SALVE, ELENA – Imagem: estátua de Elena Piscopia
- A delicadeza herdada da infância
no Palazzo Loredan era inspiradora. Herdou da mãe a candura camponesa –
uma servil parideira pro procurador de San Marco. Mesmo assim dedicou-se ainda menina
às lições de latim e grego, chegando à adolescência dominando hebraico,
castelhano, francês e árabe, uma poliglota aos meus olhos enamorados. Agraciada com o Oraculum
Septilingue, logo demonstrava domínio nas áreas da matemática e filosofia. E
eu a via saltitante de felicidade, dividindo comigo suas mais íntimas satisfações
e explosões emotivas. Foi, então, que assumiu o hábito da Ordem Beneditina e,
pra minha felicidade, não se fez freira. Graças, um desperdício da vida tão
bela jovem enclausurada. As suas delicadas mãos de exímia executante enchiam
meus ouvidos com acordes sacados ao violino, à harpa, ao clavicórdio ou ao
cravo. E me embevecia com seu carinho às minhas faces, compondo canções para
embalar-me, quando não lia a tradução que fez do Colloquio de Laspergio,
o que a levou convites surpreendentes de sociedades acadêmicas. Tornou-se afamada
e passou a presidir a Accademia dei Pacifici. Ambicionou a Cornaro em Pádua, mas foi recusada, consentindo-se,
apenas, os estudos em filosofia. Quando menos esperava foi agraciada com a
láurea filosófica. Fiz-lhe companhia em todas as suas palestras e encantava não
só a mim, como aos acadêmicos oriundos de Veneza, Bolonha, Perugia, Roma
e Nápoles. Por horas explanava as teorias aristotélicas, aplaudida com fervor
pelos comparecentes em seus elóquios. Vi-lhe lindamente sorridente expor para
mim a láurea, uma coroa de louros sobre a cabeça, o anel no dedo e a estola de
arminho sobre os ombros – a eternizada cena no meu coração e no Vitral Cornaro,
da Thompson Memorial Library, no Vassar College estadunidense. Admirada por
suas conquistas foi levada a participar de diversas academias europeias,
enquanto devotava aos estudos e à escrita de seus discursos e traduções. Sua
generosidade era manifesta em ações caridosas, até ser surpreendida pela
tuberculose que a levou à sepultura e uma estátua eternizada. Salve Elena
Lucrezia Cornaro Piscopia (1646-1684), a primeira mulher a conquistar um diploma
universitário. Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Costumo dizer que fé é
acreditar na vida, e como amo a vida, procuro fazer dela o melhor, torná-la o
mais serena e alegre possível... Pensamento da atriz e diretora francesa Sandrine
Bonnaire. Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU: Oh, que na religião, como em tudo o mais,
o homem julgasse seu irmão pelo seu próprio coração; e por mais querido e
precioso que sua crença peculiar possa ser para ele, acredite, assim é com a fé
de seu irmão! A Verdade é o sopro vital da Beleza; A
beleza é a forma exterior da Verdade. Pensamento da escritora britânica Grace
Aguilar (1816-1847). Veja mais aqui e aqui.
NÃO TENHO VERGONHA - [...] Eu estava perdida... perdida em um mundo
prático... um enfeite com coração... [...] Os homens foram atrás do meu corpo e eu me ressenti
disso – como todas as mulheres, eu queria ser amada por mim mesma – não apenas
pelo meu corpo. Então,
quando eu tinha certeza de que um homem só estava interessado no meu corpo, eu
estava atrás dele e não fazia diferença quem ou o que ele era. Um
produtor famoso, quando eu era uma grande estrela, me beliscou na bunda quando
eu estava passando pela porta, enquanto dizia: “Vamos tomar uma bebida algum
dia”. Eu tinha certeza de que ele não esperava que eu aceitasse seu
convite. Mas eu tinha planos para ele. Ele tinha uma esposa que era rica e não
gostava que o marido olhasse para outra mulher, muito menos saísse com uma.
