OH, EVELYN: A VÍTIMA É SEMPRE CULPADA - Tributo à atriz, corista e modelo estadunidense Evelyn
Nesbit, Florence Evelyn Nesbit (1884-1967). – Aquela graciosa ruiva era órfã e nascera capricorniana
numa noite de natal. Vinha duma modesta e enlutada familia da Pensilvânia, logo
encantou as ruas da Filadelfia ao posar para os artistas, angariando ajuda pra
família, até posar nua para as telas de Church e Beckwith, ainda adolescente em New York. Logo se tornou uma Girls do Charles
Dana Gibson, entre as corajosas independentes e poderosas da Belle Époque: Quando eu
percebi que podia ganhar mais dinheiro posando para artistas do que atrás de um
balcão da Wanamaker's, deixei de entregar o dinheiro à minha mãe até que ela me
permitisse trabalhar para eles. Era ela
na escultura Inocência, de George Grey Barnard e no quadro Mulheres:
A Eterna Questão, de Gibson, afora fotos para Sarony e
Eickemeyer. Era a sua ascensão meteórica: uma corista de muitos admiradores,
verdadeiros sátiros predatórios com seus presentes e flertes: colares de
pérolas, anéis de diamante e peles de raposa branca. Pose de modelo de produtos
diversos: souvenirs, cartões postais, rótulos de cerveja, espelhos de bolso,
caixas de charutos, calendários e cromolitografias. Tornou-se popular nas capas das revistas badaladas Vanity Fair
e Harper’s Bazaar. Era uma deusa grega, ou uma ninfa, gueixa ou cigana,
sensual como uma pin-up para estrear Florodora na Broadway. Depois
foi a vez de The Wild Rose, a um passo de se transformar num ícone da
beleza: a Garota do Sonho Estadunidense na Era Dourada. A sua mãe sonhava
casá-la com um milionário. Assim foi: do palco para luxuosos apartamentos, nos quais o déjà-vu de sua diversão juvenil nos quartos cobertos de veludo e balanço pendurado no
teto, amparada por sua mãe supreprotetora. Bastou uma escapulida materna e a
champanhe premiada fez efeito na sua virgindade. Um triângulo amoroso e outros
fanáticos não perdiam uma só de suas apresentações noturnas, com flores, cartas
e mimos, luxuosos transatlânticos e viagens internacionais de férias. E se digladiavam
e se matavam por sua atenção. Um dos casos ficou rumoroso pelo sensacionalismo
da imprensa atraindo o público. Com o julgamento a difamação: a garota
do balanço de veludo vermelho, agora vítima de seu próprio sucesso. Refez sua
vida. Ah, a cigana Vashti, seus potentes
encantos físicos e presença de palco. Os fios do destino levaram a Um salto de
sorte, foi a Redenção. O que era tido como Seu erro, como A mulher que deu,
dava numa estrela na cena: Eu quero esquecer! Mulher, mulher! Não farás! Sua imprudência
levou-a a Um ídolo caído. Depois, Minha irmã mais nova – a que nunca existiu,
saudades do seu irmão. A mulher oculta findou no Broadway Gossip. Na sua
biografia, Florence Mary, não havia certidão de nascimento queimada pelo
incêndio da infância, apenas a ascendência escocesa e irlandesa. As lembranças
do seu pai advogado são distantes e trazem o desamparo por sua morte súbita; sua
mãe lá estava, nas lides domésticas, memórias vivas com a falência da pensão: a
mãe não possuía a mínima habilidade para negócios, muito menos de guardiã da
filha. Disse-me ela confidencialmente: A
tragédia foi eu ter sobrevivido a tudo! E pagou todos os patos: a vítima é
sempre culpada, como Frineia, com seu carisma, seu instinto infalivel, sua
resistência de aço, seu sex appeal sobrenatural de supermodelo, a reencarnação de Frineia. Veja mais aqui
e aqui.
