro na educação artística
(Achiamé, 1980), entre outros.
&
A arte de Osmário Marques
&
Coisas
da vida de rir & chorar, a literatura
de Ferreira Gullar & Patrick McGrath,
a fotografia de Max Dupain & JR aqui.