Quando eu disse “sim”, ele tentou se esquivar, mas eu o prendi em uma noite
e até fui ao escritório dele para buscá-lo. Ele tentou me convencer a ir a um
“pequeno restaurante charmoso na praia”, o que eu sabia que era apenas para me
manter fora do caminho de sua esposa ou amigos. Insisti que fôssemos ao
Chasen's, ao qual ele era violentamente contra, mas eu estava mostrando
bastante decote e fazendo muitas promessas, então finalmente consegui que ele
fosse, mas tarde da noite, o que foi meu acordo. Você deveria tê-lo
visto olhando furtivamente em volta, esperando que um detetive saltasse das
sebes. Ele estava até gaguejando. Ele só queria jantar logo para poder me
colocar no feno. Ele apenas engoliu o jantar junto com vários uísques
puros. Demorei, aproveitando a comida e a situação. Quando pedi a sobremesa,
pensei que ele fosse desmaiar. Isso significou para ele mais vinte minutos de agonia.
E só para pressionar um pouco mais, passei dez minutos no banheiro feminino.
A coisa cruel que eu fiz foi deixá-lo me levar para casa e depois
dispensá-lo. Mas isso foi muito fácil e rápido. Eu tive uma ideia melhor. Fomos
para minha casa. Tomamos bebidas e eu protelei para que ele chegasse tarde em
casa. Ele estava enxugando o suor da testa – uma combinação de preocupação,
bebida e paixão. Ao amanhecer, fomos para a cama e, a essa altura, ele
estava uma pilha de nervos. É uma maravilha que ele pudesse atuar. Nunca vi um
homem partir tão rápido depois. Minha frase de despedida foi: “Sabe, Jean é uma
boa amiga minha...” Jean era sua esposa e eu a conhecia. Achei que ele
fosse cair da escada. Ele apenas gemeu e saiu. Tenho certeza que durante
semanas depois ele sofreu agonia. E você sabe, aposto que isso o curou de
beliscar bundas. Isso também me lembra que uma garota bonita em
Hollywood, especialmente aquela que está conseguindo bons papéis e que tem uma
carreira a seu favor, recebe propostas de casamento, bem como outras propostas,
várias vezes por semana. A maioria das propostas de casamento são
sinceras. Outros são oferecidos como isca para você ir para a cama. Como ou por
que um homem promete casamento a uma garota que conhece há uma hora sempre foi
um enigma para mim. Eu diria que uma mulher é como um iceberg. Apenas
uma fachada aparece. O resto está escondido e leva meses, até anos, para
descobrir os mistérios do que está por baixo. Juro, uma vez por semana seis
homens me pediam em casamento! Eles apenas pedem para serem levados – com as
leis de propriedade comunitária da Califórnia. Eu tinha um ódio profundo por
homens que usavam uma proposta de casamento para colocar uma garota no feno. Se
eles tivessem sucesso, você não conseguiria nem falar com eles por telefone. Numa
época em que eu estava amargurado por causa de uma carreira em declínio (acho
que porque estava bebendo demais e não prestando atenção nas pessoas certas),
criei uma causa para prender esses bastardos na parede. Lembro-me de ter
acabado de tirar uma foto com um homem gentil e gentil, Gary Cooper. A foto era
Dallas, que foi muito bem. Foi realmente o contraste entre Cooper e este salto
que me motivou. Foi no American Room do Hollywood Brown
Derby. Ele era um
ator que estava crescendo rapidamente. Os rumores eram de que ele era casado
com uma jovem estrela. Ele negou. Muito mais tarde, descobriu-se que era
verdade. De qualquer forma, esse salto veio até a área da poncheira da sala e
enquanto conversava comigo apertou minha mão e me olhou nos olhos com seu olhar
dito “irresistível”. Ele sugeriu uma viagem até a praia. Ele pensou que estava
me guiando – mas era eu quem estava fazendo as manipulações. Dirigimos até a
praia e estacionamos em Dead Man's Point. Ele não fez nenhum passe. A abordagem
dele era mais sutil. Primeiro ele me contou a história de sua vida. Fato ou
ficção, ele contou bem. E foi uma boa história. A história chegou a uma
conclusão – que toda a sua vida foi direcionada para este momento, conhecer uma
garota como eu. E ele não ia me deixar escapar, não facilmente, claro. Aí veio:
“Bárbara, quero que você seja minha esposa. Eu te amo e este é um momento
mágico. Dê-me a honra de se casar comigo. Decidi jogar direto. “João, eu também
te amo. Eu concordo em ser sua esposa. Quando nos casaremos? Eu o peguei um
pouco de surpresa. Ele estava acostumado a convencer uma garota depois de um
período de tempo. "Oh . . . que tal na próxima quarta-feira? "Que tal
hoje à noite?" Eu retruquei. “Poderíamos simplesmente acordar um Juiz de
Paz e dar o nó, e depois divulgar a história aos jornais. Teríamos muito
espaço.” Eu sabia que ele não iria gostar disso. “Você não acha que isso é um
pouco rápido? Que tal neste domingo? “Não é uma má ideia”, eu disse. Ele se
animou. “Mas vamos ligar para os jornais imediatamente!” Eu disse, sabendo que
ele não aceitaria isso. “Vou te dizer uma coisa”, disse ele. “Casaremos no
domingo e divulgaremos a história no sábado.” Foi apenas uma armadilha.
