DORO & A CAPOTADA DO GUARDA - Andei estranhando a ausência de Doro nos últimos dias. Onde andará aquela cabecinha tola? Sumir assim, hem? Carece de cuidados, senão, a coisa sobra pra minha banda e eu não estou a fim de encarar boca de caieira nem tão cedo. Mas que estranhei, estranhei. Logo ele que é achegado a carnaval dar uma desaparecida dessa, tem coisa, tenho certeza que tem coisa. E teve. Pois bem, passada a semana carnavalesca, foi quando vim tomar pé do que ocorrera com o inditoso. Acontece que, como sempre e isso sua alma sebosa jamais se livrará, numa penúria da gota, Doro andava batendo biela, apertando o juízo e procurando a luz no fim do túnel, para não perder, de jeito maneira, de participar do desfile do bloco d´A Onça Cagada, bloco tradicional das puladas e frevadas abundantes da região. Negócio pra cinema mesmo de tanta macacada. É preciso esclarecer, de antemão, que o bloco nasceu de uma lenda. Foi, dizem. Contam de uma senhora de estatura mediana que era casada com um político afamado nas locas e grotões nordestinos, daqueles de deixar um folclore enorme como herança, apenas. Insinuam ter sido ele lobisomem e que, vítima de um ataque de priaprisma, foi enterrado de pau duro nas terras do famigerado. Até hoje, na redondeza, dizem que corre bicho toda sexta-feira de lua cheia. E asseveram que é o coronel Cara de Onça que sai atacando as desavisadas e perdidas. Por causa disso, um mistério encobria a vida diurna e noturna de D. Onça que, segundo dizem, atormentada toda noite pelo defunto tarado do marido, andava a abusar da bebedeira, podendo vê-la quase sempre completamente embriagada. Certa feita, então, D. Onça assumiu cargo importante na administração municipal - um daqueles arrumadinhos de compadrio só para enfeitar o cabide de emprego público -, onde passou a ser requisitada pela sua irreprimível força de tomar providências as mais cabeludas. Se realmente tomava providências, não sei. Mas que a bruaca era virada na capota choca e braba, ah! isso era mesmo! Mulher-macha mesmo, como diziam todos. Num dia lá de confraternização, diz-se que depois das doze badaladas noturnas, a D. Onça fora surpreendida pelo defunto do marido que queria pegá-la a pulso ali mesmo. O que foi? Que rebuliço é esse, hem? Ninguém sabia, só se via a mulher endoidada. Foi um corre-corre, dela findar devidamente cagada na presença de todos. E o pior: ela na festa, nem aí. Desse incidente, poucos dias depois, a mulher morreu e, sabe-se que depois de sua morte, passou a atormentar a vida dos casados, solteiros, viúvos e abestalhados toda sexta-feira de lua cheia. Quem sentisse fedor de bosta na redondeza, tinha de correr porque a Onça Cagada arrastava o sujeito vivinho para uma cova no cemitério para nunca mais saber de notícias dele. Assim é, há anos. Até o dia que inventaram o bloco d´A Onça Cagada em homenagem a tão insólito acontecimento na redondeza. No bloco, como de costume, os homens saem vestidos de mulher; e a mulher, de homem. Tudo com cara de onça e melado de bosta. Aquela fedentina da peste no meio da rua em dia de desfile. Uma tradição de anos. E Doro, como de resto toda a população, todo doido para participar do desfile daquele ano. Mas, cadê saída para comprar a camiseta do bloco e garantir os passos no calçamento no sábado de Zé Pereira? O cabra estava aperreado, tudo na vida dele era um revertério, nada de dar certo nunca. Destá! Depois de cafungar no pescoço de todas as ocasiões, achou ele a saída. Havia um recrutamento sendo convocado pelo banco de sangue, onde o prêmio era um lanche e uma camisa do famigerado bloco, habilitando o apaideguado que fosse, a dar seus pinotes no frevo. Ôxe, ele nem pestanejou, saiu na carreira, sendo o primeiro a chegar no estabelecimento. Prontificado a fazer o que quisessem, aí ele se dispôs a enfrentar o inopinado. Lá chegando, tomou ciência que era um recrutamento para tomar posse na vigilância do citado banco, tendo em vista que da semana que precede o carnaval até a quarta-feira de cinzas, o negócio ali, é correria braba. Eita, pão no queijo. Porém, depois de se vestir a rigor, antes de assumir, ele tinha que fazer a doação de sangue. Fez. Só que, no meio desse ato de solidariedade, ele viu-se secando todo, vendo ir embora a última gota de sua vitalidade. - Ei, d. Maria, eu tô me secando todo, tô vendo as coisa rodando e pareci qui vou arriar mermo!! Ali em pé secando, as