TRÍPTICO DQP:
Assim como a noite, também vai o dia... - Ao som da Suíte Nordestina, com o maestro Duda do Recife
e a Orquestra Experimental de Repertório, no lançamento do álbum Arranjadores (Memória Brasileira, 1997), no Theatro Municipal de São Paulo, em 11 de agosto de 2012. - Alguns anos atrás a situação estava clara e era improvável que um fato adverso
ocorresse. Até fiz coro com os que também tinham a segurança que não
aconteceria nada que pudesse atrapalhar a desenvoltura pálida tanto quanto
teimosa da nossa incipiente e mal-amada democracia. Só que o improvável aconteceu:
um duro golpe parlamentar bem tramado com a acoloiada geral da imprensa,
Judiciário e outras nefastas forças até então ocultas. Quase perdi a crença em
tudo, um fiapinho de esperança trazia deveras algum alento. Os anos se
passaram, veio a desgraceira dupla: a pandemia
e o Fecamepa do Coisonário. Uma desgraça nunca vem sozinha, sabia desde pirralho. Por
isso mesmo agora a proximidade me faz mais que descrente, orelha em pé: o
iminente e à espreita. Era eu menino quando ocorreu o Golpe de 1964. Todo dia
minha casa era invadida por um batalhão que marchava pelos corredores,
revirando quartos, salas e quintal. Foi muito jovem aprendi o que dissera Anthony
D’Angelo: As coisas mais importantes na vida não são coisas. Toda minha
juventude se esvaíra com a dedicação à luta por um país melhor. Quantos sonhos,
tantos desenganos. E eu insistia recitando trechos dos versos de Emma Lazarus: Dai-me os seus fatigados, os seus pobres, / As
suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade / O miserável
refugo das suas costas apinhadas. / Mandai-me os sem abrigo, os
arremessados pelas tempestades, / Pois eu ergo o meu farol junto ao
portal dourado... Entoei
noitedia a minha Nênia de Abril,
sabia: Sou
um poeta obscuro. Os meus companheiros são poetas
obscuros, nosso país é o amor subterrâneo em sagração de interiores catedrais... Toda minha vida aos sobressaltos, sabia: se cochilasse cairia não
só o cachimbo como toda a dignidade. Não tenho a mínima ideia do que será daqui
para diante, nem o que está por vir, sei da indagação de Arhur Danto: Ou toda a
distinção entre arte e realidade caiu por terra?... Deve-se creditar à teoria antiga
o mérito de ter compreendido corretamente a relação entre arte e realidade... Com a vista aguçada neste tempo impenetravelmente espesso de
insegurança, apesar de diáfano na minha ideia, não concilio o sono nem posso
negligenciar o perigo: assim como a noite, também vai o dia...
O papagaio
do Azor de Aunnilon... – Imagem da
artista estadunidense Sarah Sze. - A
jovem Sileta era muda como os demais habitantes daquela ilha. Era a irmã mais
jovem do príncipe Azor de Aunnilon. Um belo dia deparou-se com um pássaro para
ela desconhecido. Quem era? Um papagaio que era dos sobreviventes de um
naufrágio ali perto e que dormiam na praia: Zelindor e sua irmã Zelinda. Ambos foram bem
recepcionados juntamente com o seu animal de estimação tagarela. Pois, o papagaio
falava e muito, e ela, nada entendia.
A ave então, paciente e dedicadamente amável, ensinou-a o dom da palavra. O
aprendizado durou muito tempo e ao se expressar, ela pediu àquela adorável criaturinha
que ensinasse aos demais ilhéus. Assim procedeu de forma admirável e cativante
na alfabetização de cada um dos moradores dali: um ensino cheio de amor. Concluída
a incansável tarefa, ela reuniu a todos e manifestou publicamente
sua paixão recolhida, formalizando ali mesmo e naquele momento, o desejo de
contrair matrimônio com a querida ave. Diante de todos, ela tomou o amado entre
as mãos e o beijou. Deu-se, então, o inesperado: o papagaio desencantou
tornando-se o príncipe humano que sempre fora. A ovação foi geral! Decidiu-se,
então, como prêmio pela dádiva, a
construção de uma pirâmide encimada por enorme estátua do papagaio. (Releitura
de trecho da obra Azor ou
o Príncipe Encantado: uma nova história para servir de crônica para a da Terra
dos Papagaios (Valente , 1750), do
escritor francês Pierre-Charles-Fabiot Aunillon (1685-1760).