Passaríamos esta noite juntos de forma agradável e aconchegante e então ele
começaria uma briga e o casamento acabaria. Eu me tornei muito sábio com os
lobos. Conversacionalmente, não havia muitos lugares onde ele pudesse ir com a
minha verificação de seus modos reais. Achei que ele recorreria a um beijo
romântico. Não apaixonado – apenas um beijo de amor. E ele fez. Apenas um leve
toque nos lábios sem braços. “Querida”, disse ele. “Somos ambos pessoas
ocupadas. Levaremos pelo menos alguns dias para colocar nossos assuntos em
ordem. É um grande passo. Eu te amo e sinto que você me ama. O que são alguns
dias de espera, se for preciso? “Querido,” eu disse, ainda sendo honesto. “Eu
simplesmente não quero esperar. Podemos dirigir pela costa. . . e se casar em
uma cerimônia simples.” Eu o mandei parar. Eu me perguntei o que ele iria
inventar agora. “Vou te dizer uma coisa”, disse ele. “Vamos fazer isso amanhã à
noite.” Balancei minha cabeça negativamente. “Espero que você não pense que sou
teimoso, mas fico assim de vez em quando.” Coitado, eu o amarrei com nós. Eu
sabia o que estava por vir. Foi sua única jogada. “Bárbara, sou louco por você.
Eu só quero estar perto de você – intimamente. Esqueça todo o resto – só você e
eu no mundo.” Ele me beijou apaixonadamente. “Então podemos conversar sobre
casamento. Talvez decidamos no sábado ou domingo. Eu conheço exatamente o
local. Fica a apenas alguns quilômetros da costa. O que você diz?" Eu
deveria ter rido alto, mas não o fiz. “Eu gostaria”, respondi. “Mas eu me
sentiria muito mais seguro se nos casássemos primeiro. Não é uma reação típica
de uma garota?” Ele estava começando a ficar nervoso e até um pouco irritado. “Você
não confia em mim?” ele perguntou piedosamente. “Se eu disser que nos
casaremos, você pode apostar seu último botão nisso. Apenas acredite em mim. Sim.
Isso foi tudo que tive que fazer – como todos os outros. Eu acabaria em um
riacho de merda. Mas eu estava me divertindo demais para ficar com raiva. “Eu
confio em você – claro que confio. Mas, com uma estrela e tudo, tenho que ter cuidado.”