DITOS & DESDITOS - Para mim,
o período da guerra foi como se tivéssemos caído num buraco. E para sair desse
buraco, convenci-me de que seria necessário que as mulheres tomassem o comando,
a começar pelo comando do cinema... Pensamento da cineasta e atriz japonesa Kinuyo
Tanaka (1909-1977)
ALGUÉM FALOU: Uma dose
saudável de culpa nunca machuca ninguém. É o que a civilização foi construída,
culpa. Uma emoção altamente subestimada... Pensamento da antropóloga
estadunidense Ann Dunham (1942-1995).
CADERNO
PROIBIDO - […] tudo aquilo que fizemos não nos é mais
suficiente; serviu apenas para nos tornar aqueles que somos. E do modo como
somos, agora que somos verdadeiramente nós, aqueles que quisemos ou conseguimos
ser, gostaríamos de começar a viver de novo, conscientemente, segundo nossos
gostos de hoje. E no entanto devemos continuar vivendo a vida que escolhemos
quando éramos outros. Trabalhei a vida inteira, foram trinta anos para me
tornar quem eu sou. E agora? [...] Mas talvez seja difícil continuar amigo para o resto da
vida. Na
realidade, num determinado momento, cada um de nós muda, torna-se diferente,
uns avançam, outros ficam parados, e enfim partimos em direcções opostas, de
modo que já não há encontro, já não há nada em comum [...] Com o passar dos anos,
percebo que minha mãe, quando falava da vida da mulher e dizia coisas que me
irritavam, no fundo tinha sempre razão. Dizia que uma mulher não deve nunca ter
tempo, não deve jamais ficar ociosa, porque do contrário logo começa a pensar
no amor. [...] Estamos sempre inclinados a esquecer o que dissemos
ou fizemos no passado, também para evitar ter a terrível obrigação de
permanecer fiel a você. Parece-me que, caso contrário,
teríamos de nos encontrar todos cheios de erros e, sobretudo, de contradições,
entre o que nos propusemos a fazer e o que fizemos, entre o que gostaríamos de
ser e o que nos contentamos realmente ser [...] Talvez existam pessoas que, ao se conhecerem, consigam melhorar; Eu, por outro lado, quanto mais me
conheço, mais me perco. Afinal,
não sei que sentimentos poderiam resistir a uma análise implacável e contínua; nem qual pessoa, refletida em cada
ação sua, poderia estar satisfeita consigo mesma. Parece-me que na vida é necessário
escolher a nossa própria linha de conduta, afirmá-la perante nós próprios e os
outros, e depois esquecer aqueles gestos, aquelas ações, que lhe contrastam. Devemos esquecê-los. Minha mãe sempre diz que quem tem
memória fraca tem sorte. [...]. Trechos extraídos da obra Quaderno proibito (Mondadori, 1996), da escritora e dramaturga
italiana Alba de Céspedes y Bertini (1911-1997).
DOIS
POEMAS - POR QUE SOU FORTE - Dirás que é falso. Não. É
certo. Desço\ Ao fundo d’alma toda vez que hesito...\ Cada vez que uma lágrima
ou que um grito\ \Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço...\ E toda
assombro, toda amor, confesso,\ O limiar desse país bendito\ Cruzo: -
aguardam-me as festas do infinito!\ O horror da vida, deslumbrada, esqueço!\ É
que há dentro vales, céus, alturas,\ Que o olhar do mundo não macula, a terna\ Lua,
flores, queridas criaturas,\ E soa em cada moita, em cada gruta,\ A sinfonia da
paixão eterna!...\ - E eis-me de novo forte para a luta. PERFIL DE ESCRAVA
- Quando os olhos entreabro à luz que avança,\ Batendo a sombra e pérfida
indolência,\ Vejo além da discreta transparência\ Do alvo cortinando uma
criança.\ Pupila de gazela - viva e mansa,\ Com sereno temor colhendo a
ardência\ Fronte imersa em palor...Rir de inocência,\ Rir que trai ora
angústia, ora esperança...\ Eis o esboço fugaz da estátua viva,\ Que - de
braços em cruz - na sombra avulta\ Silenciosa, atenta, pensativa!\ Estátua?
Não, que essa cadeia estulta\ Há de quebrar-se, mísera, cativa,\ Este afeto de
mãe, que a dona oculta! Poema da escritora, jornalista e tradutora Narcisa
Amália de Campos (1852-1924).