A ILUSÃO DA ALMA
DE GIANNETTI - [...] Deitado no escuro, dorso nivelado à cama, resignado a passar a noite em
claro se preciso, um cortejo de vislumbres e premonições veio sacudir a minha
insônia. É ridículo, pensei. Cá estou no meu quarto, eu, um professor de letras
precocemente aposentado, meio surdo e alcoolizado, um solteirão de meia-idade;
cá estou eu, um esquisitão sobre quem ninguém nada sabe, o cumulo da
insignificância, aterrado por uma insônia banal e, não obstante, esse ser
ínfimo e obscuro, deitado no quinto andar de um edifício, dispara a ter ideias
como se o mundo girasse em torno dele naquele instante: É possível que não tenhamos
alcançado ainda menor compreensão do que nos faz ser quem somos e agir como
agimos? É possível que estejamos radicalmente equivocados sobre nós mesmos,
perdidos na mais espessa floresta de mitos e enganos, e que nossos descendentes
das gerações futuras venham um dia a nos encarar com a mesma mistura de
complacência e perplexidade com que encaramos os nossos ancestrais animistas,
com seus rituais, sacrifícios e despachos? Sim, é possível. É possível termos
acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege os nossos
músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos
eletroquímicos no cérebro, como a fosforescência no rasto de um fósforo aceso
no escuro ou a espuma de uma onda neural? E que, portanto, fazer de um
propósito ou de uma intenção consciente a causa de uma ação humana é tão
desprovido de fundamento como falar do propósito de um espermatozoide ao
fecundar um óvulo ou da cigarra ao entoar sua cantoria ou do Sol irradiar
calor? Sim, é possível. É possível que toda a reflexão e pregação da ética
estejam colocadas no equivoco de que possuímos liberdade de escolha e de que
existem coisas em nossas vidas que poderiam ser diferentes do que são; e que,
não existindo vicio ou virtude, não há nada que mereça ser aplaudido ou
condenado em sentido moral? É possível que Epiteto, o escravo e filosofo
estoico do século I d.C., estivesse
certo ao concluir, ainda que por caminho diverso, que “quem acusa os outros
pelos seus próprios infortúnios revela uma total falta de educação; quem acusa
a si mesmo mostra que a sua educação já começou; mas quem não acusa nem a si
mesmo nem aos outros revela que a sua educação está completa? Sim, é possível.
É possível que toda forma de feroz intransigência e todas as guerras religiosas
e ideológicas e todos os conflitos sangrentos por terras, minérios, primazias
sejam fruto de um pavoroso mal-entendido da consciência humana sobre si mesma?
E que os autoproclamados “ateus militantes”, quando se propõem a tratar “a
existência de Deus como uma hipótese cientifica como qualquer outra”, revelam
uma falta de tino e uma superficialidade diante das necessidades espirituais do
homem que é ainda mais espantosa do que a fé ingênua da maioria dos crentes e
devotos aos quais se opõem? Sim, é possível. É possível que toda a história da
ciência desde o atomismo grego não seja outra coisa senão a progressiva e
implacável destruição de qualquer possibilidade de sentido para a existência, a
autodiminuição do homem perante si próprio e sua metamorfose em fortuita,
passageira e risível criatura, como um tipo peculiar de pulgão alucinado? E que
a missão da ciência – única fonte de saber objetivo ao nosso alcance – seja
reduzir todos os mistérios a trivialidades, demonstrando em minúcia a mecânica
(ou quântica) absurdidade de todo o devir, até que só reste ao homem o mistério
da absurda trivialidade de tudo? Sim, é possível. É possível, enfim, que nossa
consciência de nós mesmos não passe de um engodo e de um continuo fantasiar que
não somos, como uma farsa em que os personagens se creem autores de papeis que
representam? E que aquilo a que me habituei chamar de eu não existe realmente,
mas seja apenas sopro do que emerge da combinação de sopas e faíscas de um
cérebro em vigília; e que eu e tudo o que me imagino ser seja uma peça de
ficção que vive em mim em vez de ser escrita; e que ninguém exista realmente
como se finge existir, mas seja o personagem de sua própria farsa, como peça
assombradas do xadrez sem enxadrista que se desenrola em cada cérebro particular?