“Claro que sim”, ele respondeu. “E eu direi a você o que faremos. Ligaremos
para Louella ou Hedda e contaremos nossos planos de casamento. Isso faria você
se sentir melhor? Eu também fui sábio nessa jogada. Anunciávamos nosso
casamento e, algumas horas depois, ele ligava e dizia que mudamos de ideia. “Querido,”
eu disse, deixando minha verdadeira face aparecer. “Isso tudo está começando a
me entediar. Se você quer se casar comigo, vamos nos casar agora mesmo e se não
quisermos, por favor, me leve para casa.” Na verdade, eu não teria me casado
com ele nem por um milhão de dólares. Eu esperava que ele agora ficasse com
raiva. Mas ele não o fez. Ele agiu magoado. "Ok, se é isso que você quer,
então vamos." Ele ligou o carro. Fiquei em silêncio. Depois que ele
dirigiu por um tempo, percebi que estávamos indo na direção errada para minha
casa. Chamei a atenção dele para isso. Ele era obstinado. “Eu só queria mostrar
a você o adorável refúgio de que estava falando. Tomaremos uma bebida e depois
iremos embora. Por mim estava tudo bem. Foi divertido dar-lhe bastante corda. Ele
insistiu que tomássemos nossas bebidas em uma suíte da Band House, um lindo
lugar de férias à beira-mar. Parei em um drinque e não tomei outro, mas ele
bebeu. Agora estávamos chegando ao alicerce e à honestidade. Ele me olhou
diretamente nos olhos. “Seu filho da puta”, disse ele. “Você vai tirar a roupa
e deitar naquela cama ou não? Já estou farto desta merda. Quem diabos você
pensa que é? Eu já tinha passado por esse tipo de coisa antes. Eu não estava
com medo nenhum. Sorri e disse: “Quem eu devo ser para dizer 'não' para você,
uma doninha mentirosa, estupradora de meninas? Na verdade, é com grande prazer
que lhe digo que prefiro morrer a que você me toque. “Talvez você esteja”, ele
respondeu melodramaticamente. Levantei-me, joguei uma estola sobre os ombros e
fui em direção à porta. Eu sabia que poderia pegar um táxi se ele decidisse
ficar para trás. Ele bloqueou meu caminho até a porta e disse: “Onde diabos
você pensa que vai?” “Para casa”, eu disse baixinho, “e saia do meu caminho. E
se você não fizer isso” – peguei uma garrafa – “você vai desejar ter feito
isso.” Ele era um covarde e recuou. Ele sabia que eu usaria. A briga explodiu
dentro dele e ele disse: “Vou te levar para casa”. Por mim estava tudo bem. Não
conversamos durante todo o caminho para casa e ele me deixou sair do carro sem
sair. Esse foi o fim de tudo. Mais tarde, ele se tornou uma estrela, por isso
não posso nomeá-lo. [...]. Trechos da obra I Am Not Ashamed
(Holloway House Pub Co, 2004), da escritora e
atriz estadunidense Barbara
Payton (1927-1967). Veja
mais aqui.
A FILHA DO TINTUREIRO - [...] Primavera - que pressa. Cada lugar parece
estar pedindo que isso aconteça. Se atrasar um pouco a sua chegada, a luz
do sol desaparece e a terra vira pedra. Especialmente as árvores não podem durar
nenhum atraso. Deixe a primavera demorar, mesmo que
brevemente, e muitas vidas serão perdidas [...] A vida é disso que se trata: você
está ocupado, eu estou ocupado e o resultado final é a morte. Mais cedo ou mais tarde, é isso que acontece. [...]. Trechos extraídos
da obra The Dyer's Daughter: Selected Stories of Xiao Hong (The Chinese University
of Hong Kong Press, 2005), da escritora chinesa Xiao Hong
(1911-1942). Veja mais aqui e aqui.
PARA USO DIÁRIO - Se a vida
não fosse tão insubstituível \ talvez ousássemos utilizá-la.\ Porém arrumamo-la
na prateleira\ como um vistoso par de sapatos\ que é bonito de se ver\ mas não
para uso diário.\ Assim, continuamos por aí sentados \ numa expectativa
descalça. Poema da escritora e tradutora sueca Margareta Ekstrom (Sigrid Margareta
Ekström - 1930-2021).
LIÇÕES OUTRAS ESTUDADAS
UMA LENDA HINDU – Uma velha lenda hindu relata que houve um
tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto da sua
divindade que Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o
poder divino; resolveu escondê-lo num lugar onde seria absolutamente impossível
reencontrá-lo. Mas o grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma
convocou então um conselho dos deuses menores para resolver o problema: “Enterremos
a divindade do homem na terra”, foi a primeira ideia dos deuses. “Não, isto não
basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la”, respondeu Brahma. Então os deuses
retrucaram: “Então joguem a divindade no fundo dos oceanos”. Mas Brahma não
aceitou a proposta, pois achou que o homem um dia iria explorar as profundezas
dos mares e a recuperaria. Então os deuses menores concluíram: “Não sabemos
onde escondê-la pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa
alcançar um dia”. Então Brahma pronunciou: “Eis o que vamos fazer com a
divindade do homem: vamos escondê0la na maior profundeza dele mesmo, pois é o
único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la”. Desde esse tempo, conclui a
lenda, o homem fez a volta da Terra, explorou, escalou, mergulhou e cavou, em
busca de algo que se encontra nele mesmo. (Recolhido de Pierre Weil, O novo
paradigma holístico: ondas à procura do mar. In: BRANDÃO, Dênis; CRENA,
Roberto. O novo paradigma holístico: ciência, filosofia, arte e mística. São
Paulo: Summus, 1991). Veja mais aqui.