enfermeiras acorreram em seu socorro, deitaram-no mais para que se sentisse melhor. Pior, foi aí que ele começou a se agoniar. - Eu vô morrê, dona! Eu vô morrê!! Vôte, foi uma correria. O médico veio, examinou-lo, tirou pressão, fez eletrocardiograma, pintou o sete. O cara, segundo o entendimento do profissional, estava bonzinho da silva e não entendia aquela agonia toda. - Eu vô morrê, doutô! Eu vô morrê!! - O que você está sentido? - Tô sintindo uma gastura ôca aqui pru dento do estombo, uma coisa ruim remoendo pru dento d´eu todo, vô morrê dotô! Vô morrê doutô!!!! - Mas, segundo meus conhecimentos profissionais, você não tem nada, está tudo normal, pressão, batimentos cardíacos, tudo normal, ora. - Vô morrê dotô! Vô morrê, dotô! Daqui a pouco começou a sentir uma inhaca braba, uma daquelas de bosta fedorenta de não ter quem agüentasse. - Ôxe, e o bloco já saiu foi?! Nada, era o Doro todo cagado, lívido, delirando e caindo da maca. - Segura o homem que ele tá endoidando!!! Parou todo o movimento do hospital só para atendê-lo na sua agonia. Resultado: foi dispensado do emprego por completa inaptidão, mas ganhou a camiseta do bloco para satisfazer sua vontade de frevar. Contudo, por causa do injuriamento provocado pelo seu despropósito, num pôde nem botar a cara na porta, vez que uma cambada de enfermeiro fez plantão justo na sua porta, com o fito de angariar doadores para o banco durante todo carnaval. - Isso é uma porra, armei e me dei mal. Num posso nem pular a cerca que os cara tão de vigilança! Me ferrei! Tô freiado. Por causa disso, Doro passou toda semana pré até a quarta-feira trancado dentro de casa para num armar mais seboseira nenhuma pra cima de ninguém. Perdeu o carnaval e só agora deu as caras. Pode? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] qualquer
expectativa de redenção secular, desmancha qualquer esperança teleológica, e,
num lance dialético de extrema ousadia, localiza os sinais da salvação na
própria impossibilidade de regeneração da vida histórica, ou no impossível
esquecimento posterior do seu sofrimento e sordidez [...].
Trecho extraído da obra A ideologia da estética (Jorge Zahar, 1993), do
filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton. Veja mais aqui.
SUPERAÇÃO – [...] também o
coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode
ser engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de
imagens que a iluminação profana nos tornou familiar. Somente quando o corpo e
o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela tão profundamente que todas
as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e
todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões
revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se [...]. Trechos
extraídos da obra Magia e técnica, arte e
religião: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas,
Brasiliense, 1993), do filosofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Veja
mais aqui.
SOBREVIVER - Não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. [...] Nós sobreviventes somos uma minoria anômala
além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos
o fundo. Quem o fez, quem fitou a Górgona, não voltou para contar, ou voltou
mudo; mas são eles, os “muçulmanos”, os que submergiram – são eles as
testemunhas integrais, cujo depoimento teria um significado geral. [...]. Trechos
extraídos da obra Os afogados e os sobreviventes (Paz e Terra, 1990), do
químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987). Veja mais aqui.
ARS POETICA - Um poema deve ser palpável e mudo / Como redondo fruto, / Quieto / Como
velhos vinténs no dedo, / Silencioso como a pedra desgastada / Do batente das
janelas onde o musgo faz morada – / Um poema deve ser sem palavras / Como o voo da passarada. / Um poema deve ser imóvel no tempo / Como a lua
ascende, / Deixando, conforme a lua liberta / Galho a galho árvores pela noite
encobertas, / Deixando, como a lua as folhas de inverno ausenta, / Memória por
memória a mente – / Um poema deve ser imóvel no tempo / Como a lua ascende. / Um
poema deve ser igual a: / Não há. / Por toda a história da dor / Uma soleira
vazia e uma folha de bordo. / Por amor / A relva leniente e duas luzes sobre o
mar – / Um poema não deve significar / Mas ser. Poema
do poeta, dramaturgo e ensaísta estadunidense Archibald MacLeish (1892–1982).
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