Mas se tudo isso é possível e, mais que isso, possivelmente verdadeiro, então
eu não posso ficar calado, encolhido como um caramujo, entregue à consciência
oca e resignada do meramente existir. Então algo tem de ser feito. Tem de
existir um furo, um erro fatal no meu pensamento. Preciso entender o que se
passou comigo; preciso pôr em palavras o sinistro absurdo da clausura em que
estou metido. Se eu não existo, se não sei quem – ou o que – sou, como se
pensam os pensamentos que me atormentam? Não há caminho que me leve adiante? E
assim, paciente leitor, no paredão daquela madrugada insone, brotou em mim o
germe do livro que repousa em suas mãos. Refute-me se for capaz! A
ILUSÃO DA ALMA – O livro A ilusão da
alma: biografia de uma ideia fixa, do professor do Instituto de Ensino e
Pesquisa (Insper) e PhD pela Universidade de Cambridge, Eduardo Giannetti,
relata a história de um professor de literatura, especialista em Machado de
Assis, e sua perturbadora conversão filosófica, sobre a relação entre o cérebro
e a mente. Passando desde o embate entre Sócrates e Demócrito no século V a.C.,
até o advento contemporâneo da neurociência, a trama descreve a viagem de
descoberta do narrador pela história das ideias. Veja mais aqui, aqui e aqui.
REFERÊNCIA
GIANNETTI, Eduardo. A ilusão
da alma: biografia de uma ideia fixa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

-
No principio -, responde Bragi -, aconteceu que os Ases eram inimigos do povo
que é chamado de Vanes, e eles se encontram para debater sobre a paz; os dois
lados pediram garantias, de maneira que as duas facções foram até uma tina e
escarraram dentro. Porem, quando se separaram, os deuses não quiseram que este
penhor de paz se perdesse; tomaram-no e dele fizeram um homem. Ele se chama
Kvasir e é tão sábio que não existe pergunta à qual não saiba responder. Saiu caminhando
por todo o mundo, para ensinar aos homens a sabedoria. Mas quando chegou na
propriedade de dois anões, que se chamam Fjatar e Galar, eles o aprisionaram,
mataram-no e fizeram seu sangue escorrer dentro de duas tias e de um cântaro:
este cântaro chama-se Oderir e as tinas, Son e Bodn. Misturaram o sangue com
mel e disso resultou um hidromel tão especial, que quem o beber torna-se
escaldo ou ságio. Por isso chamamos a poesia de fluxo de Kvasir. E o hidromel
torna-se propriedade do gigante Suttung.
-
Mas como os Ases se apossaram do hidromel? -, torna a perguntar Aegir.
-
A propósito disso - responde Bragi -, existe uma história que diz que Odin saiu
de casa e chegou num lugar onde nove escravos ceifavam feno. Perguntou-lhes se
queriam que ele afiasse suas foices. Aceitaram. Então, Odin tirou de seu cinto
uma pedra de amolar e as afiou. Achando eles que as foices, assim, cortavam
muito melhor, quiseram comprar a pedra de amolar. Mas Odin decidiu que só
compraria a pedra quem oferecesse, por ela, um preço justo; todos aceitaram,
cada um desejando ser o comprador. Então, ele jogou a pedra para o alto; quando
todos quiseram pegá-la, se precipitaram de tal forma que se decapitaram
mutuamente com as foices. Depois disso, Odin foi procurar abrigo, para passar a
noite, na casa de um gigante que se chamava Baugi, irmão de Suttung. Este lhe
disse que estava numa situação difícil: seus nove escravos haviam-se matado uns
aos outros e ele não tinha esperança de encontrar trabalhadores. Odin, então,
disse chamar-se Bölverk, o artesão da infelicidade, e ofereceu-se para executar
o trabalho de nove homens para Baugi, tendo, porém, como salário, um copázio de
hidromel de Suttung.
A
astucia do deus obteve êxito, depois de muitas peripécias:
-
No primeiro trago, esvaziou todo o Odrerir, que abala a inspiração, no segundo
o Bodn, no terceiro o Son. Ele havia, portanto, bebeido todo o hidromel. A seguir,
transformou-se em águia e fugiu, voando tão depressa quanto pôde, mas Suttung,
percebendo a águia em fuga, também se tranformou em águia e voou em sua perseguição.
Quando os Ases viram Odin, que chegava voando, empurraram as tinas para o
recinto. Então, ele chegou em Asgard e tornou a escarrar o hidromel dentro das
tinas; porém, Suttung já estava tão próximo para o agarrar que Odin deixou
escapar uma parte do hidromel, do qual, hoje, ninguém faz questão. Quem quiser,
pode tomá-lo e nós o chamaremos o quinhão dos poetas de pacotilha. Porém o
hidromel de Suttung, Odin o deu aos Ases e aos homens que sabem compor. Eis porque
se chama a poesia de butin de Odin, e seu achado, sua bebida, dom dos Ases e
bebida dos Ases.
FONTE:
LOUTH,
Patrick. A civilização dos germanos e dos vikings. Rio de Janeiro: Otto Pierre,
1979.
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