NOS
DIAS DE HOJE – Ouvindo Cartomante, da dupla Ivan Lins & Victor Martins,
paro pra pensar na frase “Nos dias de hoje...”, em que o professor doutor em
matemática que atua em diversas universidades dos EUA e é pró-reitor da Unicamp,
Ubiratan D´Ambrosio, no seu texto A ciência moderna em transição conceitual, dizia
ser “[...] para manipular grupos de indivíduos, conduzindo-os a participar,
individual e coletivamente, ativamente ou por consentimento passivo de atos de
violência da maior barbárie, tais como o genocídio e a tortura física e mental,
em dimensão e intensidade jamais imaginada em gerações anteriores, e que
representam vergonha e culpa para cada geração. Meios inimagináveis de
violência utilizam sofisticados avanços científicos e tecnológicos. E, talvez,
o mais chocante dos resultados, uma destruição paulatina de inúmeras formas de
vida no planeta, está ocorrendo em nome de algo confusamente chamado progresso.
Aumenta-se a produção agrícola e se produzem desertos, buscar-se regular os
regumes fluviais e se provocam dilúvios, consome-se a seiva fóssil e
favorecem-se reações sísmicas. Sistemas escolares mantidos para estimular e
desenvolver a criatividade facilitam o aparecimento de sistemas marginais, que
acolhem crianças frustradas e angustiadas e as encaminham para manipulações
criminosas. Sistemas econômicos concebidos para uma melhor distribuição de
riquezas, para uma repartição igualitária dos frutos do trabalho coletivo, vêm
reforçar desigualdades e injustiças, gerando e estimulando mecanismo de
exploração do homem pelo homem e elevando o dinheiro a uma posição de poder
absoluto. A mídia nos cerca de ilusões e fantasias, e princípios e ideologias
são criados para justificar e propor explicações, numa tentativa de não nos
deixar reconhecer um mundo infeliz, inseguro, injusto. Ao chegarmos a um
semáforo, esperamos que a luz esteja verde para não sermos assediados por
crianças de sete ou oito anos que vendem limão ou simplesmente pedem esmola,
num país em que a educação primária, de oito anos de duração, é compulsória e
obrigação do Estado. Mas se o sinal está melhor, imediatamente fechamos o vidro
e olhamos para o outro lado, numa tentativa de nos isolarmos e não
reconhecermos uma realidade suja e feia. E, ao retornarmos a viagem, vamos cinicamente
para nossos escritórios de trabalho, onde apoiaremos uma emenda constitucional
que estabelece o limite de catorze anos como idade mínima de trabalho do menor.
Nesse meio de cinismo, de ignorância da realidade como ela é, e de falta de
visão global dessa mesma realidade, o que chamamos progresso vem se instalando
nas nossas sociedades. Todas essas manifestações de estupidez de nossa espécie estão
amparadas por esquemas racionais e científicos, estruturados mediante conhecimento
especializado, fragmentado e focalizado em apenas um ou, quando muito, em
alguns poucos inúmeros parâmetros que compõem a realidade,c om absoluta ignorância
de uma visão global dessa mesma realidade e mesmo com desprezo por essa visão. Os
sucessos e resultados dessa análise de aspectos da realidade, amarrados e
estruturados em esquemas em si muito elaborados, têm impedido reconhecer a
limitação e a parcialidade desses enfoques, e o próprio aparecimento das
disciplinas, talvez a invenção mais fundamental e mais característica da ciência
moderna, deu origem ao afastamento da realidade em toda a sua plenitude”. No
meio desse caos todo em que vivemos, o psicólogo norte-americano Carl Rogers (1902-1987),
nos deixa pro discernimento: “Estamos enfrentando uma combinação de mudanças
paradigmáticas que podem ser mais poderosas do que qualquer coisa que o mundo
tenha visto antes. As possibilidades, tanto para a ruptura como para vida
criativa, são enormes”. Veja mais aqui.
