TRÍPTICO DQP:
Noite abissal... – Ao som de Rosa dos ventos, de
Chico Buarque, no show ao vivo Abraçar
e agradecer (Biscoito Fino, 2016), da turnê comemorativa dos 50 anos de
carreira de Maria Bethânia. – As luzes distantes, a meia lua quase
minguante no que podia ser o zênite da minha solidão, estrelas perdidas e um
quase desânimo, o que seria. O peso das pálpebras e dos anos no muque, no peito
de nenhumesperança ainda pode ser amanhã e o que estiver por vir, nunca se
sabe. Se Jacques Rancière me
diz um tanto inaudito: Tudo é rastro,
vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante.
Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua
história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece,
assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas. E eu entre estereótipos e os quadrados, quem pode ou não, quem degenerado no meio
da multidão e nas cenas de Mandabi (1968),
de Ousmane Sembène que insistia em
dizer ao meu ouvido: O homem quer viver
pela ideia que existe algo mais importante que ele mesmo, algo maior que ele
mesmo. Ele precisa ter um sonho pelo qual possa viver, um sonho que ele possa
se agarrar. Era a lição para falar qualquer brasil dos tupis que poucos
sobreviveram. E não tivesse mais que a lição da antropóloga argentina Rita Segato: Porque nós aqui estamos diante de um culturalismo perverso, que nada mais é
do que o fundamentalismo da cultura política do nosso tempo, inaugurada com a queda do muro de Berlim e a obsolescência do
debate marxista, quando identidades, agora politizadas, tornaram-se a linguagem das
disputas. Eu sei, no meu país a dor da noite abissal é
muito maior.
Quase sinuca de bico... – Imagem: arte da artista Marianne Peretti. - A
hora avança e não tenho para onde ir nem em que acreditar: o meu país é uma
gangorra entre a indecência e tudo de araque no maior dos porres de pirlimpimpim,
jeitinho sem-vergonha. A filosofescritora estadunidense Christina Hoff Sommers: A verdade trazida à luz
do público recruta o melhor de nós para trabalhar pela mudança. Por outro lado, mesmo a
"nobre mentira" mais bem intencionada acaba desacreditando a melhor
das causas. E para
quem entre crédulos das manadas sequer sabem de antinomias nem de oxímoros,
muito menos do que se dissipa na cara lisa dos engravatados prestidigitadores
fedestaducipais e dos cafundós do cipopau. Só me restava aquela do poeta &
dramaturgo polonês Juliusz Słowacki (1809-1849): Sou grande, forte. A única fraqueza é guardar segredos no coração. A
tristeza é um livro sábio que se tem no coração e que nos diz centenas de
coisas - impede-nos de apodrecer como um cogumelo debaixo de uma árvore. Antes que
tudo se vá, eu sei: o meu país é um buraco sem fundo e todos em queda livre...
Só restava o absurdo... – Imagem: arte da exposição Construções Poéticas (2012), do artista intermídia,
escritor e professor espanhol Julio Plaza (1938-2003), ao som do
álbum Resumo da
Ópera (Independente, 2021) da cantora e compositora Dani Carmesim. –
Ela sempre reaparece, não sei quando nem
como, do inopinado. Sequer notara de repente uma das bonecas da atriz,
bonequeira, cantora e bibliotecária Maria Oliveira, aquela mesma que
fundou a Cooperativa Teatral Boca de Forno, agora na Companhia Artística
Mamulengos e Catrevagens (2000) e figura no Catálogo
do Mamulengo Pernambucano (Funcultura, 2019), de Romildo Moreira, Fabio
Caio, Alexandre Albuquerque e Hans Von Manteuffel. Pois é, astúcia demais. Só a
descobri por conta do choramingado. Sim, vivinha da silva, uma boneca falante e
chorosa no meu sonho mamulengo. Coitando de mim... Acho que estou
variando de vez! Ao me aproximar ela disse da sua solidão, das coisas que
perdeu e tudo o mais. Uma hestória e tanto! Quase não consigo tornar a vê-la
além do que realmente era: tragédias, perseguições, traquinagens, perdições. Até
conversa para boi dormir. Pois foi: contou coisas de outro mundo, e dos últimos
dias dos que se acabaram e das coisas dos que estão longe demais que nem dá
direito para imaginar. Quando nem bem amanhecia, já sonolento, ela me recitou
um verso da poeta italiana Chandra Livia Candiani: O rosto é muito solitário, / então
está sempre de frente /e invisível para si mesmo. Admirei-me, era a própria em carne viva com outro
verso: Eu acaricio o silêncio. O silêncio
– que você me manda – você. Ah! Não podia imaginar: o que resta da loucura
é apenas viver. Inté mais ver.
Transmitir é retomada, vida, invenção e renovação, um
modo sem o qual o pensamento revelado, ou seja, o pensamento autenticamente
pensado, não é possível.
Trecho extraído da obra The Burnt Book: Reading the Talmud ( Princeton University Press, 1998), do filósofo e
biblioterapeuta francês Marc-Alain
Ouaknin. Veja mais dele aqui. Mais Educação aqui. E mais aqui.