Proseando
com a cultura - Na
boca da noitinha dum sábado desse passado recentemente, lá estava eu atendendo
convite de Admmauro Gommes que chegava
de Xexéu, acompanhado do seu filho, o editor Ademac, para um evento surpresa, era o que me parecia. A chuva
começou a despencar do céu e logo fui me aboletando no banco traseiro do
automóvel, puxando conversa com os dois parceiros disso e daquilo. Entra aqui e
sai ali, pegamos a BR 101 e, depois de umas voltas e subidas íngremes e
deslizantes – fosse eu ao volante já estava atolado e perdido no meio daquela
lonjura -, nos deparamos com um recanto para lá de acolhedor. Nossa! Lugar
muito bom e bonito. Fiquei admirando o ambiente, enquanto o cicerone não dava
as caras. Qual não foi a minha surpresa de que o sujeito que eu pensava ser o
anfitrião como um daqueles todo farofudo, qual nada, era a cara mais lisa do
meu pariceiramigo das infâncias, o Poeta Picapau. Arreliamos logo umas pinoias, enquanto eu tomava pé da
aconchegante paragem. Logo uma tuia de caixa foi aparecendo e se amontoando
sobre a mesa. Que droga é nove? Rasguei uma delas e saquei: Proseando com a cultura! Esse era o título de uma simpática publicação que eu
mesmo havia prefaciado e sequer me lembrava. A comemoração começou com o
destampado dum uísque, muito gelo, tira-gosto e a poetada solta no meio de umas
conversadas jogadas fora. Algumas confidências rolaram: Admmauro trouxe à tona
a lembrança do seu avô que o havia ensinado as regras da poesia popular,
sacando do celular um galope à beira-mar de sua autoria. Daqui a pouco Ademac surpreendeu
ao violão, sapecando umas daquelas canções do repertório popular, arrancando da
memória músicas do tempo do ronca e das paradas de sucesso dos últimos 50 anos.
E isso do chué ao que se parece chique. O receptor da festança não se fez de rogado
e largou uma tuia de chapoletadas poéticas que foram arremedadas pelos demais
em tons e versos. Só eu que ficava calado ou soltando pilherias, nada mais além
da virada de copo. Lá pras tantas eu já balançava a cabeça zonza, o Picapau
sacudiu no meu pau da venta: nunca arrematei um mote / pra
não ver a bagaceira / também não faço heresia / faço o que a mente cria /
pois ela é de primeira / e sem insistir na natura / vou a mesma admirando / e
a vida vou levando / proseando com a cultura. Isso me deu coragem de tomar a viola e dei umas trastejadas me
esgoelando das tripas coração, e foi só uma mesmo, devolvi a viola pro Ademac
que reassumiu o posto, porque eu mesmo já estava com o raciocínio apagando de
tanta beiçada no álcool. Bem, para encurtar a hestória, só sei que cheguei em casa não sei como, bêbado
que só de trocar as pernas e o solado, as calças arriando, o mundo rodando, a
porta estreita e com uma caixa enorme e pesada atrapalhando a passagem nos
braços (nela os exemplares da obra Ascese
é uma mulher – CriaArte, 2022 -, do poeta Vital Corrêa de Araújo, volume este que é o quinto da série de
publicações do autor que eu organizei, prefaciei e ilustrei). A comemoração era
dupla e eu não sabia. Enganchado na entrada de casa, fui socorrido e despachei
tudo caindo na cama que rodava mais que carrossel em noite de festa. Gostei,
outra dessa não sei não, pelamordedeus, gente! Agora mais não, só na outra. Tirante
as aumentadas propositais, a anedota está igualzinha ao que se sucedeu. Até
mais ver.
Urge
preveni-los do muito que se poderia fazer, com apoio no saber científico, e do
descalabro e pequenez do que se está fazendo... Mestrado é só para mostrar que
o sujeito é alfabetizado, pois a metade dos que estão na universidade não sabem
ler. Viva aceso, olhando e conhecendo o mundo que o rodeia, aprendendo como um
índio... A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto...
Pensamento do antropólogo, educador e escritor Darcy Ribeiro (1922-1997). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.