EVITANDO
O APOCALIPSE – O biólogo e médico austríaco Konrad Lorenz, considerado o pai da
Etologia e laureado com o Nobel de Medicina em 1973, dá a dica de como
evitarmos o apocalipse que nos ronda na atualidade: “Para evitar o apocalipse
que nos ameaça, é necessário justamente nos adolescentes e nos jovens sejam
despertadas novamente as sensações valorativas que lhes permitam perceber o
belo e o bom, sensações essas que são reprimidas pelo cientismo e pelo
pensamento tecnomorfo [...]. Um contacto tão intimo quanto possível com a
natureza viva, tão cedo quanto possível na vida das crianças, é um caminho
altamente promissor para que se atinja esse objetivo” (Konrad Lorenz, A
demolição do homem: crítica à falsa religião do progresso. São Paulo:
Brasiliense, 1986). Veja mais aqui.
HEIDEGGER E A PSICOLOGIA – O filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976), foi aluno e discípulo do fundador da fenomenologia,
Edmundo Husserl, e do culturalista neokantiano Heinrich Ricket, é autor de
diversas obras de importância máxima, a exemplo do “Ser e Tempo” e “Introdução
à Metafísica”, entre outras. Em “Ser e Tempo” ele entende que o sentido da
pergunta pelo ser foi perdido e caiu no esquecimento após as indicações de
Platão e Aristóteles, formulando a sua Teoria do Ser que tem por propedêutica a
analítica da existência humana, introduzindo o método fenomenológico do Dasein, a essência humana que consiste em
sua existência na possibilidade de realização. Por conseguinte, para o filósofo
o ser e o estar no mundo é a determinação fundamental do Dasein: o mundo, o ser do existente e o ser em ou no mundo –
revelando as dimensões do tempo, o futuro, o presente e o passado. Para ele, o
mundo não é uma soma de objetos, mas uma totalidade implícita nas coisas que o
compõem. Apesar das criticas de quase incompreensibilidade de sua linguagem
filosófica, do artificialismo das suas etimologias, do seu anti-humanismo e das
decorrentes atividades políticas do pensador, Heidegger é considerado, por seu
inegável esforço profundo na análise ontológica da existência, influenciando
sobremodo muitos pensadores, a exemplo de Jean-Paul Sartre. O presente estudo
está voltado para identificar a sua contribuição à Psicologia, objetivando por
meio de uma revisão da literatura, observar de que forma o Dasein e todo o seu pensamento fenomenológico contribuiu para o
desenvolvimento da ciência psicológica. O EXISTENCIALISMO HEIDEGGERIANO - O
existencialismo heideggeriano, segundo Padovani e Castagnola (1978), é
concebido a partir da filosofia do finito, ao defender que não é a essência que
dá significado à existência, mas o contrário, uma vez que a existência é
possibilidade que adquire uma essência. Ele compõe sua filosofia a partir da
condição inicial do existente humano, o estar-no-mundo, o Dasein. E se firma na angústia que é a experiência radical do nada
de todas as coisas. A teoria ser no mundo, segundo Heidegger (1989), aparece
como ontologia fundamental na investigação fenomenológica, buscando as
essenciais determinações do ser dos entes: "o ser é sempre o ser de um
ente", ou dasein, o ser do
homem. Essas ideias foram importantes para a psiquiatria. Para Almeida (2014,
p. 19) Com Heidegger é que temos a criação da filosofia existencial em nosso
século e ainda sua junção com a psicologia e a psiquiatria. A ontologia
heideggeriana é de que o homem é um ser no mundo onde o homem tem sua
existência por ser–no-mundo e o mundo tem sua existência porque há um ser para
revelá-lo. O que nos leva a perceber a unicidade do ser e do mundo. Segundo
Barbosa (1998, p. 42), a “Grande parte da importância do pensamento de
Heidegger consiste em ter ele problematizado o ser-em da existência humana”. Assim,
Heidegger, conforme Chauí (1979) vai abordar o problema do ser empregando o
método fenomenológico de Husserl, levando-o a colocar como ponto de partida de
sua reflexão aquele ser que se dá a conhecer imediatamente: o próprio homem. Heidegger
(1989) abandona a intencionalidade e a consciência ao criticar Husserl e sua
fenomenologia transcendental, buscando essência da consciência, insatisfeito
com a metafísica husserliana: Dasein deve substituir 'sujeito' ou 'eu'.
O termo Dasein, nessa perspectiva, refere-se ao existir humano que se dá
como um acontecer (sein) que se realiza aí (Da), no mundo, sendo o próprio
existir que consitui o aí em que se dá a existência. Nesse sentido, tendo-se em
vista a "finitude" humana, a temporalidade e a historicidade serão
fundamentais na análise heideggeriana do Dasein. INFLUÊNCIAS E
CONTRIBUIÇÕES HEIDEGGERIANAS – Numa revisão efetuada a partir de Farias (1988),
Fédier (1989), Loparic (2003), Pessanha (2003), Safranski (2000) e Duarte
(2001), encontrou-se que Heidegger tornou-se, ao mesmo tempo, um ícone do
pensamento do século XX por sua filosofia complexa, além de centro de
escândalos por seu engajamento ao nazismo. Contudo, Queiroz (2005, p. 30)
destaca o Dasein do pensamento
heideggeriano, observando que: A Ontoterapia, com sua visão global do homem,
aberta aos domínios do corpo, da alma e da espiritualidade, funda-se,
principalmente, neste cuidado do ser. O cuidado reveste-se de dúplice forma.
Pode-se falar do auto-cuidado e do hetero-cuidado. É o próprio Heidegger, na
obra Ser e Tempo, que afirma que o Dasein ocupa-se essencialmente desse próprio
Dasein, ao mesmo tempo em que este é determinado como um ser – uns com os
outros original. Por isso o Dasein ocupa-se sempre também com os outros. Dá-se,
segundo o autor mencionado, que a ontoterapia faz uso do cuidado de duas
maneiras: cuidar de si e cuidar do outro, ou seja, preocupar-se consigo mesmo
e, da mesma forma, preocupar-se em cuidar do outro. É esse pensamento solidário
que vai possibilitar a identificação das inestimáveis contribuições de
Heidegger à Psicologia. Dessa forma, para a Psicologia, segundo Sebit (2012),
Heidegger exerceu importante influência por ter buscado nas suas ideias a nova
perspectiva para a colocação dos problemas humanos, da questão do conhecimento,
da ciência e da técnica, contribuindo, assim, não só com essa área do saber,
como também com a sociologia, teologia, ecologia e educação. A contribuição
inaugura – via fenomenologia do Dasein - a assim chamada fenomenologia
existencial, base de escolas e linhas de pensamento contemporâneas em
psicologia, psiquiatria, psicoterapia e psicopatologia, ainda que ele mesmo não
se definisse como existencialista, no sentido de não pertencer ao
Existencialismo enquanto movimento. Além disso, observa-se a aproximação da
analítica do Dasein de Heidegger com a clínica - psiquiátrica ou
psicológica - psicoterapêutica. A esse respeito, destaca Almeida (2014, p. 22)
que: [...] a psicologia existencial pode ser definida como uma ciência humana
que emprega o método da analise fenomenológica. Uma das principais
particularidades da psicologia existencial em relação aos outros sistemas
psicológicos se da pela oposição a aplicação do conceito de causalidade das
ciências naturais aplicado as ciências humanas e especificamente à psicologia.
Esse ser no mundo é o que vai marcar a operação de univocidade entre sujeito e
objeto restaurando a unidade entre o homem e o mundo, mundo este marcado por
três aspectos: as regiões fisiobiologicas, o ambiente humano e aquele no qual
se acha a pessoa e seu eu, incluindo o corporal. A psicologia existencial que
surgiu da filosofia e que desta guarda e mantém estreitas relações, teve grande
repercussão sobre a teoria e à pratica da psicologia como um todo, fazendo
surgir outras técnicas e pontos de vista tanto em campos do aconselhamento como
da psicoterapia. Marca uma função de seguir as coisas em si mesmas na
orientação de não se deixar perder no seu relacional, em seu contato com a
experiência e ao cotidiano. Sua contribuição, conforme Barbosa (1998), se deu
no campo da psicopatologia com o reconhecimento da enfermidade como um modo ou
estilo particular de ser no mundo, a partir da utilização do método
fenomenológico de reflexão com o objetivo de alcançar a essência da enfermidade
por meio de suas manifestações concertas. Havia, então, o entendimento de que a
enfermidade é uma distorção da estrutura do ser no mundo. Por isso, Barbosa
(1998) observa que o sintoma, enquanto estilo
de ser, encontra-se também no normal, ou no doente não apenas enquanto
doente, e essa constatação permite compreender melhor o sentido da doença. Por
consequência, a terapia é o ato de levar o doente a ver como está constituída a
estrutura total da existência humana (ou ser no mundo), trazendo-o de volta. Além
disso, registra Sebit (2012, p. 55) que: Diversos psicanalistas, psicólogos e
psiquiatras desenvolveram teorias a partir de Heidegger e dos pensadores
existencialistas. Entre estes, podemos destacar a obra de Viktor Frankl, Rollo
May, Maslow, Carl Rogers, Allport, Erich Fromm e Buhler. Além desses, Ludwig
Binswanger e Medard Boss foram daqueles que buscaram mais diretamente as
consequências do trabalho de Heidegger para a psicoterapia e procuraram
empregar na compreensão clínica os conceitos fundamentais elaborados por esse
filósofo, embora se afastando dele em alguns casos e aspectos. Em vista disso,
destaca Feijoo (2014) que é a dimensão da existência heideggeriana que vai
possibilitar o desenvolvimento da psicologia sob a perspectiva
fenomenológico-existencial. O percurso psicoterapêutico vai se dar de modo que
o psicoterapeuta possa assumir o lugar de mensageiro do discurso do cliente,
num processo mútuo de corresponder e desprender, tal como entendido por
Heidegger em sua perspectiva ontológica. Mattar e Sá (2014), por sua vez,
registra que Heidegger propôs aos psiquiatras e psicoterapeutas participantes a
suspensão do olhar científico-natural, em que foram formados, para que pudessem
ter acesso a uma atitude fenomenológica de atenção à realidade. A contribuição
de Heidegger, segundo Moreira (2010) e Feijoo (2014b), está na psicoterapia de
inspiração daseinsanalítica, pensando tanto no dualismo
subjetividade/objetividade como na intersubjetividade que envolve o dualismo
sujeito/sujeito. É que na perspectiva existencial a visualização do
comportamento como atitude geral, como movimentação total da existência em um
mundo. A esse respeito, assinala Feijoo (2014, p.11), que: [...] o
psicoterapeuta de inspiração daseinsanalítica: 1)Ajuda como aquele que trata do
modo de existir e não do funcionar do homem. 2)Liberta o homem do
aprisionamento por tomar-se como um ente cujo modo de ser é simplesmente dado,
esquecendo-se de sua condição de liberdade enquanto existente. 3)Facilita que
as experiências se tornem presentes, sem condicioná-las causalmente ao somático
ou ao psíquico, deixando ser o que a própria experiência revela; 4)Está atento
às indicações, suspende a verdade postulada pelo senso comum, pela ciência e
pela psicologia científica, permitindo que o fenômeno seja reconhecido como uma
simples relação com o mundo; 5)Busca conduzir o homem a si mesmo,
possibilitando a livre relação com aquilo que o encontra, apropriando-se destas
relações e deixando-se solicitar por elas. 6)Relaciona-se através do modo de
cuidado denominado por Heidegger como “antecipação libertadora”, que devolve o
outro a si mesmo, liberando-o para seus modos próprios e singulares de ser.
7)Sustenta sua atenção na serenidade, estranhamento, aceitação e compreensão. Mediante
o exposto, sintetiza Roeche (2012) que o trabalho de Heidegger assume
importância por sua utilização na Psicologia sob os nomes de psicologia
fenomenológica, psicologia existencial e, em menor escala, hermenêutica e
psicologia humanista. Sua importância é também destacada por Mattar e Sá (2014)
ao considerar que na época contemporânea, em que as demandas de sofrimento
existencial, endereçadas à clínica psicoterápica, cada vez estão mais
relacionadas ao nivelamento histórico do sentido ao que pode ser computado no
cálculo global de exploração e consumo, é imprescindível, para que a
psicoterapia possa se constituir em um espaço de reflexão crítica propiciador
de outros modos de existir, que ela própria não permaneça acriticamente
subordinada a esse mesmo horizonte histórico de redução de sentido. CONCLUSÃO –
Muitas controvérsias permeiam os mais diversos debates acerca do homem e do
pensamento de Heidegger. Distinguindo-se o homem da sua obra, ficou mais que
evidenciada a contribuição heideggeriana às práticas psicoterápicas, notadamente
a desenvolvida pela psicologia fenomenológica-existencial. Veja mais aqui e
aqui.
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Fandango do vai quase num torna & Cícero Dias aqui.
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Basinger, A mulher que reina & O Lobisomem Zonzo aqui.
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